A Encantada :: Larissa Pinto Marques Braga

Entrou em casa, como se não o fizesse todo dia, da mesma forma, e sempre apressada. Mas naquele dia, tudo estava diferente, passou a mão na cadeira onde passava horas crochetando bolsas para vender, olhou os quadros, a casa totalmente limpa e organizada como o de costume, a cesta com suas linhas, nada precisava dela.

Vivera por vários anos essa realidade, não era o que sonhara para sua vida, mas não chegava a ser medíocre, tinha um bom marido, uma filha exemplar, alguns vestidos novos no armário, e era tudo. Estar sozinha ali, enquanto nem o barulho da televisão perturbava seus pensamentos era novidade, nunca havia parado para pensar em suas existência, abriu mão de tantas coisas, tantos planos, para ver os outros felizes, que nem se deu conta da anulação de seu próprio ser.

Trazia sacolas cheias de compras para o jantar, foi à cozinha, abriu sua geladeira e começou a guardar tudo, e analisava as suas decisões, escolheu casa e filhos ao invés da carreira, tão simples como se escolhe um casaco verde ou um azul. Não deu espaço para suas vontades, deixou seus sonhos de lado para passar as camisas do marido, e os uniformes da filha. Mas não era a realidade de tantas outras? Era quase feliz com aquilo tudo, e nem tinha mais tempo para pensar, tinha que preparar o jantar.

A panela no fogo, alguns legumes para descascar, o arroz, a sobremesa, tanto o que fazer, mas aqueles pensamentos continuavam a perturbar-lhe. Enquanto via os legumes se curvarem à faca e serem lançados na panela com água quente, divagava sobre que outras decisões poderia ter tomado. Ou será que seria infeliz se não tivesse uma filha e sim sucesso? Como saber? Não queria mais pensar naquelas coisas, com certeza teria enxaqueca, se sentiria incompleta e não iria conseguir dormir.

O toque do telefone a despertou do transe filosófico, era o marido dizendo que não iria jantar em casa, ia sair com os amigos para comemorar um grande negócio. Agradecida, desligou, pensando que assim não o aborreceria com suas lamentações, voltou à cozinha, rasgou o saco plástico e começou a picar a carne, que tingia suas mãos de um rubro magnífico, ela adorava a cor do sangue, e novamente o telefone tocou, dessa vez era a filha dizendo que ia dormir na casa de uma amiga. Como se já não tivesse sido jovem, e mentido milhões de vezes, amiga, sim ela sabia, ia dormir com o namoradinho, mas isso era bom, deixa ao menos a menina ser feliz.

Abriu a geladeira e abriu uma garrafa de vinho só para ela, e continuou o seu jantar, agora, só pra ela, e num repente egoísta, sentiu-se bem por estar solitária, soltou os cabelos, desabotoou dois botões da camisa, e conforme a garrafa de vinho ficava vazia mais linda se sentia.

E ao terminar de preparar o jantar, arrumou a mesa, só pra si, acendeu o castiçal, apagou as luzes e abriu mais uma garrafa, tinha se esquecido de como era bom aquele vinho, serviu-se e saboreou lentamente, sem nenhum pedido para interromper sua degustação, como era bom comer em paz, sem sermões do jantar, sem amolações cotidianas, se fartou de sua comida.

Agora descalça, retirou a mesa, deixando as velas acesas, lavou a louça, pegou o castiçal e o levou ao banheiro, ligando a água morna e deixando a banheira encher. Voltou à cozinha, abriu mais uma garrafa e voltou ao banheiro, tirou a roupa sem pressa, viu a queda de cada peça, como era bom estar sozinha, um pé dentro da banheira, depois o outro, e foi descendo lentamente seu corpo, e foi tomada por aquele arrepio prazeroso. Ajeitou-se colocando uma toalha para amparar a cabeça, e não largava a taça, nem se lembrava há quanto tempo não tomava um banho morno, demorado, há quanto tempo não se olhava, seu rosto parecia cansado, mas ainda era bonita, se observava no espelho ao lado da banheira que ia ficando cada vez mais embaçado.

O vinho fazia efeito e ela estava sonolenta e permitiu-se relaxar, soltou seus músculos rijos e tensos, e sentia-se no ventre materno, aquela sensação era muito agradável, sentiu-se amparada nos braços de sua mãe, como ela fazia falta, viu seu rosto e sentia-se embalada por ela.

Adormeceu, e o corpo foi descendo lentamente para dentro da banheira, o pescoço, os lábios, as narinas, e por um momento sentiu respirar a água, acordou assustada, e com ódio de si mesma, por todo aquele tempo perdido, saiu correndo, abriu a porta de sua casa, berrando, esbravejando desaforos, xingando os vizinhos que a incomodaram por anos, estava nua, e nem se dava conta disso.

Diante do estardalhaço todos os vizinhos saíram na janela, uns pensavam, despudorada, outros revidavam as palavras corrosivas, quando estava sem voz de tanto gritar correu, correu mais rápido que pôde, para fugir daquela realidade torpe. Não queria ser mais a senhora fulana de tal, esposa de fulano e mãe de sicrana, queria começar de novo.

Correu, pois não queria ser mais boazinha, não queria saber da moral da história, queria “encantar”, como naquelas lendas que ouvira quando menina, sobre as pessoas que foram boas na terra e “encantavam”, que era um morrer com concessão pra voltar quando quisesse aos prazeres mundanos. Ela já fora boa, já fizera sua parte, agora só voltaria para beber um bom vinho, saborear um belo prato e fazer amor com quem quisesse.

E o marido ao chegar em casa não encontrou sua mulher, ficou sabendo da sua insanidade, mandou a polícia local à sua procura, mas nada encontraram, e na manhã seguinte só se falava da mulher que saiu de casa nua e “encantou”.

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