LICANTROPIA :: José Carlos Neves

A coisa sempre esteve aguilhoada no meu mais fundo. Às vezes vem à tona de supetão, irrompendo pela linha d'água da consciência. Nestes momentos tenho de aproveitar para extravasar tudo, liberar, exorcizar de vez aquele horror.
Estão gravando? Pois é, então deixa eu contar de uma vez só, não me interrompam com questiúnculas, embora eu saiba o quão difícil será para acreditarem.
Meu bom e velho pai sempre foi muito reservado diria até que ausente, mas tentava compensar-me com uma atenção carinhosa a tudo que lhe inquiria ou pedia, na medida de suas modestas possibilidades. Depois de muito labutar na sua "Alfaiataria do Dão", resolveu de aposentar assim no sem mais nem menos, num sítio próximo em lugarejo conhecido como São Pedro das Garças. Abstendo-se a contragosto da companhia da velha, que detestava mato, enfurnou-se de vez por lá, levantando-se com os galos e dormindo com as galinhas, cuidando de hortas e fazendo o que mais gostava nesta vida de meu Deus, pescar - na baixa que fundeava a gleba, corria um ribeirão de águas tão límpidas quanto generosas.
Ano vai ano vem, apareceu por lá um matuto acaçapado de nome Gilmar mendigando trabalho e a intuição do velho mais uma vez lhe valeu. Era boa gente, de índole humilde e trabalhadora.
Seu Dão praticamente o adotou, ensinando-lhe quase tudo o que sabia, recebendo em troca companhia que não reclamava de nada nem ficava impaciente frente à sua minuciosidade - na verdade o velho era exagerado aos extremos, difícil até de convivência.
Ano vai ano vem outra vez e Gilmar tomou corpo, para finalmente ceder aos encantos de Joana, moçoila daquelas plagas mesmo, em cerimônia esquisita num terreiro de umbanda, onde a conhecera, numa das poucas noites de cachaçada a que se permitia - não dizem por aí que o homem nasce, cresce, fica besta e casa?!
Por cá, assumi os "negócios da família", modernizando a alfaiataria e garantindo o nosso sustento. Íamos passando pela vida e essa nos consumia com danura.
Mas um grande choque estava por vir.
Num sábado chuvoso fui despertado pelo celular infusado às quatro da matina. Já atendi com o coração na boca, pois àquela hora telefone só chamava para notícia ruim. - Patrãozinho, venha urgente. Seu Dão está muito mal... - Era o Gilmar, e estava desesperado. - Aprepare-se para o pior...
Não o entendi direito e pedi para ele falar mais alto enquanto me vesti por cima do pijama mesmo e ganhei o breu na "mula doida", o nosso velho Jeep Willis 65. O apelido fora dado pelo velho. Como ele gostava do "bichão", todo original, tração nas quatro rodas, seis cilindros... "Pode ser bebedor, mas sobe até em árvore", Seu Dão costumava se justificar. Minha mãe, a bondosa dona Maria, tinha viajado a Lapa Bom Jesus, cumprindo uma promessa que já vinha antes de eu nascer.
Depois de comer muita lama e com o dia demorando a amanhecer no meio da névoa, os faróis sobressalentes, bi-iôdo, clarearam a placa de madeira entalhada pendurada no alto de dois mourões da cancela que anunciava "Sítio Repouso do Guerreiro" - um presente meu, pois o velho não era dado a nenhuma "exibição".
Gilmar já estava a postos, aflito, coberto dos pés à cabeça por uma capa plástica preta. Tal e qual um negativo de fantasma. A cachorrada que o seguia latia ensurdecedoramente e a escuridão em volta parecia até aumentar. Gilmar trazia um lampião aceso, único conforto meio àquela chuva fina e frio cortante, incomum, com certeza sinal de mau-agouro e não das costumeiras boas-vindas.
- Patrãozinho que me "descurpe", mas Seu Dão...Seu Dão está morto. Mortinho da silva. E, Deus que me perdoe, mas foi um "lobisome" que matou ele...
Disse assim no de repente, como se tentasse mitigar o medo dando a notícia toda uma vez. E como se aquilo pudesse ser dito como quem se conta que uma pessoa morrera atropelada.
E fomos nós, nos arrastando para a sede, apoiando-nos um no outro, as lágrimas a se misturar com a garoa....
Contrastando com a escassez de quase tudo, a região era farta de histórias mirabolantes. Corriam "notícias" de mulas-sem-cabeça - um padre que se deitara com mulher casada e fora castigado - , moleque-saci, bolas de fogo que corriam atrás da gente no mato e, a mais recente, a mulher-de-sete metros, que perseguia os incautos nas proximidades do "Brejo das Almas".
Mas o "causo" mais famoso era o de um lobisomem que, há muitos anos obrigava as crianças a se recolherem mais cedo, a serem reforçadas com mais tramelas as portas e janelões de madeira e o querosene a ter o seu consumo aumentado consideravelmente - nenhuma casa do lugarejo ou das fazendas dormia mais sem ter pelo menos uma lamparina acesa a noite inteira nalgum cômodo.
Tudo porque durante as tradicionais festas juninas, quando as moças brincavam de "simpatias para achar marido", sucedeu-se tenebroso crime que a todos assombrou. As donzelas escreviam os nomes dos pretendentes em pedaços de papel que eram embolados, à moda de brogodó, e jogados numa bacia d´agua, onde aos poucos iam se abrindo. O primeiro nome que desse para ler, com certeza seria o do futuro esposo.
Marialva, morena de grande formosura, saiu-se com uma novidade: à véspera do Santo Antônio, bem à noitinha, deveria ir só ao Riacho dos Machados, para ver se via sua imagem refletida no espelho d´agua, iluminado pela lua-cheia. Somente assim poderia ter a certeza de encontrar o seu príncipe, que a tomaria de galope e a levaria para as lonjuras do sem fim.
Mas naquela noite Marialva encontrou-se foi prematuramente com o seu triste destino. Foi achada somente na manhã seguinte com as roupas e as fartas carnes em frangalhos, violentada selvagemente. Marcas de dentadas no frágil pescoço não deixaram dúvidas: o lobisomem a havia esganado.
Ao tomar ciência do acontecido, o pai da pobre, irascível coronel de nome Gasparino, pulou da cama, mandou convocar seus capangas e aprontou a sua cartucheira "filobér" de dois canos para ir à caça da besta-fera.Quando toda a jagunçada já o aguardava frente à sede da fazenda, escutaram um brado de " O que foi que eu fiz", procedido de um tiro. Ao acorrerem para dentro da casa para acudir o patrão, deram foi com os seus miolos ainda escorrendo pela porta esburacada do quarto. No que sobrara da cabeça do velho, dava para distinguir a bocarra ainda num esgar bestial, enjaulados por dentes amarelados de cigarro de palha e, entre estes, fiapos de tecido, na cor do vestido que Marialva usava ao ser trucidada.

Me servindo o sempre bem-vindo café curraleiro, recém-coado, Gilmar me contou que na noite anterior, antes de começar a chuvarada, escutara um uivo horrendo, mas de tão cansado pela lida preferiu acreditar que fora alguma briga de cachorro e ferrou no sono, mesmo porque, tinha sido um grito só. Mas ao amanhecer, quando foi para o curral "mode ordenhá a maiada", nossa única vaca leiteira, avistou os cães lambendo alguma coisa no chão. Como ganiam baixinho, apressou o passo para ver do que se tratava. Para seu absoluto horror, constatou ser o seu patrão, o velho e bom Seu Dão, que ali jazia ensangüentado. Uma mordida feroz havia arrancado metade do seu pescoço, deixando expostos veias, artérias e até parte da coluna cervical. Unhadas não menos agressivas haviam rasgado pano, carnes e também ossos, em seu peito e nas costas, como um garfo numa folha de babosa. Sua pronta reação então, foi correr ao povoado mais próximo, onde o Seu Dão mantinha por sua conta um aparelho telefônico, na venda de Seu Luís.
Mesmo achando a estória mal contada, ajudei a dar banho e a vestir o velho, pois o levaríamos para a cidade tão logo a chuva, agora recrudescente, desse uma trégua. E ali, velando o cadáver ao cheiro enjoativo de cera de vela e querosene, muitos de nossos escassos mas bons e inesquecíveis momentos, inundaram-me os pensamentos numa torrente mais desenfreada do que a que a natureza castigava a região naquela noite.
Meu primeiro papagaio, que ajudou a armar e a soltar num campinho de futebol próximo à nossa casa. Meu primeiro gibi, Zorro e Tonto, ainda me lembro bem...Ai-Ôu-Silver! Avante... As longas caminhadas até as obras do Departamento de Estradas de Rodagem. Segurava firme o seu indicador ossudo e não soltava de jeito maneira, por mais tortuosos fossem os caminhos e por maior que fosse a minha curiosidade sobre tudo. Que sensação de segurança, há muito já perdida. A saudade se fez presente, latejante, dolorida, como se já fosse parte integrante do meu dia-a-dia. E o sentimento de insegurança, de estar perdido, do infantil medo do escuro, se apoderou de todo o meu ser. Cadê o seu dedão para eu segurar.... As lágrimas apimentaram-me os olhos e não sei dizer se foi isto ou um urro sobre-humano que escutei, que me trouxe de volta à realidade. Aprumei-me, assustado, enxuguei os olhos na camisa, chamando pelo Gilmar. Onde se metera o disinfeliz? E aquele dilúvio que não acabava mais, parecendo manter a noite como eterna? Armei-me com um pau comprido que servia de trava para a porta e preparei-me para o que quer que fosse.
As duas bandas da porta colonial foram destroçadas num só golpe de uma massa de pelos encharcados que irrompeu por entre as lascas de madeira pontiagudas, em minha direção. Parece que quando você olha pro fundo de um abismo tenebroso, ele também olha pra dentro de você.. Ali, na minha frente, uns bons dois metros de altura, a fera me encarou. Era um cão danado, como se um cientista maluco cruzasse uma mistura de buldogue, doberman e gorila descomunal, certamente vindo das profundas onde reina o coisa-ruim.
Presas aceradas que mais pareciam o tridente do capeta, estacaram-se, e me vi questionando a mim próprio como aquela bocarra podia se fechar. Era uma forma de espantar o medo, sei lá. Mas funcionou pois, vencido o estupor, adrenalina zunindo nos ouvidos, pulei mais que depressa a janela dos fundos e a fria chuva do exterior lavou o resto de paralisia. Sabia que correr não iria adiantar, pois certamente não conseguiria chegar muito longe. Além do mais, o Gilmar não aparecia, atiçando as minhas desconfianças, misturando medo com ódio e outros sentimentos estranhos. Apanhei um ancinho e uma foice afiada e preparei para me defender de uma forma mais eficiente de que com o bastão de madeira.
O monstro avançou abespinhado e muito mais rápido que eu pude prever ou o seu tamanho poderia permitir. Num átimo quase todo o seu peso estava sobre mim e pude ver de perto os seus olhos injetados, duas brasas na escuridão, e nausear-me pelo cheiro de leite azedado da gosma que escorria daquela fossa cheia de dentes. Antes que sua patada vigorosa me atingisse, golpeei-a com a foice. Para minha tão grande sorte, a lâmina estava bem amolada e cepou ao meio o antebraço cabeludo, da grossura da minha coxa, que caiu a alguns metros seguido pelo esguicho denso e púrpura que parecia ferver. Num vislumbre, confirmei os meus mais terríveis presságios, ao ver no dedo mindinho ainda estertorando, uma fina aliança de ouro quase a separar a falange da palma. E e ia morrer sem vingar a morte do meu velho querido, que tudo fizera por aquele desgraçado e tinha sido aquela a sua paga.
Não havia tempo para lamentações, a outra mãozarrona do monstro apertava-me o pescoço quase a me degolar, como a aliança fazia com o dedo. E sua bocarra se arreganhou bem próximo para o golpe final.
Mas de repente, a fera elevou a cabeça e, ao invés de me abocanhar, soltou um uivo medonho, estufando todo o entrelaçado de tendões e músculos que formavam o seu taludo pescoço e acirrando a fedentina de seu bafo. Aproveitei-me para, quase já sem forças, desferir ali mais um golpe da amolada lâmina da foice. Mais sangue jorrou aos borbotões, tão pegajoso que nem a chuva forte conseguia lavar. O corpanzil desfaleceu e consegui me desvencilhar da garra de aço, valendo-me do restinho de forças que ainda me restava. Notei que a fera, também ela, é verdade, havia urinado pernas a baixo, se é que se podia chamar aquilo de urina. E foi aí que descobri o meu salvador.
Empunhando um daqueles garfões de apanhar capim, os dentes de ferro embebidos em sangue, cobrindo a ferrugem, Gilmar me perguntou: - O sinhô tá bem, patrãozinho?
Antes que lhe pudesse responder e para nosso total espanto, fomos envolvidos pelo barulho de um ovo na frigideira de gordura quente e o odor insuportável provindo dos vapores deletérios que se elevavam do cadáver do monstro. Seus olhos esgazearam e seu corpanzil era todo convulsões, como se a ressuscitar em demoníaco feitiço. Mas não era isto. Tresandando indizíveis miasmas, a fera estava se metamorfoseando, encolhendo, perdendo pêlos e massa. Ao mesmo tempo abria as pernas e, apoiada nas patas, já então pés, elevara os quadris indecentemente, sacrílega, pois ali não existia um pinto, mas sim a fenda de outra bocarra. Nada fazia sentido.
-Não! - Urrou Gilmar das mais negras cavernas de sua alma. E eu, a custo, distingui as novas feições do lobisomem. Joaninha, a esposa do pobre, nua em pelo, uma espuma roxa a lhe escorrer da boca carnuda.
Mas o que vi a seguir, só eu, pois o Gilmar jazia desmaiado, fez ruir de vez as minhas periclitantes energias. Atrozes convulsões imprimiam às linhas daquele frágil corpo desumanos sobressaltos, que expulsara do meio de suas pernas abertas, um verdadeiro hino à repugnância. Meio ao sangue borbulhante, que se confundia com o efervecer do que deveria ser líquido aminiótico, uma espécie de vapor nauseabundo se difundindo ao seu redor e já atraindo as moscas, a forma amebóide estranha e rósea, deitando também baba, guinchou sibilante e entrangulantemente...

"Eu vos digo: é preciso ter ainda Caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançarina. Eu vos digo: ainda há Caos dentro de vós"

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