| A coisa sempre esteve aguilhoada 
        no meu mais fundo. Às vezes vem à tona de supetão, 
        irrompendo pela linha d'água da consciência. Nestes momentos 
        tenho de aproveitar para extravasar tudo, liberar, exorcizar de vez aquele 
        horror. Estão gravando? Pois é, então deixa eu contar de 
        uma vez só, não me interrompam com questiúnculas, 
        embora eu saiba o quão difícil será para acreditarem.
 Meu bom e velho pai sempre foi muito reservado diria até que ausente, 
        mas tentava compensar-me com uma atenção carinhosa a tudo 
        que lhe inquiria ou pedia, na medida de suas modestas possibilidades. 
        Depois de muito labutar na sua "Alfaiataria do Dão", 
        resolveu de aposentar assim no sem mais nem menos, num sítio próximo 
        em lugarejo conhecido como São Pedro das Garças. Abstendo-se 
        a contragosto da companhia da velha, que detestava mato, enfurnou-se de 
        vez por lá, levantando-se com os galos e dormindo com as galinhas, 
        cuidando de hortas e fazendo o que mais gostava nesta vida de meu Deus, 
        pescar - na baixa que fundeava a gleba, corria um ribeirão de águas 
        tão límpidas quanto generosas.
 Ano vai ano vem, apareceu por lá um matuto acaçapado de 
        nome Gilmar mendigando trabalho e a intuição do velho mais 
        uma vez lhe valeu. Era boa gente, de índole humilde e trabalhadora.
 Seu Dão praticamente o adotou, ensinando-lhe quase tudo o que sabia, 
        recebendo em troca companhia que não reclamava de nada nem ficava 
        impaciente frente à sua minuciosidade - na verdade o velho era 
        exagerado aos extremos, difícil até de convivência.
 Ano vai ano vem outra vez e Gilmar tomou corpo, para finalmente ceder 
        aos encantos de Joana, moçoila daquelas plagas mesmo, em cerimônia 
        esquisita num terreiro de umbanda, onde a conhecera, numa das poucas noites 
        de cachaçada a que se permitia - não dizem por aí 
        que o homem nasce, cresce, fica besta e casa?!
 Por cá, assumi os "negócios da família", 
        modernizando a alfaiataria e garantindo o nosso sustento. Íamos 
        passando pela vida e essa nos consumia com danura.
 Mas um grande choque estava por vir.
 Num sábado chuvoso fui despertado pelo celular infusado às 
        quatro da matina. Já atendi com o coração na boca, 
        pois àquela hora telefone só chamava para notícia 
        ruim. - Patrãozinho, venha urgente. Seu Dão está 
        muito mal... - Era o Gilmar, e estava desesperado. - Aprepare-se para 
        o pior...
 Não o entendi direito e pedi para ele falar mais alto enquanto 
        me vesti por cima do pijama mesmo e ganhei o breu na "mula doida", 
        o nosso velho Jeep Willis 65. O apelido fora dado pelo velho. Como ele 
        gostava do "bichão", todo original, tração 
        nas quatro rodas, seis cilindros... "Pode ser bebedor, mas sobe até 
        em árvore", Seu Dão costumava se justificar. Minha 
        mãe, a bondosa dona Maria, tinha viajado a Lapa Bom Jesus, cumprindo 
        uma promessa que já vinha antes de eu nascer.
 Depois de comer muita lama e com o dia demorando a amanhecer no meio da 
        névoa, os faróis sobressalentes, bi-iôdo, clarearam 
        a placa de madeira entalhada pendurada no alto de dois mourões 
        da cancela que anunciava "Sítio Repouso do Guerreiro" 
        - um presente meu, pois o velho não era dado a nenhuma "exibição".
 Gilmar já estava a postos, aflito, coberto dos pés à 
        cabeça por uma capa plástica preta. Tal e qual um negativo 
        de fantasma. A cachorrada que o seguia latia ensurdecedoramente e a escuridão 
        em volta parecia até aumentar. Gilmar trazia um lampião 
        aceso, único conforto meio àquela chuva fina e frio cortante, 
        incomum, com certeza sinal de mau-agouro e não das costumeiras 
        boas-vindas.
 - Patrãozinho que me "descurpe", mas Seu Dão...Seu 
        Dão está morto. Mortinho da silva. E, Deus que me perdoe, 
        mas foi um "lobisome" que matou ele...
 Disse assim no de repente, como se tentasse mitigar o medo dando a notícia 
        toda uma vez. E como se aquilo pudesse ser dito como quem se conta que 
        uma pessoa morrera atropelada.
 E fomos nós, nos arrastando para a sede, apoiando-nos um no outro, 
        as lágrimas a se misturar com a garoa....
 Contrastando com a escassez de quase tudo, a região era farta de 
        histórias mirabolantes. Corriam "notícias" de 
        mulas-sem-cabeça - um padre que se deitara com mulher casada e 
        fora castigado - , moleque-saci, bolas de fogo que corriam atrás 
        da gente no mato e, a mais recente, a mulher-de-sete metros, que perseguia 
        os incautos nas proximidades do "Brejo das Almas".
 Mas o "causo" mais famoso era o de um lobisomem que, há 
        muitos anos obrigava as crianças a se recolherem mais cedo, a serem 
        reforçadas com mais tramelas as portas e janelões de madeira 
        e o querosene a ter o seu consumo aumentado consideravelmente - nenhuma 
        casa do lugarejo ou das fazendas dormia mais sem ter pelo menos uma lamparina 
        acesa a noite inteira nalgum cômodo.
 Tudo porque durante as tradicionais festas juninas, quando as moças 
        brincavam de "simpatias para achar marido", sucedeu-se tenebroso 
        crime que a todos assombrou. As donzelas escreviam os nomes dos pretendentes 
        em pedaços de papel que eram embolados, à moda de brogodó, 
        e jogados numa bacia d´agua, onde aos poucos iam se abrindo. O primeiro 
        nome que desse para ler, com certeza seria o do futuro esposo.
 Marialva, morena de grande formosura, saiu-se com uma novidade: à 
        véspera do Santo Antônio, bem à noitinha, deveria 
        ir só ao Riacho dos Machados, para ver se via sua imagem refletida 
        no espelho d´agua, iluminado pela lua-cheia. Somente assim poderia 
        ter a certeza de encontrar o seu príncipe, que a tomaria de galope 
        e a levaria para as lonjuras do sem fim.
 Mas naquela noite Marialva encontrou-se foi prematuramente com o seu triste 
        destino. Foi achada somente na manhã seguinte com as roupas e as 
        fartas carnes em frangalhos, violentada selvagemente. Marcas de dentadas 
        no frágil pescoço não deixaram dúvidas: o 
        lobisomem a havia esganado.
 Ao tomar ciência do acontecido, o pai da pobre, irascível 
        coronel de nome Gasparino, pulou da cama, mandou convocar seus capangas 
        e aprontou a sua cartucheira "filobér" de dois canos 
        para ir à caça da besta-fera.Quando toda a jagunçada 
        já o aguardava frente à sede da fazenda, escutaram um brado 
        de " O que foi que eu fiz", procedido de um tiro. Ao acorrerem 
        para dentro da casa para acudir o patrão, deram foi com os seus 
        miolos ainda escorrendo pela porta esburacada do quarto. No que sobrara 
        da cabeça do velho, dava para distinguir a bocarra ainda num esgar 
        bestial, enjaulados por dentes amarelados de cigarro de palha e, entre 
        estes, fiapos de tecido, na cor do vestido que Marialva usava ao ser trucidada.
 Me servindo o sempre bem-vindo café curraleiro, 
        recém-coado, Gilmar me contou que na noite anterior, antes de começar 
        a chuvarada, escutara um uivo horrendo, mas de tão cansado pela 
        lida preferiu acreditar que fora alguma briga de cachorro e ferrou no 
        sono, mesmo porque, tinha sido um grito só. Mas ao amanhecer, quando 
        foi para o curral "mode ordenhá a maiada", nossa única 
        vaca leiteira, avistou os cães lambendo alguma coisa no chão. 
        Como ganiam baixinho, apressou o passo para ver do que se tratava. Para 
        seu absoluto horror, constatou ser o seu patrão, o velho e bom 
        Seu Dão, que ali jazia ensangüentado. Uma mordida feroz havia 
        arrancado metade do seu pescoço, deixando expostos veias, artérias 
        e até parte da coluna cervical. Unhadas não menos agressivas 
        haviam rasgado pano, carnes e também ossos, em seu peito e nas 
        costas, como um garfo numa folha de babosa. Sua pronta reação 
        então, foi correr ao povoado mais próximo, onde o Seu Dão 
        mantinha por sua conta um aparelho telefônico, na venda de Seu Luís. 
        Mesmo achando a estória mal contada, ajudei a dar banho e a vestir 
        o velho, pois o levaríamos para a cidade tão logo a chuva, 
        agora recrudescente, desse uma trégua. E ali, velando o cadáver 
        ao cheiro enjoativo de cera de vela e querosene, muitos de nossos escassos 
        mas bons e inesquecíveis momentos, inundaram-me os pensamentos 
        numa torrente mais desenfreada do que a que a natureza castigava a região 
        naquela noite.
 Meu primeiro papagaio, que ajudou a armar e a soltar num campinho de futebol 
        próximo à nossa casa. Meu primeiro gibi, Zorro e Tonto, 
        ainda me lembro bem...Ai-Ôu-Silver! Avante... As longas caminhadas 
        até as obras do Departamento de Estradas de Rodagem. Segurava firme 
        o seu indicador ossudo e não soltava de jeito maneira, por mais 
        tortuosos fossem os caminhos e por maior que fosse a minha curiosidade 
        sobre tudo. Que sensação de segurança, há 
        muito já perdida. A saudade se fez presente, latejante, dolorida, 
        como se já fosse parte integrante do meu dia-a-dia. E o sentimento 
        de insegurança, de estar perdido, do infantil medo do escuro, se 
        apoderou de todo o meu ser. Cadê o seu dedão para eu segurar.... 
        As lágrimas apimentaram-me os olhos e não sei dizer se foi 
        isto ou um urro sobre-humano que escutei, que me trouxe de volta à 
        realidade. Aprumei-me, assustado, enxuguei os olhos na camisa, chamando 
        pelo Gilmar. Onde se metera o disinfeliz? E aquele dilúvio que 
        não acabava mais, parecendo manter a noite como eterna? Armei-me 
        com um pau comprido que servia de trava para a porta e preparei-me para 
        o que quer que fosse.
 As duas bandas da porta colonial foram destroçadas num só 
        golpe de uma massa de pelos encharcados que irrompeu por entre as lascas 
        de madeira pontiagudas, em minha direção. Parece que quando 
        você olha pro fundo de um abismo tenebroso, ele também olha 
        pra dentro de você.. Ali, na minha frente, uns bons dois metros 
        de altura, a fera me encarou. Era um cão danado, como se um cientista 
        maluco cruzasse uma mistura de buldogue, doberman e gorila descomunal, 
        certamente vindo das profundas onde reina o coisa-ruim.
 Presas aceradas que mais pareciam o tridente do capeta, estacaram-se, 
        e me vi questionando a mim próprio como aquela bocarra podia se 
        fechar. Era uma forma de espantar o medo, sei lá. Mas funcionou 
        pois, vencido o estupor, adrenalina zunindo nos ouvidos, pulei mais que 
        depressa a janela dos fundos e a fria chuva do exterior lavou o resto 
        de paralisia. Sabia que correr não iria adiantar, pois certamente 
        não conseguiria chegar muito longe. Além do mais, o Gilmar 
        não aparecia, atiçando as minhas desconfianças, misturando 
        medo com ódio e outros sentimentos estranhos. Apanhei um ancinho 
        e uma foice afiada e preparei para me defender de uma forma mais eficiente 
        de que com o bastão de madeira.
 O monstro avançou abespinhado e muito mais rápido que eu 
        pude prever ou o seu tamanho poderia permitir. Num átimo quase 
        todo o seu peso estava sobre mim e pude ver de perto os seus olhos injetados, 
        duas brasas na escuridão, e nausear-me pelo cheiro de leite azedado 
        da gosma que escorria daquela fossa cheia de dentes. Antes que sua patada 
        vigorosa me atingisse, golpeei-a com a foice. Para minha tão grande 
        sorte, a lâmina estava bem amolada e cepou ao meio o antebraço 
        cabeludo, da grossura da minha coxa, que caiu a alguns metros seguido 
        pelo esguicho denso e púrpura que parecia ferver. Num vislumbre, 
        confirmei os meus mais terríveis presságios, ao ver no dedo 
        mindinho ainda estertorando, uma fina aliança de ouro quase a separar 
        a falange da palma. E e ia morrer sem vingar a morte do meu velho querido, 
        que tudo fizera por aquele desgraçado e tinha sido aquela a sua 
        paga.
 Não havia tempo para lamentações, a outra mãozarrona 
        do monstro apertava-me o pescoço quase a me degolar, como a aliança 
        fazia com o dedo. E sua bocarra se arreganhou bem próximo para 
        o golpe final.
 Mas de repente, a fera elevou a cabeça e, ao invés de me 
        abocanhar, soltou um uivo medonho, estufando todo o entrelaçado 
        de tendões e músculos que formavam o seu taludo pescoço 
        e acirrando a fedentina de seu bafo. Aproveitei-me para, quase já 
        sem forças, desferir ali mais um golpe da amolada lâmina 
        da foice. Mais sangue jorrou aos borbotões, tão pegajoso 
        que nem a chuva forte conseguia lavar. O corpanzil desfaleceu e consegui 
        me desvencilhar da garra de aço, valendo-me do restinho de forças 
        que ainda me restava. Notei que a fera, também ela, é verdade, 
        havia urinado pernas a baixo, se é que se podia chamar aquilo de 
        urina. E foi aí que descobri o meu salvador.
 Empunhando um daqueles garfões de apanhar capim, os dentes de ferro 
        embebidos em sangue, cobrindo a ferrugem, Gilmar me perguntou: - O sinhô 
        tá bem, patrãozinho?
 Antes que lhe pudesse responder e para nosso total espanto, fomos envolvidos 
        pelo barulho de um ovo na frigideira de gordura quente e o odor insuportável 
        provindo dos vapores deletérios que se elevavam do cadáver 
        do monstro. Seus olhos esgazearam e seu corpanzil era todo convulsões, 
        como se a ressuscitar em demoníaco feitiço. Mas não 
        era isto. Tresandando indizíveis miasmas, a fera estava se metamorfoseando, 
        encolhendo, perdendo pêlos e massa. Ao mesmo tempo abria as pernas 
        e, apoiada nas patas, já então pés, elevara os quadris 
        indecentemente, sacrílega, pois ali não existia um pinto, 
        mas sim a fenda de outra bocarra. Nada fazia sentido.
 -Não! - Urrou Gilmar das mais negras cavernas de sua alma. E eu, 
        a custo, distingui as novas feições do lobisomem. Joaninha, 
        a esposa do pobre, nua em pelo, uma espuma roxa a lhe escorrer da boca 
        carnuda.
 Mas o que vi a seguir, só eu, pois o Gilmar jazia desmaiado, fez 
        ruir de vez as minhas periclitantes energias. Atrozes convulsões 
        imprimiam às linhas daquele frágil corpo desumanos sobressaltos, 
        que expulsara do meio de suas pernas abertas, um verdadeiro hino à 
        repugnância. Meio ao sangue borbulhante, que se confundia com o 
        efervecer do que deveria ser líquido aminiótico, uma espécie 
        de vapor nauseabundo se difundindo ao seu redor e já atraindo as 
        moscas, a forma amebóide estranha e rósea, deitando também 
        baba, guinchou sibilante e entrangulantemente...
  "Eu vos digo: é preciso ter ainda 
        Caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançarina. 
        Eu vos digo: ainda há Caos dentro de vós" |