Pirações de Leda Éster :: Ieda Estergilda de Abreu

Leda Éster quase pira ao ver os ladrilhos azuis do banheiro manchados de vermelho. Sangue logo de manhã cedo era demais para quem tinha acabado de acordar e estava atrasada para o trabalho. Apoiou-se nas bordas da pia, fechou os olhos com força e foi abrindo devagar. Pasta de dente! Era isso, ufa, concluiu com alívio e uma conhecida indignação. Limpou com a toalha o espelho embaçado. O casal minúsculo da pasta Colgate tinha um sorriso branco químico, cínico, assustador, e a embalagem vermelha lembrava arma de guerra em miniatura. A qualquer momento o casal sairia do retângulo e tudo poderia acontecer. Escancarou a boca diante do espelho, numa careta estranha.
Eles. Eram sempre eles que deixavam a bisnaga destampada, ali estava ela escorrendo um gel cor de sangue, o casal Colgate rindo na outra extremidade.
Respirou fundo umas três vezes e sentiu-se mais leve. Tampou a bisnaga, limpou o chão manchado e a pia. Jurou pela milésima vez nunca mais deixar entrar em casa pasta Colgate Close-up, e mudar de vez para a Phillips, branca, pouca espuma mas, segundo os dentistas conscientes, a mais eficaz no combate às cáries e ao mau hálito. E não tinha comercial na TV. Passado o susto, saiu de casa bufando e chegou resfolegando no emprego, com uma cara que dispensava explicações.
Eles também não tampavam frascos de shampoo, e se fosse a última a tomar banho, com certeza encontrava embalagens abertas no piso do box, sem falar no sabonete, que estaria nadando graças ao pinga-pinga do chuveiro mal fechado. E assim ficaria até o final do dia e dia seguinte, se ninguém mexesse. Não sobrava nem a pia, interditada algumas vezes por entupimento. Já vira eles lavarem as cabeleiras nela, em dias mais frios, e nem perceberem os fios que entravam pelo ralo.
Manter o local limpo e seco não era com eles, mesmo com todo o material de limpeza sempre à mão. Já acontecera de chegar do trabalho, ir ao banheiro e  voltar com cara de nojo e uma tremenda bronca na ponta da língua. Em seguida, o arrependimento por não ter cumprido a promessa feita a si mesma, de não dizer palavras duras. Não adiantava, eles continuavam na sala vendo TV ou ouvindo rock pauleira no quarto. Leda Éster lembra uma noite em que sonhou com baratas saindo do ralo do box e da pia do banheiro.
O quarto deles era um território em constante convulsão, e as camas tinham papel de destaque. Generosas na sua utilidade, acomodavam, além dos corpos, tudo o mais que coubesse: além de toda a roupa que usavam, incluindo montanhas de lençóis e cobertores nunca dobrados, nelas cabiam também desodorantes, pilhas, CDs fora das capas, cadernos, lápis e canetas, toalhas molhadas, meias, cuecas e calcinhas.
Decididamente não conseguiam usar os guarda-roupas, que viviam quase vazios e de portas escancaradas, nem os cabides. Leda Ester tentava raciocinar ao modo deles: por que se darem ao trabalho de pendurar, guardar, empilhar, se era mais fácil e rápido deixar tudo em cima das camas, ou mesmo no chão? Este aliás era outro local muito bem utilizado. Vivia atapetado de sapatos, tênis,  papéis de chocolate, balas, lata de refrigente, caixinha de suco,  chicletes etc etc.
No quarto havia também uma escrivaninha com cadeira e luminária. Leda Éster conta nos dedos as vezes em que viu os dois usando o móvel para estudar. Preferiam fazer isso na cama, da forma mais inadequada, de costas para a luz e sem apoio na coluna.
Não satisfeitos em deixarem o banheiro e o quarto em condições só toleradas por eles mesmos,  costumavam entrar na cozinha como verdadeiros vândalos. Um simples lanche era motivo para o caos. Isto significava, no mínimo, sujar meia dúzia de talheres, não tampar mantegueira nem açucareiro nem pote de geléia ou maionese. Depois de usados, estes pendiam perigosamente na beirada da pia ou da mesa da cozinha.  E quase toda semana havia cacos de vidro na lixeira.
Aos sábados, Leda Éster tentava fazer um almoço em família, já que durante a semana era praticamente impossível. E se empenhava em organizar um cardápio de agrado geral contando com um mínimo de ajuda: ela cozinharia, eles poriam a mesa e lavariam a louça. Combinado? Eles juravam que seria tudo como a querida mamã quisesse. Por conta disso, Leda Éster, em vez do merecido descanso semanal, passava quase toda a manhã de sábado na cozinha. E eles? Ah, acordavam depois do meio dia. De cara amassada, grunhiam um oi, dizendo-se famintos, e loucos por café com pão, leite Nescau e manteiga. Leda Éster tomara seu café às oito, também estava faminta e o estômago pedia outro cardápio, aquele combinado na véspera e que estava pra sair. Mas seus colaboradores estavam em outra. Sonolentos e desgrenhados, pegavam pão, lambusavam de manteiga e geléia, se serviam de café, leite ou Nescau e se arrastavam até à sala. Ligavam a TV e o mundo podia desabar que eles não reagiam. Nessas ocasiões, a TV contribuía para esticar por uma hora ou mais o estado de letargia dos dois. Portanto, não tinham hora para cumprir o prometido. A mãe que escolhesse entre almoçar sozinha ou enganar a fome e esperar que a deles se manifestasse de novo. Como ela se dava ao luxo de não provocar nem comprar discussões nos fins de semana, escolhia a segunda opção  e deixava o almoço no forno até que eles se decidissem.
As palavras de Leda Éster sobre higiene, civilidade, responsabilidade e cooperação pareciam  idiomas exóticos aos ouvidos da dupla; se ela reagia ao descaso, só provocava risinhos abafados e olhares cúmplices.
Quando resolvia apelar com gritos, ameaças de abandono do lar ou de expulsá-los, eles reagiam assim: por um dia, mas só por um dia, acontecia o milagre. Faziam aquela faxina, e quando ela chegava, se desmanchavam em gentilezas, juras de eterno amor filial. Diziam-se exaustos, arrastavam Leda Éster pela acasa, mostrando as maravilhas que tinham feito, o cheiro de limpeza, o brilho do assoalho, as camas arrumadas! O mais velho insistia em carregá-la no colo, a filha tinha lavado todas as calcinhas e fizera tantos exercícios de matemática que criara calo nos dedos. E mostrava orgulhosa a mão sacrificada.
Em dias como esse, Leda Éster não acreditava quando via os dois debruçados sobre livros e cadernos: um na escrivaninha do quarto, o outro na mesa da sala, a TV e o aparelho de som desligados. Tudo terminava com os três no sofá, diante da televisão devorando pipocas até adormecerem.
Mas no dia seguinte - e para Leda  Éster nada podia ser pior do que isso depois da trégua -, a vida voltava ao ritmo normal. Como se a trégua tivesse sido um sonho bom, um momento iluminado, mas do qual eles não guardavam a mínima lembrança.
Havia um sério problema aí, não era possível. E não era falta de amor. Excesso, talvez? Mas o amor não impedia de achar os filhos descuidados, relaxados e egoístas, falava Leda Éster para o analista, querendo entender. Este lhe dissera uma vez que quarto de adolescente é igual à cabeça deles. E sugeriu que se desligasse da vontade de pôr ordem na bagunça,  visitando o menos possível aquele território. Mais lá na frente, era provável até que sentisse saudades de tudo isso.
--Podia até ser, suspirou ela diante da prolongada adolescência dos filhos amados.

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