O Filme Francês :: Francisco Seixas

Il était une fois un petit garçon...

Acabei de estacionar a bicicleta na calçada à frente do cinema. Abaixei o pedal, desafrouxei as cordinhas que prendiam as latas dos filmes no cesto adaptado sobre a roda da frente. Apanhei as latas e, com algum esforço, entrei e me dirigi à sala de projeção. Subi a escada e, lá no alto, a porta estava como sempre: fechada. Ali era a fortaleza inexpugnável do Santos, o Operador. Ninguém entrava sem ele autorizar. Bati mas não houve resposta. Atrevi-me a entrar. O Santos não estava, embora já tivesse que estar montando o programa daquele dia. Deixei as latas num canto da sala, fechei a porta e desci a escada. Enquanto me encaminhava à sala da gerência, ia pensando no que acontecera.

Na estação, ao contrário da languidez típica das estações ferroviárias, acontecia um corre-corre geral. Parece que estava vindo um Expresso Especial trazendo um político, militar, padre, sei lá o que... A linha precisava ser desimpedida o mais rápido possível. Por isso, a carga e descarga do vagão dos Correios estava sendo feita a toque de caixa. Sinfonia de gritos, apitos agudos e fungados de marias-fumaças.

Quando, na sala de encomendas, fui receber o filme programado, notei que havia algo estranho. Não era o filme contratado, o que constava na minha relação para receber naquela data. O que fazer? Recusar? Era o que deveria ser feito. Mas pensei na fita da noite passada que eu já havia deixado na Sala  dos Despachos e que, naquele momento, já devia estar bem acomodada no vagão dos Correios aguardando o seu próximo destino... Se recusasse, não haveria cinema naquela noite. Na época, não havia televisão e as ondas curtas do rádio traziam mais ruídos para nossos ouvidos do que qualquer outra coisa. Também não havia parque de diversões nem circo aquela semana. Futebol, só no domingo. O cinema era a nossa porta única para o mundo exterior.

- Quer saber de uma coisa? Vai este mesmo!
Olhei para as latas. Vi o título em francês, com a tradução. Não me lembro mais do nome e também não quero inventar um para vocês.

Estou agora na porta da gerência.
- Dá licença, Seu Rangel?
Entrei e expliquei o ocorrido. Fiquei aguardando a bronca. Tomara uma decisão por minha conta e, naquele tempo, não era facultado aos meninos pré-adolescentes como eu decidir sobre muita coisa.
Seu Rangel pensou por alguns instantes e disse:
- Você fez bem.
Senti um grande alívio.
- Vamos lá ver o filme! Você vai ver comigo!
- Eu? Perguntei, espantado.
- É sim. Vamos ver juntos. Mas não conta pra ninguém!
- Juro que não!

A minha surpresa era porque os filmes franceses tinham fama de “indecentes”, o que hoje quer dizer alguma coisa como “erótico”.

Chamaram o Santos para fazer a projeção. Vimos o filme. Era um policial e, para minha grande decepção, não houve nenhuma cena mais picante e não apareceu nem mesmo um joelhinho, nem mesmo um decotinho mais generoso. Mas até que o filme era regular, segundo meu gosto juvenil.
- Dá pra passar! Disse o Seu Rangel.
Só havia um problema. Não viera ficha técnica e, no filme, além do título, não era mostrado nenhum crédito.
Nem mesmo Seu Rangel, que sabia muito sobre cinema, conhecia os atores:
- Nunca vi esse povinho!
Foi chamado o Paschoal, o cartazista ou fazedor de tabuletas, que era o encarregado pela publicidade.
- Seu Paschoal, dê um jeito nisso!
- Pode deixar!

O Paschoal era meu primo, um pouco mais velho que eu. Terminara o ginásio em um dos primeiros lugares. Era boa pinta, inteligente e habilidoso. A família até se cotizara para mandá-lo para o Rio de Janeiro a fim de continuar os estudos. Sonhavam vê-lo doutor e importante.

Só que, chegando ao Rio, o Paschoal adquiriu novas habilidades, tais quais a de jogador de sinuca e a de desencaminhador de moça de família. Ainda mais, diziam alguns, que andava na companhia de comunistas. Por este motivo, fora devidamente reconduzido à tranqüilidade  do interior das Gerais e ao seio de sua família. Antes mesmo de descer da charrete, vindo da estação, o pai já lhe gritou da janela:
- Vai ter que arrumar emprego!
Como era bom em trabalhos manuais e marcenaria, passou a fazer tabuletas para o cinema. Colava cartazes e fabricava estrelinhas de tecido colorido.

- Pode deixar! - repetiu o Paschoal.

Tive que ir embora pois já era hora.  Almoço com a família e depois grupo escolar. À mesa e em silêncio, pois conversar ou ouvir rádio fazia mal à digestão. Outros diziam que era uma hora sagrada e barulho era falta de respeito.

Logo que pude, corri ao cinema para ver o que teria feito o Paschoal.

Lá estava sua obra.

O título, e logo abaixo: AVEC. E vinha em seguida a relação dos atores e até o nome do diretor. Só que ele tomara emprestado o nome de alguns tipos populares da cidade e os traduzira “ao pé da letra” para o francês. Assim, o Chico Canivete virou François Canif, o Toninho Raposo virou Antoine Renard, a Maria Água Fria virou Marie L’Eau Froide e o Jacó Preguiça, Jacques Lézard. Daí para mais.

A noite, o filme foi exibido. Uns gostaram, outros não. Mas o melhor foi no outro dia, na barbearia, quando ouvi os seguintes comentários:
- “Aquele François Canif trabalha muito bem!”
- ”A tal Marie é realmente muito bonita!”

Há muito tempo que o cinema não mais existe. O Paschoal não se casou e tampouco voltou ao Rio, nem a passeio. Ainda hoje mora no interior. Seu Rangel, Santos, François, Antoine, Marie e Jacques já se foram, embarcados em nunca mais. Porém,  restou esta historinha que hoje resolvi contar para vocês, antes que eu também me vá.

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