Olho por olho e dente por dente :: Francélia Regina Siqueira

 “Ouviste o que foi dito: olho por olho dente por dente. Eu, porém digo-vos: Não oponhais resistência ao mal.
Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda”.

(Mateus 5, 38 – 42)

Quase cinco anos se passaram. A cadeira era a mesma. As estantes eram as mesmas. Os livros, salvo algumas substituições e poucas aquisições, eram os mesmos. As revistas, estas sim, muda capa entra mês sai mês, mas a superficialidade e pobreza de conteúdo eram as mesmas, aliás tudo ali já lhe parecia pobre e superficial depois de três anos.   
As caras, também as mesmas, protagonistas de acontecimentos antológicos. Em planos passados, pretendia escrever um acumulado de crônicas que serviriam de alento a anos de humilhações, desaforos, submissão e ao deleite do amigo Fernando, que conhecia a fundo a rotina daquele serviço. Passavam horas discutindo e listando os episódios merecedores de tal recolha. Alguns eram clássicos como o dia em que ela quase apanhou do velho alemão: Seu Erick.

Livro de crônicas

Devaneios de uma bibliotecária em pé de guerra com os leitores

Capítulo 1 - “Não bebo, não fumo e não nano!”

- “Não bebo, não fumo e não nano!” – disse-me fazendo com a mão um gesto insinuante que explicava sua condição celibatária. Seu Erick tinha aproximadamente 65 anos e contava aos quatro cantos que tinha sido soldado nazista na 2ª GM, talvez para justificar atitudes pensadas e não fruto de devaneios de um velho esclerosado. Ao adverti-lo que não é muito comum estrangular jornal, Seu Erick gritou coisas desconexas:
“BRASILEIRO FILHO DA PUTA QUER ROUBAR MEU DINHEIRO. QUER ME ROUBAR. NON TEM DINHEIRO. FILHA DA PUTA SUA MÃE.” – tudo isso enquanto jogava outro exemplar do mesmo jornal na minha cara. Jesus, Mary e Joseph, é hoje. Planejei: quando ele vier me bater eu finjo que desmaiei, quem sabe ele acredita e vai embora, ou seria melhor bater nele também... ahhhh não ele é grande... mas eu posso passar por baixo das pernas ou quem sabe... não... ou.... não...

É... esse dia foi de fato memorável. Pobre coitada! Não precisamos explicitar aqui a condição vexatória a qual ela foi inserida. Ficou à mercê de possíveis sopapos oriundos do alemão. Agüentou tudo calada, quando na verdade gostaria de ter duelado com a loucura do agressor e respondido à altura, com direito também a sopapos e palavrões.
  
Capítulo 2 – “O coveiro literato”

Mais um dia de labuta, o que naquela época não me incomodava nem um pouco, pelo contrário, estava neste tão almejado emprego há pouco tempo e cheia de gás. Em fevereiro de 2003 acontecia na primeira quinzena uma exposição sobre esportes radicais. Na biblioteca em especial fizemos uma pequena exposição com dez livros sobre o tema, passíveis de empréstimos. No segundo dia do evento “fechei” a biblioteca – ressalto que trabalho numa biblioteca com arquitetura atípica, sem paredes, portanto de fácil acesso a qualquer um, a qualquer hora em qualquer dia - seria melhor dizer então, que cumpri minha jornada e antes contei nove livros em exposição, pois um havia sido emprestado no dia anterior. Dia seguinte, antes de começar minha jornada contei, como quem não quer nada, novamente os livros e percebi que estavam expostos apenas sete. Muito espalhafatosa que sou, mas apenas quando tenho razão, fiz um escarcéu. A todos que eu encontrava e que me perguntavam, desfiei um rosário.
Uma semana mais tarde soube que o meliante foi pego com a boca na botija. Alguém viu livros da biblioteca em seu armário. O cara passou por uma revista moral e confessou que enterrara boa parte da mercadoria num galpão que temos, inclusive os dois livros da exposição. PODE?! Não preciso nem dizer que o cara foi despedido. A situação é muito incomum, gostaria de contar este fato à minha professora de “Disseminação da Informação” da faculdade que cursei. Toda semana era a mesma baboseira, parecia que nós estudantes de biblioteconomia tínhamos toda culpa pela falta de cultura do país, onde não se lê porque o livro é muito caro, porque muitas pessoas ainda são analfabetas, porque as bibliotecas não estavam devidamente preparadas para incentivar o hábito de leitura... Imaginava a cara dela se soubesse que eu trabalhava em uma biblioteca onde uma pessoa roubava sumariamente livros e enterrava parte deles, para satisfazer um fetiche sim quem sabe, mas não haveria de negar a cultura do ato, o objeto roubado não era um botijão de gás, uma galinha, uma camisa no varal, um carro, um banco, etc... ele roubava a galinha em “A vida íntima de Laura de Clarice Lispector”; o carro em “Ensaio sobre a cegueira de José Saramago” , a camisa no varal de “Abril despedaçado de Ismail Kadaré”; quem pode entender a poesia do ato? Não estou de maneira alguma incentivando o vandalismo nos acervos de bibliotecas, mas vale aqui uma pausa para reflexão: Uma pessoa ganha pouco, mal pro sustento e rouba livros. Nem tudo está perdido, ou está?
       
Os amigos de trabalho comentavam que o “zelo” da bibliotecária não passava de uma neurose sem limites, que ela devia dormir e acordar pensando nas encadernações do acervo, que não devia ao menos ter uma vida sexual ativa porque só implicava com os leitores inadimplentes, muitos deles funcionários, e diziam mais, que o funcionário do episódio acima fora destituído do cargo injustamente e por causa dela. Louca, sem sexo e recalcada, o verdadeiro estereótipo da bibliotecária.

 

O Livro de auto-ajuda

Outro projeto era escrever um livro de auto-ajuda, quase sempre respondia à perguntas descompensadas, escutava frases idiotas, calava-se mediante um insulto, ora pesado, ora ridículo. Pensaram também em coletar frases, dignas de livro, ex: quando isso acontecer, não faça isso... faça aquilo, coisas do gênero.

Livro de auto-ajuda: Contando até dez.

Quando alguém te perguntar “Isso é uma biblioteca?” responda de forma paciente e cordial : “Não! É a sessão cultura dos ‘Achados e Perdidos´ doTriângulo das Bermudas”.

Quando alguém te perguntar “Você trabalha aqui?”, responda “Não. A dona da casa saiu e eu estou de diarista”.

Quando alguém perguntar “Tem Playboy?”, responda: “Tem sim! Sua mãe está na capa e é bem gostosa hein...” DICA: diga enquanto movimenta as sobrancelhas de forma insinuante e descarada.

Quando alguém perguntar “Posso pagar o estacionamento aqui?” responda: “Estacionamento do quê? Que carro é o seu? Ah... então é o que acabaram de bater... faz o seguinte: pode ficar com o dinheiro”

Quando alguém perguntar “É só isso? Que pobreza!” – refererindo-se ao acervo, responda – “Agora que você já leu os 3.000 títulos, ganhou um exemplar original do compêndio de sistemas avançados em software e hardware da repinboca da parafuseta em Isis e Winisis e uma gravação da caixa preta da Santa Ceia antes da tocaia  que Judas Escariotes  armou pra Jesus”.

Falta contar inúmeros acontecimentos hilários desses cinco anos: a professora de classe média alta que roubava revista enquanto puxava assunto qualquer; o homem que nasceu um dia atrasado, pois sempre pedia o jornal do  dia anterior e não lia o do dia pra poder pedir no dia seguinte, o sósia do Daniel Azulay que sempre pedia pra ver o jornal de domingo, sessão de empregos, na sexta da semana seguinte; o tarado que lia (fingia) jornal de pé pra ver melhor a bundas das menininhas e por aí vai...
Aliás, o que queria essa moça quando fez biblio... biblioteco o quê mesmo? Ah... lembrei Biblioteconomia! Venhamos e convenhamos, que ela não nos ouça, mas cá entre nós: precisa fazer curso superior pra guardar livros? Este país é uma merda mesmo!

Voltar Subir