Quando o sol se escondia atrás da serra, e o céu se tornava
avermelhado, Albuquerque, ou melhor, doutor Albuquerque, pegava atrás
do armário, de ferro, a sua cadeira de espreguiçar e a colocava
na varanda da delegacia. Afrouxava o nó da gravata, desatava o
laço do cardaço do sapato; a cinta, ele também laceava;
uns três furos, sentava-se e divagava no horizonte. "Céu
bonito", pensava, "céu de paz". Muita paz por sinal.
Principalmente para quem se preparou a vida inteira para conflitos. Não
conflitos armados ou de carnes e ossos. Não! Conflitos intelectuais.
Onde era preciso ter miolo bom para desvendar o início das coisas
e se chegar ao merda.
Na faculdade de Direito, se esforçou, sempre, para ser o melhor,
e foi. Mirava-se em grandes delegados de polícia. Homens que conduziam
equipes enormes; às vezes, para desvendar crimes que aconteciam
de uma hora para outra. Crimes nascidos nas conseqüências de
um pequeno atrito. Ou elaborados com antecedência; pela ganância;
inveja; ruindade, e, que tinham como meta, passarem desapercebidos pelo
seu tempo. E a cada elucidação, a cada conclusão
de inquérito, Albuquerque vibrava e direcionava a sua vida para
esta profissão.
Sentado na varanda, alimentando o seu cérebro com histórias
passadas, doutor Albuquerque, às vezes sofria, às vezes
ficava apático, e sempre, sentia raiva de estar em uma cidade onde
o cidadão era ordeiro. Onde os crimes não aconteciam, e
para azar o seu, nem ladrão de galinha existia naquela cidade;
que ficava pra lá um pouco de Pirapora. E era São Paulo,
cidade famosa, também, pelos seus crimes.
Pensava, "...eu vim parar justo aqui, nesta parte do globo, onde
as pessoas se dedicam a andar na linha... De que me valeu queimar a pestana,
passar noites e noites em claro, para solucionar os problemas nos testes.
Fazem quatro anos que estou aqui, e nunca assinei nada que não
fosse folhas de cheques, para a lojinha do tanaga. É um japonês
amigo meu. Para vocês terem um idéia do meu sofrimento em
querer elucidar um crime, já investiguei a vida do tanaga de cabo
a rabo, poderia ser ele um membro da Yakuza, poderia ser um clandestino...
E o que descobri?... Nada. O japonês é gente boa, aliás,
como sempre pensei. Quando este sol vai sumindo lá longe, e eu
aqui, me espreguiçando, sabendo que, tantos crimes estão
sendo bolados, estão acontecendo, sendo desvendados, me causa um
certo desconforto profissional. Imaginem o caso do maníaco do Parque,
que crime lindo, que investigação precisa, as elucubrações
que se seguiram, a eloqüência nas palavras que foram empregadas,
tanto por parte da acusação, quanto por parte dos advogados
de defesa; apesar de tudo, aquele bosta, tinha que ter um advogado de
defesa, e finalmente o desvendamento. O escondido, exposto. É uma
maratona cansativa, mas linda. E o escândalo da Mônica Lewisk
e Bill Clinton, que trabalho de investigação profissional,
para vocês verem, a coisa saiu do mundo visível a olho nu
e foi para o mundo microscópico. Acabou num espermatozóide
ressecado que Bill deixou escapar fora da vulva de Mônica. Quando
penso nestes processos investigativos sinto forças para continuar
nesta carreira. Só não posso olhar o meu dia-a-dia nesta
cidade dos santos. Ultimamente andei relendo o crime da rua Cuba, e me
pergunto: como alguém pode ter uma mente suja, ao ponto de chegar
a este extremo, e, se está mesma mente for humana, como não
há nenhum gene assassino aqui em minha cidade?... Vejam o caso
do Paulo Maluf, que inveja da promotoria, que inveja dos delegados envolvidos
no caso para ver se o camarada é ou não culpado. Um caso
que envolve policiais, banqueiros, juizes da Suíça; gente
de Genebra; que palavra linda, empresas brasileiras, dinheiro de merendas,
transferências de dólares, paraísos fiscais, sonegação,
peculato... Um caso que envolve leis de vários países, processos
com mais de mil caralhadas de folhas. Tô na profissão certa.
Agora, este lugarzinho que vim parar é que ta me doendo o saco".
Passa as mãos nos cabelos, pega o distintivo de delegado, esfrega
nas coxas, o bicho reluz, parece ouro, levanta para o alto e vê
no céu avermelhado com fundo azul o brilho da justiça em
suas mãos. Sente uma certa dose de vaidade, e em seguida um tédio,
ao perceber que tem o poder mas não há lugar naquela miserável
cidade para aplicá-lo. As pessoas não o vêem como
um delegado, e sim, como mais um servidor do Estado, mamando nas tetas
do governo. Ele não fazia porra nenhuma. O povo também não
fazia porra nenhuma. Todo mundo naquele canto só deixava a vida
passar. Não tinha um xarope de um adolescente transviado. Não
havia uma puta na esquina, os fazendeiros viviam quietos, os povos sem
terras não invadiam bosta de fazenda nenhuma. Se a cidade tivesse
um corno, este seria conformado, porque, denúncia não havia.
Nem CD pirata passava por ali, as bugigangas chinesas tinham sumido, depois
da prisão do contrabandista Law Kim Chong. "Este foi outro
caso que fez doer o meu cotovelo. Vejam só: A polícia Federal
monta a operação ANACONDA para investigar a pirataria e
no decorrer daquele magnífico caso se depara com nome de juizes,
com nome de delegados vidas tortas, policiais, políticos, enfim,
os camaradas são acusados de vender sentença a criminosos,
e ainda, por cima das maracutaias, tem ramificações no contrabando...
Agora eu aqui, nesta cidade entregue ao marasmo, ao bem-estar, a paz;
no sentido amplo da palavra..."
Mas, Albuquerque tinha lá no fundo da alma um cisco, um fiasquinho
de pressentimento que devia ter algo muito errado naquele fim de mundo.
Só não sabia se estava delirando ou tendo presságio.
Ficou em pé, olhou-se e se perguntou: "por quê a gravata;
por quê a calça de tergal, os sapatos de couro, a camisa
social e o paletó; com corte bem feito?"... Ninguém
aparecia, e há muito tempo trabalhava sozinho; dois guardas que
lhe dispuseram ele dispensou. "Ronda na cidade? Pra quê? Para
os contribuintes ficarem cochichando, caluniando?... Melhor para o Estado
pagar somente um salário". Enfiou a mão direita por
dentro da calça e colocou o pinto para o lado esquerdo, olhou novamente
o horizonte; agora sem a presença do escarlate celeste, apenas
o azul e as estrelas, que já começavam a aparecer.
Sentou-se novamente e dormiu ali mesmo.
As portas da delegacia ficaram abertas, o seu carro com a chave no contato
e destravado permaneceu ali também. E nada de anormal acontecia
na porra da cidade. Albuquerque sonhou com potros, bois reprodutores,
sêmen campeões de fertilidade, tubos de ensaios, fumaça
de gelo seco, vozes que ecoavam como se estivessem em um leilão,
e por último, a imagem que ficou foi a ejaculação
de um boi Nelore. Virou o rosto para o jato não lheacertar.
Acordou assustado e intrigado.
Um pernilongo que sugava o seu sangue, foi abatido em pleno vôo,
quando tentava escapar. Interrogações começaram a
brotar nos miolos daquele delegado. Lutava contra o bem que estava lhe
causando tanto mal. Travando a sua mente e não lhe dando oportunidade
de expandir os seus conhecimentos. Mas, algo neste sonho dizia que, ele
tinha pego na ponta do fio da meada. Eram três horas e dez minutos
da madrugada, resolveu ficar por ali mesmo e aproveitar a cabeça
ainda com o sonho lhe dar mais alguma dica, um trisquinho de informação.
Sabia, dentro da sua alma, que o grande crime, que abalaria a sociedade
brasileira, estava para ser descoberto por ele, um delegadozinho que ninguém
botava fé mas, que soube esperar o momento certo para sair da pacata
cidade, e ganhar notoriedade mundial.
Respirou fundo, estremeceu ao se ver em manchetes de jornais do mundo
todo. Tentou se acalmar, ficou quietinho, bolinando dendritos, axiônios;
neurônios. Chegou a ir de encontro a um quark, tamanha era a sua
concentração. Esperou ali, calado, surdo, mudo, em estado
vegetativo.
Quando o primeiro raio de sol ficou no eixo de seus olhos, ele levantou-se,
espreguiçou, olhou para o céu, disse: Rumo à mídia
mundial.
Foi para casa, deixou a delegacia aberta, o carro com a chave no contato.
Sabia que crime pequeno, naquela porra de lugar, não acontecia.
Mas, se seus presságios estiverem certos...
Chegando em casa tomou um belo de um banho, fritou bacon, ovos; cortou
vários pedaços do pão, fez um suco de serigüela;
montou a mesa para receber uma celebridade. Ele.
Saiu. Foi bater na Fazenda SÊMEN DE OURO. Chegando lá, falou
com o administrador, tirou algumas dúvidas. Foi levado para o laboratório,
onde o funcionário explicou-lhe, neste ambiente ocorriam testes
de várias raças, por ex: Nelore com Limousin, Guzerá
com Zebú, reprodutores puros, da raça Chianina, com as vacas
Zebuína; para obtenção de mestiços para o
abate...
-...enfim, delegado, estamos aprimorando raças, e não é
a toa que o Brasil está, senão o melhor, entre os melhores
rebanhos de gado para o corte do mundo.
O doutor Albuquerque ficou admirado com tamanha tecnologia de ponta existente
no fim do mundo. Olhou o laboratório de ponta-a-ponta, viu uma
porta de frigorífico, perguntou:
- E ali administrador? - apontou para a porta.
- Meu nome é Messias doutor... Ali... - vacilou - Ali, estão
amarzenados sêmens de bois do mundo todo.
- Podemos entrar lá Messias.
- Doutor, lá não é possível, pelo menos durante
três meses. É o prazo de isolamento que se faz necessário,
para não haver contágio.
- Bem... Tudo legal... Já vou, tenho serviços na delegacia.
Quando o doutor Albuquerque cruzou a porteira, Messias o administrador
coçou a barba.
Depois de percorrer quatro quilômetros o doutor Albuquerque parou
o carro e fez várias anotações. Ressaltou, sublinhando
a frase, sons estranhos.
Seu destino, agora, era a fazenda TUDO POSSO, ficava a uns trinta quilômetros.
Seguiu.
Estava dentro do laboratório, ouvindo o administrador lhe explicar
os processos para obtenção de uma raça pura, de uma
carne saborosa, e um leite com pouca gordura e com nutrientes de primeira,
quando um bicho estranho lhe cutucou o pé, olhou, se assustou.
Era a cabeça de um gato no corpo de um carneirinho ou cabritinho,
pequenino. Doutor Albuquerque gelou, o administrador enxotou o bicho,
que entrou por uma porta, o delegado foi atrás, mesmo com o administrador
querendo impedir. O susto foi grande, o delegado, quase desmaia de pavor.
Numa espécie de curral, estavam vacas com cabeças de cavalos,
bois com cabeças de burros, galinhas com cabeças de lagartos,
lagartos com cabeças de macacos, e o que mais chocou, foi ver um
corpo de homem, com quatro patas. Um Sagitário. Um centauro.
Assim que tomou fôlego, e a sua respiração voltou
ao normal, doutor Albuquerque autuou os proprietários, e saiu em
disparada. Sentiu medo. Agora o crime o queria, para ser o fato do dia.
Chegou na delegacia, ligou para os seus amigos delegados, e para toda
a imprensa. Deixou o carro no posto para ser lavado, e encerado, correu
para a sua casa, tomou um belo de um banho, pegou o melhor paletó,
vestiu. Voltou para a delegacia.
Três horas depois dos telefonemas, a cidade se acendeu, carros de
polícias, carros da imprensa; com antenas para transmissão
ao vivo, e até a imprensa estrangeira; como ele havia previsto,
apareceu. Doutor Albuquerque estava agora em todas as manchetes dos jornais
escritos, falados, televisados e on-line. Conseguiu desbaratar uma quadrilha
de cientistas do mal, naquela cidade onde não acontecia porra nenhuma.
Tudo tem que ter equilíbrio, como na natureza. Nem muito sol, nem
muita chuva.
Se, há muita paz, prepara-te; vem guerra. Se há muita guerra,
verás a paz.
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