“Mas eu te amo, Carol… eu te amo muito…”. Carol, olhos marejados de lágrimas, virou-se em corrupio para a parede deixando os seus compridos cabelos loiros esvoaçarem em uníssono com o saiote branco imaculado, rendas e lantejoulas, cobrindo os olhos esverdeados com as palmas das mãos. Tião, assim se chama o exaltado caipira, acerca-se dela e, mãos nos seus alvos ombros expostos, sussurra-lhe no seu arrastado sotaque “E te vou fazer muito feliz, eu prometo…” e foi aí que Carol não aguentou mais, abraçando-o, primeiro em convulsões de choro, depois num beijo apaixonado de baba e ranho, daqueles de trinta segundos inteirinhos em close-up, enquanto desciam ambos os corpos já para a horizontal na palha estendida no chão, deixando ele já antever o peito rapado e musculoso como qualquer campino que se preze e deixando ela casualmente a blusa escorregar para por debaixo da mama semi-coberta de rendas e casualmente também fazendo o saiote subir descobrindo a coxa até às amígdalas.
Foi aí que Custódio, instintivamente, levou a mão a entre pernas e, como de costume, nada mais descobriu que não fosse pano e a fralda por debaixo do pano, por sinal já úmida. Voltou a pousar as brancas mãos esquálidas pintalgadas de manchas castanhas sobre a manta que lhe cobre as pernas e, como de cada vez que se excitava, ficou ali a meio sorriso só perceptível no olhar maroto a modos que a saltitar no cadeirão. Ele sabia perfeitamente que nada de extraordinário para além de uma mijadela involuntária ou uma infecção ocasional lhe poderia acontecer da cinta para baixo mas, mesmo assim, gostava de conferir as coisas. A vida tinha sido madrasta ao ponto de o deixar durar até aos oitenta, sendo que os últimos cinco tinha ele passado inteirinhos naquele cadeirão, exceto nos dias de médico, alturas em que lhe apareciam os rapazes dos bombeiros que o levavam em braços, cadeira de rodas e tudo até à ambulância, dias em que recebia cumprimentos de todos os que, à falta de melhor para fazer, se alinhavam viela fora para o cumprimentar “Olá Senhor Custódio, você está cada vez melhor!” para de imediato se virarem para quem quer que estivesse ao lado dizendo “Coitadinho, mais valia Deus levá-lo, era uma obra de caridade…”, enquanto Glória, a sua esposa, vinha atrás, atarefada, sacas nas mãos, medicamentos, fraldas, pijamas – nunca sabendo se Custódio iria ficar pelo hospital – e entrava de rompante para a ambulância, sem cumprimentar ninguém.
Glória, por sua vez, tinha desenvolvido a arte do autismo. Enquanto trabalhava o seu crochê ou preparava a tigela de papas para Custódio, sempre de olho no televisor, vivia ainda uma espécie de nevoeiro que a transportava quase sempre a tempos idos, tempos de juventude que faziam aparecer um sorriso disfarçado entre as pregas da pele que lhe rodeava uma boca já disforme e imóvel, a mesma boca que Custódio beijara sofregamente naqueles raros momentos em que não estava a trabalhar lá longe, num lado qualquer de nome estranho e moeda de valor que lhe enviava mensalmente pelo correio. Custódio tinha já sido um provável Tião e ela uma Carol que se deixavam deslizar lençóis abaixo envoltos em perfumes suados e cúmplices, tinham já amado e sido amados, um pelo outro, os dois pelos filhos que agora, cada qual para o seu lado, não aparecem nunca.
“Ah!... Tião! Você promete que não vai me deixar nunca mais?... Jura?”, teria um dia perguntado Glória. E Custódio nunca mais a deixara.
Foram duas vidas que se encontraram mais no infortúnio que na felicidade pois esta, a existir, deveria ser sempre a dois. O que, na maior parte do tempo, não aconteceu. Haviam cartas, haviam vales postais, haviam curtas férias passadas em churrascadas e obras na casa, haviam os passeios a Fátima e à Corunha, haviam os ocasionais casamentos e batizados em que ambos estreavam roupa nova, haviam as passagens de ano escolar dos filhos em que um relógio ou uma caneta de tinta permanente eram oferecidas – “Assinar um cheque com uma caneta destas não é para qualquer um… nem fazer um exame da escola. Vê se a tratas bem!”, diria Custódio ao seu filho mais velho centenas de anos atrás. –, haviam ainda esses tais momentos de sofreguidão, a sofreguidão da despedida, mais que a da chegada, como se quisessem assim compensar adiantadamente tudo o que não iriam ter um com o outro nos tempos próximos. E assim se criaram dois filhos que são doutores, e assim se pagou uma casa que, outrora cheia de vida, se resume agora a um sarcófago de duas vidas.
Lá ao longe, um trovão estremece o céu, apagam-se as luzes que reacendem segundos depois. O televisor apaga-se. Glória apressa-se a ligá-lo e senta-se no sofá retomando o seu crochê. Olha para Custódio que está imóvel. O seu olhar vidrado fixa ainda a televisão e, à medida que as imagens se sucedem começa a perder o espelhado característico da presença da alma.
Tião despede-se de Carol, Carol despede-se de Tião. Vai trabalhar para longe, uma vez mais. “Carol… te prometo que mandarei buscar você”. Carol abraça-se a ele uma vez mais, chorando, ao passo que ele, meigamente, se afasta daquele abraço prolongado até às pontas dos dedos, agora em close-up, dedos que finalmente deixam o seu corpo partir para longe, para a terra dos dólares, para o paraíso.
Custódio nunca chegou a saber se Carol sempre foi ter com Tião. Glória olha para ele, imóvel, e pega-lhe a mão fria que passa pela face escavada como ele tantas vezes tinha feito, um milhão de anos atrás, e murmura: “Você promete que manda me buscar?”
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