Meus pais moravam em São Paulo, mas minha mãe voltou para
Campo Belo, cidade natal, quando eu estava para nascer. Depois de certo
tempo, passado toda aquela euforia do primeiro filho, do primeiro neto,
o segundo sobrinho, mamãe já estava mais acostumada com
a nova situação de mãe, voltou para São Paulo,
onde meu pai trabalhava. Voltávamos a casa dos avós sempre
no fim de ano. Lembro-me que viajávamos por dois dias, pernoitávamos
em Cruzeiro, SP para seguir viagem no dia seguinte. Era apenas um neném,
mas lembro-me do local onde ficávamos, parece que era um hotel
popular, pois o cheiro do banheiro era sensível. Durante a cansativa
viagem de trem, a Maria Fumaça, eu lembro perfeitamente das fagulhas
que saiam da chaminé da locomotiva e entravam pela janela daquele
vagão de madeira. Mas ficava bem curioso de observar tudo, paisagem,
movimentação de pessoas... Lembro-me numa dessas viagens,
parece que foi numa das voltas a São Paulo, me encantei com uma
menininha mais velha que eu que me fazia rir muito com suas gracinhas.
Antes de completar dois aninhos, lembro-me que meu pai resolveu mudar
de vez para Minas e confesso fiquei muito feliz.
Chegamos em Minas - meu avô já havia vendido aquela casa
em que eu nascera, por isso ficávamos na cidade, na maioria das
vezes na casa da tia Dolores, ora na casa da Mãe Vó (a minha
bisavó materna). Morávamos mesmo com meus avós maternos
na fazenda cujo nome não sei, pois lá ficamos pouco tempo.
Logo meu avô comprou outra fazenda que foi de meu bisavô um
pouco mais adiante, e bem maior. A Fazenda São João, e a
anterior só me lembro de sempre se referirem a ela como a Fazenda
do Eurico. Lembro sim de lá, da casa, dos cômodos, que eram
um pouco escuros, acho que por causa das árvores frondosas que
havia em volta da sede e por isso entrava pouca luz nos cômodos.
Recordo-me do açude onde tia Gabriela nadava e me levava sempre
e lembro-me da casinha onde a Jane, o Tonho e outras crianças maiores
brincavam de casinha com a tia Gabriela; era no meio do pomar, rodeada
de laranjeiras. Há muitas passagens na lembrança desta fazenda,
que serão narradas em outras narrativas.
A mudança aconteceu de repente, fui me dar conta no dia em que
meu avô chegou comigo no colo, e diante daquele casarão enorme,
olhando e mostrando-me aquelas janelas enormes disse: "filho, isso
aqui um dia será tudo seu!"
Não entendi as palavras naquela hora, entendi que era ali que iria
viver. Nos primeiros dias eu chegava a me perder naquela casa, no corredor,
nos cômodos; e aos poucos fui me acostumando e adorando aquela fazenda.
Tudo era muito alegre, muito movimento e uma vista que não havia
na outra casa. Os empregados, o velho Alexandre, a Mariana, a Dorva, o
Izé, todos vieram se juntar a outros que já trabalhavam
na fazenda. Com essas pessoas conhecidas e familiares minha adaptação
foi mais fácil e aproveitei os anos que seguiram até seguirmos
para o sítio no Morro Grande.
Dos dois aos 9 anos com freqüência experimentei algo que eu
mal conseguia entender e jamais comentar com quem quer que fosse! Sabia
que jamais acreditariam em mim!
Passei boa parte de minha infância no campo, na fazenda de meus
avós, na Mata da Caatinga, município de Campo Belo e em
nosso sítio do Morro Grande, no distrito de Porto dos Mendes, próximo
às margens do velho Rio Grande. Não possuía amigos
da minha idade, crianças além dos irmãos menores
e os primos que encontrava na cidade nas épocas de festas como
Semana Santa, Páscoa, Natal e em outros encontros familiares.
Passava maior parte de meu tempo nos arredores da fazenda, ou do nosso
sítio, caminhando por ali e por acolá. Sempre que podia
me juntava aos mais velhos para ouvir as estórias dos antigos!
Costumava sentar-me ao pé de um frondoso Ipê amarelo que
ficava na porteira em frente à sede, ou me retirava para uma laje
de pedra bruta que ficava no alto de uma serra, de onde contemplava todos
arredores.
Muitas vezes, me vi numa situação fora de meu controle.
Não sei como, saía voando sobre a sede, o pomar, os cafezais,
e meio sem saber... e sem entender como ... eu aproveitava aqueles instantes,
sentindo-me deslizar suavemente pelo ar como os pássaros. Era uma
sensação maravilhosa, confesso... mas assustadora! Eu sabia
não ser uma habilidade normal e passível de entendimento
e compreensão. Por isso jamais compartilhei com ninguém
tais experiências!
Confesso, não era uma situação totalmente sob meu
controle, não acontecia sempre quando eu queria; às vezes
me deparava com a situação quando menos esperava, mas aprendi
logo a aproveitar esses momentos, pois eu sabia de algum modo não
eram comuns. Sentia-me deslizando pelo ar, vendo de cima aquela pastagem
verde sob meus olhos, o gado espalhado pela colina parecia ser pequenas
peças de brinquedo, tinha uma visão de todo o pomar matizado
de pontos amarelos, dos frutos, entre as diversas tonalidades de verde.
Observava, serpenteando sob as árvores, atravessando o fundo da
fazenda, o córrego que abastecia a casa sede e a dos empregados.
Mas eu não ousava sair das imediações... era uma
situação fantástica mas um tanto aterrorizante pois
não tinha o controle total que com certeza os pássaros possuem.
Só me lembro que com um simples esforço de meus braços
e pernas esticadas eu conseguia subir, descer e mudar de direção.
Mas de repente, as coisas foram mudando, meus pais começaram a
se preocupar com o meu crescimento, a necessidade de mandar-me para a
escola, e de uma hora para outra descobri que estávamos para mudar
para São Paulo. Era uma grande mudança, mas sabia que ia
poder freqüentar escolas e tantas outras coisas que eu já
arquitetava em meus sonhos... Sabia que de certo modo que eu deixaria
o meu mundo para trás e sabia que isso não seria fácil.
O tempo foi passando, cresci, amadureci, e nas minhas leituras e busca
de conhecimento aprendi um pouco sobre xamanismo, os estados alterados
de consciência, as experiências fora do corpo, e as outras
dimensões...
Depois de muito tempo, há alguns anos atrás pude reviver
tal emoção de "voar" saindo de meu corpo conscientemente,
como na infância, porém com uma duração menor;
não consegui ir muito longe e retornei. Jamais declarei tal experiência,
somente agora revelo tais registros antes trancados em minha memória.
Atualmente, essa experiência de sair do corpo pode ser vivenciada
conscientemente. Apesar de ser sabido que todos nós, durante o
sono, costumamos sair do corpo e visitar outros lugares inconscientemente.
Porém é raro nos lembrar disso a não ser, às
vezes, como um sonho que tivemos. Atualmente há profissionais que
utilizam técnicas que ajudam as pessoas a vivenciar experiência
assim conscientemente.
(Lembre-se que as experiências que uma pessoa
vive nunca terão o mesmo valor para as demais pessoas, só
para quem realmente a vive, mas em todo caso ousei tirar do fundo do baú
tais lembranças.)
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