O corajoso detetive Totó e sua irmã, Mariana, estão de volta para resolver um caso animal!

O DIA EM QUE O LEÃO FUGIU DA JAULA
Não, vocês não querem ouvir mais uma história triste sobre o artista solitário. Ou querem? Gostariam de conhecer sua vida melancólica, vagando de cidade em cidade, de hotel barato em hotel barato, toda noite depois do espetáculo? Duvido muito.
E, depois, francamente, não gosto de melodramas.
Vamos dizer apenas que eu estava fazendo as unhas do pé, às onze da noite, depois de um banho relaxante. E é claro que era um hotel barato. Felipe sempre quis que eu me alojasse nas tendas, junto com os outros. Eu me recusava. "Mas quem é de circo dorme no circo, bela", argumentava ele, com seu sotaque arrevesado e sua lógica calabresa. "Só que não sou de circo, Felipe", eu contra-argumentava. "Estou aqui só pra cuidar dos cavalos, lembra? Se você me encher o saco, volto pro Jóquei". E então ele cedia, resmungando muito. Como vingança - ô vingancinha barata - soltava uma verba mixuruca de hospedagem. Eu ficava naquele tipo de hotel em que você nunca sabe se o lençol está limpo mesmo.
Enfim, lá estava eu, fazendo as minhas unhas, quando alguém bateu à porta. Fui abrir. Era Felipe, acompanhado de Sebastião e de um homem bigodudo. Mais tarde, fiquei sabendo que esse último era o delegado de Santa Margarida. (Santa Margarida era o buraco onde estávamos, naquela noite).
Vinham me trazer uma notícia terrível. Bertoldo, meu grande amigo Bertoldo, estava sendo acusado de um crime grave.
Assassinato. - Impossível - afirmei, depois de ouvir o delegado. - Ele jamais faria isso. Não o Bertoldo.
- Foi o que eu disse pra eles - confirmou Sebastião. - Você conhece o Bertoldo, Suzana. Ele seria incapaz.
- Io - afirmou o safado do Felipe - lavo as minhas mão, carabinieri. Bertoldo é responsabilità do Sebastião. Se ele não trancou a jaula...
- Aquela jaula precisava ser trocada há vários meses, delegado - afirmei. - Mas o Felipe aqui se recusa, diz que é dinheiro demais. Sebastião avisou várias vezes que não era mais segura.
Felipe me lançou um olhar furioso.
- Só botando os pingos nos is - arrematei.
- Então a senhora acha que o Bertoldo escapou...
- Não acho nada. Pergunte primeiro ao Sebastião o que se passou.
O delegado olhou para o pobre domador, ainda vestido com a roupa vermelha do espetáculo. Fazia um calor danado. Sebastião suava em bicas.
- De fato, Dr. Palmeira, ele escapou. Como o senhor sabe, no domingo nós fazemos matinê. O espetáculo terminou às sete horas. Guardei o Bertoldo na jaula, tranquei direitinho, mas é como a Susana disse: ninguém mais pode garantir aquela jaula. Com um tapa mais forte, o leão sai. Ele já fez isso várias vezes, inclusive. Nunca aconteceu nada de grave... Procurei por ele como um doido. Às dez horas, fui dar uma espiadinha na jaula, e ele já tinha voltado, de livre e espontânea vontade. Agora o senhor me diga: se ele fosse mesmo perigoso, faria isso?
Entrei na conversa, apoiando Sebastião. Mas o tal do Dr. Palmeira não queria ouvir nada. Para ele, o caso era claro: se o Bertoldo tinha fugido da jaula, com certeza era culpado. "Mas ele não tem um pingo de sangue no pelo", lembrou o domador. "Pode olhar se quiser". O delegado lhe deu um olhar enviesado. Vi logo o que estava pensando. Com certeza, achava que Sebastião lavara o bichano, para fugir da responsabilidade.Dormi mal naquela noite. Não gosto de injustiças, e dois amigos meus estavam sendo injustiçados: Bertoldo e Sebastião. A culpa da fuga era do sovina do Felipe, mas Sebastião também podia ir para a cadeia. E Bertoldo... Nem gostava de pensar no que aconteceria com Bertoldo.
No dia seguinte, o bafafá estava armado. O jornalzinho da cidade tinha uma manchete histérica: FERA ASSASSINA MATA PADRE ALENCAR!
Pois é... A vítima do crime era um padre. O Dr. Palmeira prendeu Sebastião. Quanto a Bertoldo, ficou trancado na sua jaula - agora protegida por vários cadeados extras.
Felipe, o dono do circo, fazia de conta que não era com ele. Mas o delegado o avisou que, se tentasse sair da cidade, também seria preso.
Não havia nem clima para espetáculo naquela noite Mas não fiquei à-toa, girando os polegares no quarto do hotel. Liguei para um amigo policial, no Rio. (Santa Margarida fica a cem quilômetros da capital). Expliquei a situação. Ele pensou um pouco e disse:
- Olha, Suzana, o problema é complicado. Você deve ter seus motivos para acreditar na inocência do Bertoldo. Mas é preciso investigar para provar a inocência dele. E duvido que a polícia desse lugar... Santa Margarida, não é? se disponha a isso. Vou te dar o telefone de um cara ótimo aqui do Rio. Ele pode fazer a investigação.
- Um policial?
- Exatamente. Tem uma agência de detetives. O nome dele é Totó.


- Mas por que o senhor não matou ele?
Na minha profissão, a gente se acostuma a ouvir as coisas mais esdrúxulas. Mas Dona Cláudia me fez perder o rebolado:
- Matar o seu marido? Que é isso, minha senhora?
- Se o senhor viu ele entrando no motel com essa vagabunda, porque não completou logo o serviço? Por que não atirou no canalha? Pensei que estava incluído no pacote.
- Que absurdo, Dona Cláudia!
- Quanto o senhor quer, pra dar um tiro nesse infeliz? Eu pago. Vamos. Faça o seu preço.
Começo a suar frio. Meu Deus do Céu! Só me faltava essa agora: Dona Cláudia quer que eu atire no marido dela. Minha nossa mãe! Vou ter de avisar a polícia. Que situação!
- Dona Cláudia, a senhora está enganada. Não fazemos esse tipo de serviço... Quer dizer...
Nesse ponto, o telefone começa a tocar.
- Um minutinho - digo, aflito - Não saia daí, Dona Cláudia! - aperto o botão do aparelho. - Investigações Ferreira, boa tarde.
- Boa tarde - Voz simpática. - Quem está falando aqui é Suzana Morais. Seu amigo, o detetive Lutero, me deu o seu telefone.
Voz macia, mas segura. Tem certo tom de comando.
- Ah, sim, o Lutero.
- Preciso de sua ajuda, Aristóteles.
- Totó.
- Pois é, Totó. Um amigo meu está sendo injustamente acusado de assassinato. O senhor precisa limpar o nome dele.
- Se seu amigo realmente for inocente...
Oba, oba. Assassinato. Finalmente! Mariana vai pular de alegria.
- Ele é, Totó. Tenho certeza que é.
- Onde você está?
- Santa Margarida. Fica a uns cem quilômetros do Rio.
- Hum... Pode vir para cá amanhã? Não gosto de discutir esse tipo de assunto por telefone. Além disso, estou com um probleminha no momento - digo, olhando para Dona Cláudia.
- A coisa é meio urgente... Será que não dava para a gente conversar hoje mesmo? Em três horas posso estar no Rio.
- É que já são seis horas - digo, olhando para o relógio. Coço a cabeça. - A não ser, é claro, que você venha ao meu apartamento hoje à noite. Assim conversa também com a minha sócia, a Mariana.
- Sem problemas.
Dou o endereço. Ela marca a hora do encontro e se despede. Volto a atenção para minha cliente:
- Dona Cláudia, pelo amor de Deus. Tire essa idéia da cabeça. A violência não resolve nada.
- Mas eu quero matar aquele desgraçado!
- Se a senhora continuar fazendo ameaças, eu vou ser obrigado, como policial, a denunciá-la. Qualquer coisa que acontecer com seu marido, a senhora será suspeita.
- Mas o senhor acha isso justo? - diz ela, explodindo em soluços.
Sento ao lado dela e seguro sua mão, enquanto procura o lenço na bolsa de oncinha.
- Trinta anos, seu Totó. Trinta anos ajudando esse cretino, lavando as cuecas dele, cuidando dos filhos, esfregando a barriga no balcão da loja. Aí ele fica rico, e o que faz? Arranja outra mais nova!
E começa a uivar feito um poodle abandonado. Dou tapinhas em suas costas.
- Eu sei, Dona Cláudia, eu sei. É uma ingratidão. Mas se a senhora matar ele, o que acontece? Vai pra cadeia. Já imaginou? Vingança boa mesmo é pegar essas fotos, pedir o divórcio e arrancar um monte de grana dele. O seu sonho não é morar em Miami? Então. Depois do divórcio, a senhora pode passar o resto da vida em Miami, tomando sol. E outra, Dona Cláudia: seu marido vai ficar sem dinheiro pra gastar com a vagabunda. Não é muito mais legal?

Já são quase oito horas quando chego em casa. Ufa! Detetive sofre: além de tudo, tem que bancar psicólogo e conselheiro sentimental. Ainda bem que agora vou dar uma pausa nos adultérios.
Mariana está vendo televisão no sofá. Não me cumprimenta.
- Oi, Mariana.
Ela nem tira os olhos da tela.
- Escuta, temos cliente novo. Vai chegar daqui a uma hora.
- Outro chifrudo? - diz ela, sem me olhar.
- Não. Dessa vez o caso é quente. Assassinato. Vê se bota uma roupa, toma um banho e penteia esse cabelo, pelo amor de Deus. Não queremos espantar a mulher.
Sem dizer mais nada, ele desliga a TV com o controle remoto e corre para o banheiro. Suspiro. Nosso apartamento é minúsculo, com dois cubículos que a incorporadora, não sei por quê, chama de "quartos". Uma cozinha onde não cabem três pessoas (ainda bem que só comemos na rua). Uma saleta com o teto tão baixo que eu, com meu 1,80 m, preciso me abaixar para entrar. E um banheiro que nunca consigo usar.
Bato na porta com toda a força e berro:
- Vê se sai logo, que eu também preciso tomar banho!
Uma hora depois, estamos banhados, penteados e alimentados, esperando o toque da campainha. (Varri as pipocas que Mariana derrubou para debaixo do sofá) .
A campainha toca e vou atender.
Então essa é a Suzana! Interessante. Loira, pequena, mas musculosa; tem cabelos curtos, algumas sardas, e olhos penetrantes e inquisitivos. Parece acostumada a ser ouvida e obedecida.
- Você é o Totó? - pergunta. Seus olhos fazem um rápido passeio pela sala, e eu me congratulo por ter varrido a pipoca.
- E essa é minha irmã, a Mariana. Nós trabalhamos juntos.
- Muito prazer.
Nenhum comentário, verbal ou não, sobre a minha cara de moleque. Estou começando a gostar dessa mulher.
Ela usa jeans e camiseta com elegância inquestionável. Senta-se com ar decidido. Cruza as pernas. Que idade terá? Sem dúvida, mais velha que eu...
- Antes de mais nada - diz, abrindo uma bolsa grande e colorida - gostaria que vocês vissem uma foto do meu amigo. Esse é o Bertoldo.
Passa a foto para mim.
- Mas é um leão!
- Exatamente. Nós somos, por assim dizer, colegas de trabalho.
- Você trabalha num zoológico?
- Não, num circo. Cuido dos cavalos para o domador.
- Que legal - diz Mariana.
- Sempre trabalhei com cavalos. Antes, eu estava no Jóquei. Aí, há uns dois anos, recebi uma proposta desse circo, e achei interessante mudar de ares.
- E foi?
- Mais ou menos... Já está enchendo o saco, porque o dono do circo é um cocô. Talvez eu volte pro Jóquei daqui a algum tempo. Ou vá viajar pelo mundo, de mochila nas costas. Mas antes quero resolver esse caso.
- Conte o que aconteceu - sugere Mariana.
Ela reflete um pouco, e depois começa:
- Foi na noite de domingo. Nós fizemos o espetáculo normalmente. O Bertoldo fez todos os seus truques, sem problemas. Depois do espetáculo, o domador, o Sebastião, trancou a jaula dele e foi dar uma voltinha na cidade. Quando voltou, o leão tinha escapado.
- Meu Deus!
- Não é a primeira vez que acontece. Ele dá um tapa na fechadura e abre a jaula com a pata. Sai da tenda, dá umas voltinhas pelo terreno, se espoja na areia, assusta um pouco as pessoas. Na verdade, ele é muito manso. Nunca machucou ninguém. Se não é pego em flagrante, geralmente volta para comer lá pelas dez horas. Nunca aconteceu nenhum acidente.
- Mas como é que o domador deixa uma coisa dessas?
- Ele não deixa. O coitado do Sebastião tentou várias vezes reforçar a fechadura. Mas o leão sempre consegue fugir. Isso vem acontecendo há meses, porque o sovina do Felipe, dono do circo, se recusa a comprar uma jaula nova. E quando aconteceu esse... acidente, quem pagou o pato? O Sebastião, é claro. Está na cadeia.
- Mas se o dono se recusou a trocar a jaula - digo eu - a culpa é dele, não do domador. O Sebastião precisa de um bom advogado.
- Precisaria - se o Bertoldo fosse culpado.
- O que nos leva de volta ao crime - digo, pegando um velho caderno de Mariana de cima da mesa, e começando a fazer anotações para impressionar a cliente. - Quem foi a vítima, afinal?
- O padre de Santa Margarida. Padre Anselmo Alencar. Ele foi encontrado numa rua deserta, perto do circo, com a cabeça esmigalhada. O médico que examinou o cadáver diz que os ferimentos podem ter sido causados por um animal de grande porte. Mas eu descobri que nem legista ele é. Não me parece muito seguro do que está falando.
- Então, qual a sua teoria?
Ela abre os braços, perplexa:
- Não tenho a mínima idéia. Por isso vim procurar vocês.
- E já lhe ocorreu - digo, olhando fixamente para ela - que o seu amigo Bertoldo (mas que olhos azuis fantásticos!) pode ser mesmo culpado do crime?
- Ele não é.
- Como você sabe? O bicho estava com fome. Era hora da refeição, lembra? Você diz que ele costuma vagar pelo terreno do circo, mas nessa noite pode ter ido mais longe, encontrado o padre...
- Escute, eu conheço o Bertoldo. Ajudava o Sebastião a cuidar dele. Até entrava na jaula! Ele nunca me atacou. Está velho, coitado, e morou praticamente a vida toda no circo. O bicho é inofensivo. É um gatinho!
Olho de novo para a foto, em dúvida. Gatinho? O bicho não me parece tão inofensivo. Inclusive está rugindo.
- Manso ou não, Suzana, é um animal selvagem, e muito forte.
- Depois que eu fiz amizade com o Bertoldo, comecei a ler sobre os hábitos dos grandes felinos. Um leão, e ainda mais um leão domesticado, dificilmente ataca um ser humano sem provocação. Ou se não estiver realmente esfomeado.
Minha cara ainda deve exprimir dúvidas, porque ela insiste:
- Totó, nos seis meses em que a fechadura da jaula está bamba, ele já escapou em várias ocasiões. Nunca foi longe, nunca atacou ninguém. Por que mudaria esse padrão, de repente?
- E por que não mudaria?
- Escute, não estou pedindo para você provar a inocência do Bertoldo a qualquer custo. Só peço que investigue o caso, sim? Descubra o que aconteceu.
- E não vai ficar aborrecida, se eu descobrir que o leão matou mesmo esse padre?
- Aborrecida eu vou ficar, porque o coitado vai ser sacrificado. Mas pago você do mesmo jeito. Então? Topa?
Olho para Mariana, que articula silenciosamente com os lábios: "Aceita, imbecil!".
No dia seguinte, estou em Santa Margarida.

Santa Margarida é um buraco - Suzana já tinha me avisado. No máximo umas trinta mil pessoas, segundo o último Censo. E se pelo menos fosse uma cidadezinha simpática... Nem isso. Ruas poeirentas, casas feias e quadradas com portão de inox, edifício da Prefeitura precisando de reforma, comércio fraquinho... Que droga de cidade!
Minha primeira parada é no consultório do Dr. Furtado - o tal que examinou o cadáver. Chego preparado para uma discussão, mas o médico está desarmado:
- Bom, seu Totó... garantir, jurar, eu não posso. Como já expliquei, sou só patologista - não tenho especialização em Medicina Legal. Os ferimentos me parecem consistentes com a patada de um animal de grande porte, que esmagou a cabeça do padre Alencar.
- Mas esses mesmos ferimentos não poderiam ser produzidos, digamos, por um objeto muito pesado?
Ele coça o queixo:
- Essa pessoa precisaria ter uma força extraordinária...
- Mas não é impossível.
- Não. Por via das dúvidas, não fiz nenhum laudo oficial. Não me comprometi.
- Dr. Furtado, não estou questionando sua capacidade. Mas só para ter certeza, talvez pudéssemos mandar o cadáver para um legista, na cidade mais próxima...
- Juiz de Fora.
- Que seja. Estou trabalhando nesse caso a pedido da Suzana...
- A moça dos cavalos, não é?
- Isso. Ela está com medo que o leão seja sacrificado, mesmo sendo inocente. Por outro lado, imagine se o Padre Alencar tiver sido atacado por um ser humano. Isso quer dizer que existe um assassino solto por aí, concorda?
- O senhor tem razão - diz o Dr. Furtado. - Vou ligar agora mesmo para o delegado.
Pega o telefone, mas antes de discar, fica olhando para mim:
- Sabe de uma coisa? Eu prefiro que o leão seja culpado.
- Por que?
- Bom, eu conheci bem o padre Alencar. Se ele tiver sido assassinado por uma pessoa... - Seu olhar se perde no infinito, e ele sussurra: - Nossa. O senhor devia ter visto o estado do cadáver.

Meia hora depois, eu, Suzana e Mariana estamos saindo da delegacia.
- Puxa! - suspiro, desanimado. - O Dr. Palmeira está louco para dar um tiro no leão.
- Safado. Carniceiro. - diz Suzana, entredentes.
- Calma! Por enquanto, a gente conseguiu adiar a execução. E garantimos que o cadáver seja examinado em Juiz de Fora. Já é alguma coisa. Vamos planejar o que faremos em seguida.
Entramos na padaria da esquina. Peço um refrigerante, e logo estamos sugando Fanta Uva morna pelo canudinho.
- Esse lugar é um horror - suspira minha cliente - Aliás, esse é o grande problema, quando você trabalha em circo. Tem cidades interessantes, mas na maior parte do tempo você fica pulando de buraco em buraco. Sem falar no Felipe...
O celular toca. Suzana atende:
- Alô? Sim, sou eu, querido. Nada, continuo encalhada aqui. É. Por causa do leão. Mas meu amor, o que você quer que eu faça? Não vou deixar o bicho ser executado a sangue frio... Sim. Depois que tudo isso acabar, vou pro Rio. A gente passa uns dias juntos, tá? Também te amo. Até logo. - Desliga o telefone.
Ela tem namorado. Quem sabe, até marido. Que droga! Que bosta!
- Totó?
- Hein?
- Estou esperando você falar... Quais são seus planos?
Pigarreio e me endireito na cadeira. Quem disse que a vida era fácil?
- Bom. Se o Bertoldo não for culpado, o assassino deve ser um criminoso de verdade - um ser humano, não um animal irracional.
- O Bertoldo é quase racional - diz Suzana.
- O padre Alencar foi morto de forma brutal, e seu rosto foi desfigurado. - continuo, ignorando a interrupção - Como o delegado acaba de nos contar, não levaram nem a carteira, nem qualquer objeto pessoal. Se Bertoldo não é o assassino, pode ter sido um crime por vingança.
- Mulher - diz Mariana.
Eu e Suzana nos voltamos para ela, surpresos.
- Mulher?
- Por que não? O padre Alencar tinha vinte e oito anos. Pela fotografia que eu vi na delegacia, até que era aproveitável.
Olho minha irmã escandalizado.
- Você tem a mente suja, Mariana. Além disso, uma mulher não teria força para dar uma pancada dessas.
- Uma mulher, talvez não. Um marido ciumento, quem sabe?
- Mas é um padre!
- Eu acho que é uma possibilidade - intervém Suzana - Mas também existem outras hipóteses. Você viu o que o delegado falou? O padre andava metido no Movimento Sem Terra. Eles têm acampamento aqui perto. Quem sabe algum fazendeiro mais violento...
- Por exemplo, dono de alguma fazenda que eles invadiram.
- Exatamente.
Penso um pouco:
- Acho que devemos investigar as duas possibilidades.
- Ótimo - diz Suzana - Eu vou dar me infiltrar no acampamento dos sem-terra.
- E eu vou dar uma olhada na igreja. Parece que tem missa às seis da tarde. - diz Mariana.
Num piscar de olhos, as duas já sumiram.
- E eu pago a Fanta Uva. - digo para mim mesmo.

Não tenho muita experiência em cidades pequenas. Mas de uma coisa eu sei. Todas elas têm um ponto de encontro onde os desocupados ficam tomando cerveja e comentando as novidades. E a morte do padre Alencar é uma novidade e tanto.
Dou uma voltinha pela Praça da Matriz e localizo o "point". Em cima da fachada, um letreiro desbotado informa que esse é o Bar do Jurandir. Mais tarde, fico sabendo que o lugar é mais conhecido como "Poleiro". Está lotado. As cadeiras e mesinhas de metal, espalhadas na calçada, não dão conta de tanta gente.
Um moleque está colocando mais cadeiras. Confisco uma delas e, como não quer nada, aproximo-a do grupo mais animado. Em Santa Margarida, como em muitos outros lugares, a fofoca parece ser um esporte da Terceira Idade.
Um sujeito vermelho, gordo, com uma volumosa cabeleira branca, proclama com o dedo em riste:
- Eu sabia. Sempre disse pra vocês. Um dia ia acontecer alguma coisa com aquele padreco.
Olho para a mesa à sua frente. Onze garrafas de cerveja consumidas por apenas cinco velhotes. Pode ser um terreno fértil.
- Dá licença?
Todos se viram para mim. Nenhum deles parece sóbrio.
- Desculpe me intrometer, mas vocês estão falando do padre que morreu?
- A cidade toda só fala disso. - responde o cabeludo. -
- Ah, bom. Porque eu sou da fiscalização do Ibama (não sei qual o fôlego dessa mentira, mas tive que improvisar) e vim resolver o problema do leão. Coitado do padre, né? Não sei como deixam uma fera dessas escapar...
Não calculei mal: todos parecem deliciados com minha ingenuidade. Várias pessoas abrem a boca ao mesmo tempo, mas é o velhote quem fala primeiro:
- Qual é a sua graça, moço?
- Aristóteles, mas pode me chamar de Totó.
- Eu sou o Joaquim Nogueira, ex-vereador aqui da Câmara Municipal. Ex e futuro, né, rapaziada? - e pisca para seus eleitores - Então o senhor acha mesmo que o leão comeu o padre?
- É o que me contaram...
A mesa toda ri. Seu Joaquim pontifica:
- Seu Totó! O senhor é novinho, acredita em tudo que lhe dizem. Mas eu sou macaco velho. Tenho setenta e sete anos, entendeu? Setenta e sete, e duas pontes de safena!
- Não foi o leão?
Todos na mesa se entreolham. Um outro velhote, com o bigode amarelo de cigarro, pigarreia e diz, numa voz rouca:
- Muita gente queria ver esse padre pelas costas.
- Faz uns dois meses - conta Seu Joaquim - a igreja toda amanheceu pichada. Um desrespeito.
- "Fora o padre safado" - lembra outro velho.
- Safado não, era "comunista". - corrige outro.
- Era "safado e comunista" - lembra um terceiro. - Ele mandou pintar por cima, mas todo mundo viu.
- Nossa. Quem teria feito isso?
Um silêncio se faz na mesa. Todos olham para o chão.

Mais duas horas de cervejinha, e já fiz grandes amigos na cidade - seu Joaquim, o das pontes de safena; seu Eleutério, o do bigodão; e o Doutor Vicente, dentista aposentado, mais fofoqueiro ainda que Seu Joaquim... Ouvi muitas insinações, meias-palavras, mas de concreto mesmo, só o tal muro pichado. E o que é pior: a tal cervejinha me deixou zonzo.
Estou dormindo no quarto do hotel quando alguém bate à porta. Dou um salto da cama. Meu Deus! Já são oito horas.
Suzana está me esperando. Tomou um pouco de sol, está linda...
- Totó, você está dormindo? Vamos descer. Tenho muito o que contar.
Meio sem-jeito, lavo a cara, penteio os cabelos, e desço com ela para o bar do hotel. Sentamos perto da janela. Pergunto ao garçom:
- Tem refrigerante?
- Só Fanta Uva. Mas não está gelada...
Suzana intervém:
- Então traz uma cervejinha.
Que seja! O melhor remédio contra ressaca ainda é uma boa cerveja gelada. E essa chega trincando. Suzana toma um gole, suspira e se abana:
- Nunca passei tanto calor na minha vida. Nossa! Você devia ver o acampamento dos sem-terra. A organização deles é fantástica. Até escola têm.
- Como você entrou lá?
- Disse que era simpatizante - o que é verdade, aliás - e me ofereci para tratar a vaca que dá leite às crianças. O bicho estava com inflamação nas tetas.
- Mas você sabe cuidar disso?
- Como não? Eu sou veterinária.
Fico olhando em silêncio para ela. Suzana ri:
- Ué, por que essa surpresa? Não tenho cara de veterinária?
- Certo, mas e o padre? Eles conheciam o padre?
- E como! O cara ajudou muito o movimento. Agora eles estão revoltadíssimos. Muita gente - baixa a voz - desconfia de um tal Pedrosa. É um dos maiores fazendeiros da região. Todo mundo sabia que os sem-terra iam invadir uma das fazendas dele, a Santa Lúcia. E hoje, pumba, não deu outra! invadiram. O pessoal do acampamento diz que o Pedrosa é violento.
- Mas ele chegou a ameaçar o padre?
- Abertamente, não.
Suspiro. Quando alguém vai me dar algo mais concreto? Pichações, ameaças veladas... Nada disso livra a cara - ou melhor, a juba - do Bertoldo. Conto para Suzana a minha conversa com o pessoal do "Poleiro". Ela parece esperançosa.
- Isto se encaixa com o que ouvi no acampamento. Amanhã mesmo vou entrar na fazenda do tal do Pedrosa. Um dos cavalos dele machucou a pata.
- Espera aí, Suzana. Você não vai fazer isso. Em primeiro lugar, sou o encarregado da investigação. Em segundo lugar, esse homem é perigoso, não é?
- Não seja bobo, Totó - diz ela, impaciente. - Tenho o disfarce perfeito. Se você fizer questão, pode vir comigo. Digo que é meu assistente.
Essa mulher me deixa sem fôlego. Nunca vi alguém tão despachada.
Alguém está acenando para mim lá de fora. Olho pela janela. Quem são essas duas, meu Deus do céu? Duas mocinhas... uma gorda, outra magra...
- Como é, vamos ou não? - pergunta Suzana.
- Vamos. Amanhã, né?
- Isso. O veterinário daqui viajou, e o Pedrosa está desesperado, porque o tal cavalo é de raça. Vou telefonar oferecendo meus serviços.
Levanta-se da mesa, e eu continuo olhando as duas mocinhas lá do outro lado da praça. A mais magra está se despedindo da gorda, com muitos beijos e abraços. Está vindo na direção do hotel... passou pela calçada... é minha irmã!
Não é à-toa que não a reconheci. Mariana tirou toda a pintura, tingiu o cabelo - que estava azul - de um castanho cor-de-rato, e até livrou-se do piercing no nariz. Está usando uma calça jeans desbeiçada, tênis surrados e uma camiseta com a inscrição TERRA PARA O POVO DE DEUS. Senta à minha mesa.
- Mariana! Que é isso? Que roupas são essas?
- Achei que ia precisar de um disfarce. Trouxe do Rio.
- E o seu cabelo?
- Shampoo tonalizante.
- Não é possível!
- Possibilíssimo, meu filho. Já entrei na comunidade de jovens, sabia? Assisti duas missas - a das seis e a das oito. Na última, até cantei no coral. Sabe aquelas musiquinhas deles, blém-blém-blém, blém-blém-blém? Aprendi todas.
- E a camiseta?
- Comprei na porta da igreja.
- Mas você está horrorosa!
- A idéia é essa mesma. Garotas bonitas não entram nesses grupos. Você viu a gorda que estava conversando comigo lá na praça?
- Vi.
- É a Sabrina. Ficamos amicíssimas. Ela tem uma paixão platônica pelo Ronaldo.
- Quem é o Ronaldo?
- O líder deles. Devem ter escolhido pelo número de espinhas, sabe?
- Mariana!
- Se bem que a competição não é fácil.
- Mais respeito com as pessoas, puxa!
- Eu não desrespeitei ninguém. Eles me adoraram. Amanhã mesmo, vou participar de um momento de reflexão sobre a morte do Padre Alencar.
- E aí você consegue descobrir alguma coisa?
- Pode ser. Ninguém acredita nessa história de leão. Eles acham que o Padre Alencar foi assassinado por um dos fazendeiros da região, por causa do trabalho com os sem-terra. Aliás, a comunidade de jovens ajudou a invadir a fazenda, hoje.
- Ótimo! Com certeza vamos descobrir mais coisas com esse pessoal.
- Não sei, Totó... Tenho um palpite...
- Qual?
- Tem mais alguma treta por aí. Fiquei conversando com eles, na saída da igreja, e de vez em quando alguém deixava uma frase pelo meio... Alguma coisa estão me escondendo. E eu já sei como descobrir.
- Como?
- Pela Sabrina. Ela adora uma fofoca. Você vai ver.
Nossa cliente está voltando para a mesa, toda animada:
- Oi, Mariana! Totó, o Pedrosa caiu feito um patinho. Estava desesperado com a história do cavalo. Amanhã às dez horas estamos lá.
Minha irmã faz um relatório completo do seu trabalho. Suzana conclui, satisfeita:
- Estamos indo de vento em popa. Quando sai o tal laudo?
- Sexta-feira.
- E hoje ainda é terça. Perfeito. Até lá, vamos ter elementos para salvar o Bertoldo. Mas o legista com certeza vai inocentar ele. Bom, com licença. Preciso telefonar pro Rio.
E afasta-se da mesa. Mariana, que acabou seu sanduíche, fica me olhando. Por fim, pergunta:
- Por que você olha assim para ela?
Fico vermelho. Tusso. Me reviro na cadeira:
- Assim como?
- Parece que está com dor de barriga...
- Não seja boba, Mariana.
- Rá! Já sei! - E ela começa a rir.- Você está a fim dela! Que engraçado!
Ri tanto que quase engasga com a cerveja. Eu poderia esganá-la com minhas próprias mãos.
- E daí, se eu estiver? Qual é o problema?
- Ela tem idade pra ser sua mãe.
- Não exagera!
- Cara, ela é muito velha. Deve ter no mínimo uns trinta anos.
- Não tenho preconceito contra mulheres mais velhas.
Mariana abre a boca para responder. Mas Suzana já está de volta.

Conversamos mais um pouco, assistimos televisão e subimos para nossos quartos. Meu Deus, que hotel chinfrim! E nem dá pra mudar: é o melhor da cidade. O ar condicionado está quebrado. A imagem da TV é esverdeada. Tento ler, mas não consigo me concentrar. Finalmente, levanto da cama, saio do quarto e vou bater à porta de Mariana.
Ela abre a porta e pergunta, com cara de poucos amigos:
- O que você quer?
- Conversar.
- Cai fora. - tenta fechar a porta, mas coloco o pé na abertura. Ela xinga um palavrão e acaba me deixando entrar.
O quarto está uma zona. Roupas jogadas em toda direção. O banheiro parece ter sofrido uma inundação.
- Estou escolhendo as roupas para amanhã. - diz Mariana, olhando para as camisetas estendidas na cama. - O que você acha? Repito a camisetinha militante, ou coloco uma blusa mais decotada, pra conseguir informações do Ronaldo?
- Péssima idéia - resmungo. - A Sabrina não vai gostar.
- O que você quer? Desembucha.
Sento na cama, embaraçado. Nunca tive esse tipo de conversa com minha irmã.
- Você promete não rir?
- É sobre a Suzana, né? Tudo bem, já ri bastante lá embaixo.
- É o seguinte, Mariana: você acha que ela é casada?
Mariana fica imóvel, com os olhos fixos na parede, pensando.
- Deve ser, né? Nessa idade, todo mundo é casado...
- E você viu o telefonema que ela recebeu no celular hoje de manhã?
- O tal do "meu querido", que ela ama?
- Quebra esse galho pra mim, Mariana. Mulher tem mais jeito com essas coisas. Sei lá, tenta conversar... extrair alguma coisa...
- Sei. Sutilmente.
- Isso.
- Deixa comigo.
- Obrigado.
- Mas não se iluda. Se ela for solteira, também não adianta nada.
- Por que?
- Cai na real, Totó. Você acha mesmo que a Suzana vai namorar um cretino que nem você?
- Vá à merda, Mariana.

No dia seguinte, às nove da manhã, eu e Suzana já estamos na estrada.
Se é que dá pra chamar isso de estrada... Nunca vi tanto buraco. Meu carro já está meio acabado; depois dessa viagem, então, nunca mais será o mesmo. Os solavancos são de tirar o fôlego, mas Suzana nem parece senti-los. Está com a corda toda:
- Vamos chegando e já comentamos do assassinato do padre.
- Não senhora - contraponho - Vamos chegando e não falamos coisíssima nenhuma, senão o fazendeiro fica com um pé atrás. Primeiro descobrimos o que ele estava fazendo na noite do crime.
- Ele pode ter contratado um pistoleiro - lembra Suzana - Se bem que, segundo o pessoal do MST, não é o estilo dele.
- Como assim?
- Ele é pessoalmente violento. Não manda ninguém fazer serviço sujo pra ele. A mulher o abandonou porque era espancada. Deu um tiro num capataz, mas o caso nem chegou à Justiça. E brigou a socos com um grupo de sem-terras.
- Bom. Então, existe uma probabilidade de que ele tenha matado o padre pessoalmente.
Quando chegamos à fazenda, não encontramos o Pedrosa.
- A fazenda dele, a Santa Lúcia, foi invadida hoje de manhã - explica o administrador - Esses tal de sem-terra... Mas ele já telefonou e pediu pra senhora esperar. Volta em meia-hora.
Sentamos numa sala mobiliada com velhas poltronas verdes, cadeiras meio desconjuntadas, e um cachorro tão idoso, que mal abre o olho. A única coisa nova do lugar é um enorme aparelho de televisão. "Para o patrão ver futebol", explica a empregada que vem trazer café, metida em roupas surradas.
- Ele é muito sovina - explica Suzana, depois que a moça sai. - Riquíssimo, mas não gasta um centavo com conforto, luxo, essas coisas.
- E o café está requentado - digo, fazendo uma careta.
A moça volta inesperadamente à sala:
- Querem refrigerante? Tem Fanta Uva...
- Não precisa, obrigado.
- Não está gelada mesmo... - diz ela, se retirando.
O único retrato na sala é o da vaca leiteira premiada do Pedrosa. Embaixo, uma legenda informa quantos troféus o animal já ganhou. Finjo um profundo interesse pela vaca, mas, na verdade, estou espiando Suzana. Gosto dos olhos dela. Do cabelo dela. Do jeito de rir.
Que droga, gosto de tudo nessa mulher.
- Gostaram da Preciosa? - pergunta uma voz grave.
Levo um susto: o fazendeiro chegou. Pedrosa é alto, forte, moreno, bigodudo. Usa um chapelão, calças de brim, e botas. Idade? Qualquer coisa entre quarenta e cinqüenta anos. Eu diria mais para os quarenta. Não parece homem de brincadeiras.
- Ela é muito bonita - diz Suzana, erguendo-se da poltrona verde. - Quantos prêmios, hem?
O fazendeiro começa a explicar seus métodos para aumentar a produtividade da vaca. Suzana faz várias observações técnicas. Eu tento fazer um ar inteligente.
- Esse rapaz aqui é meu assistente, o Totó - diz, me apresentando. - Acabou de entrar na faculdade de Veterinária, mas quer aprender...
Não acredito! Ela me apresentou como calouro!
- Muito bem, seu Totó - diz o Pedrosa, com um sumário aceno de cabeça. - Vamos ver o Veludo.
Outro dos seus negócios - explica, a caminho do haras - é criar cavalos de montaria para vender. Mas Veludo não está à venda; é seu cavalo preferido, com o qual anda na fazenda. Está mancando desde ontem.
Faz uma pausa. Para dizer alguma coisa, comento:
- Que calor! Tempo esquisito para julho, hem?
- Pois é - diz ele. - E ainda na semana passada fez frio. Na noite de domingo, chegou a oito graus. Fiquei com medo que geasse.
Opa! Domingo foi a noite do crime.
- O senhor estava aqui na fazenda?
- Ah, como sempre. Todo domingo, ao meio-dia, dispenso os empregados e fico aqui sozinho, trabalhando feito peão. Sei fazer de tudo numa fazenda, sabia? Cuidar das vacas, fazer a colheita, carpir, semear... Nos fins-de-semana, é minha diversão. Descanso carregando pedra.
- E a que hora os empregados voltam?
- Só no dia seguinte. Eu me viro sozinho - diz, orgulhoso.
Ele não tem álibi!
- Não é nada grave - diz Suzana, depois de examinar o cavalo. - Uma torção à-tôa. Vou fazer uma talinha, e ele logo fica bom.
Trouxe uma maleta com todo o equipamento necessário para cuidar de Veludo - o que faz com visível carinho.
- Você tem muito jeito - elogia o fazendeiro.
- Estou acostumada a lidar com os cavalos do circo - diz ela. - E depois, sempre vivi cercada de bichos.
Pedrosa balança gravemente a cabeça. Estou começando a ver um brilho esquisito nos seus olhos. Pergunto:
- Parece que o senhor teve problema numa das suas fazendas, não é?
- É, a Santa Lúcia foi invadida pelos sem-terra... Tinha de matar todo esse povo, moço. Todos eles.
Olho para Suzana: está de cabeça baixa, concentrada na pata do cavalo.
- São uns bandidos. Querem terra? Pois peguem numa enxada! Eu também não tinha nada quando comecei. Tudo que ganhei foi com o suor do meu rosto. Podia tocar eles de lá a tiro, mas a lei não deixa!
O discurso é raivoso, mas sua voz carece de convicção. Decido improvisar:
- Meu pai também tem fazenda, lá em Goiás. Os sem-terra vivem rondando a região.
- É no país inteiro, moço. Não sei como o governo deixa.
- O que ele mais reclama é desse pessoal da Igreja. Sabe, os padres que incentivam o Movimento...
- Uns vagabundos - concorda Pedrosa. - Padre, pra mim, tinha que ficar na igreja rezando. Onde já se viu uma coisa dessas? Aqui mesmo tinha um desses safados...
- Aquele que o leão pegou? - pergunta Suzana, aproveitando a deixa.
- Justamente. Mau-gosto do leão, se vocês querem saber. Aquele sujeitinho não valia nada. Vivia atrás dos sem-terra, indo no acampamento, levando comida pra eles. Acho até que ajudou a preparar a invasão da Santa Lúcia.
Faz uma pausa, olha para o mar de cana verde que o cerca. E arremata, com satisfação:
- Mas também, foi a última que ele aprontou.

Suzana mal se contém. Assim que dou a partida no carro, começa:
- Foi ele, Totó! Achamos nosso criminoso.
- Calma, Suzana. Espera eu sair daqui que a gente conversa...
Entro de novo na estrada esburacada e vou falando, entre um e outro sacolejão:
- Não estou assim tão certo de que ele seja o assassino.
- Ora bolas, Totó. Ele é violento. Não tem álibi para a noite do crime. E odiava o padre. Que mais você quer?
- Tudo o que você falou - explico, driblando uma cratera - são as chamadas provas circunstanciais. Não valem nada num tribunal. E depois, onde já se viu um suspeito que dá pistas com tanta boa vontade? Se ele é culpado, por que confessa que odiava o padre, sem o menor problema?
Suzana reflete e murcha um pouco.
- E outra - acrescento. -Quando ele falou da invasão da Santa Lúcia...
- O quê?
- Bom, pode ter sido impressão minha, mas... ele não me parecia tão chateado com a história. Reclamou etc, mas meio pro-forma. É como se ele já contasse com isso.
- Ah - diz ela, contrariada - isso é psicologia barata, Totó.
- Psicologia barata, não, Suzana. Experiência. Posso ser jovem, mas tenho anos de janela. Já interroguei muita gente.
Ela me olha, surpreendida:
- Calma, Totó!
Um silêncio pesado se instala. Fico olhando para a estrada, irritado. Até que sinto um toque macio no meu braço.
- Totó - diz Suzana, com voz suave. - Não se preocupe. Não vou te subestimar só porque você é jovem.
Sorrio para ela:
- Claro que não. Você é inteligente demais para isso.
- E aliás - dá um tapinha no meu braço - você nem é tão mais jovem do que eu, ouviu? Só tenho trinta e três anos.
Trinta e três? Faço questão de contar pra Mariana. Suzana não tem idade para ser minha mãe!

Quando chegamos no hotel, um sujeito moreno, magrinho e aflito, está nos esperando.
- Sebastião! - diz Suzana. - Quando você conseguiu sair da cadeia?
Os dois se abraçam, sentam para conversar. À primeira vista, Sebastião parece jovem; de perto, notam-se alguns fios brancos no cabelo, e rugas em torno dos olhos. Deve ter uns quarenta anos.
- Saí hoje de manhã - diz o rapaz. - O advogado me conseguiu um habeas-corpus, e agora quem está na encrenca é o Felipe. Lembra quando você me fez mandar uma carta pra ele, exigindo uma jaula nova?
- Lembro. Você até disse que era besteira...
- Mas acabei mandando. E guardei uma cópia, como você me disse! - mostra o papel, com satisfação. - Aquela mesma que você tirou no seu computador, lá no Rio. No dia em que o Flávio...
- Me lembro, me lembro - diz ela, impaciente. - Aí você mostrou a carta ao delegado.
- Exato.
- Agora, quem vai ser acusado pelo problema da jaula é o Felipe. Mas nada disso tem importância, Sebastião. Você sabe que não foi o Bertoldo quem matou o padre.
- Eu sei, Suzana. Mas não sei se o delegado sabe.
- Como assim?
- Suzana, ele está lá no circo com uma espingarda. E quer matar o bicho. Saí da cadeia e vim correndo te avisar.

O circo está armado a poucos quarteirões dali. Quando chegamos, a primeira pessoa que vemos é o delegado, já conversando com o dono do circo:
- Io non faço objeçón, delegado. - dizia Felipe - O signore é a autoridade. Non me responsabilizo por questa bestia.
- Bestia é você! - grita Suzana. - Delegado, se o senhor matar esse leão, movo um processo contra o senhor.
O delegado - um tipo mal-encarado, com a gravata torta e ar de péssimos amigos - resmunga:
- Processo por que, minha senhora?
- Por maltratar animais.
- Eu não maltrato animal nenhum. Mas preciso cuidar da segurança da cidade. Se esse bicho escapa, vai acabar matando mais alguém.
- Mas ele não matou ninguém!
- Isso é o que a senhora diz.
- O laudo de Juiz de Fora ainda não chegou.
- Leão é um bicho perigoso, dona. Não posso correr esse risco.
- Antenor, coitado do bichinho!
A voz melosa vem de uma das tendas, onde está uma mulher de trinta e poucos anos, morena, bem-vestida, inegavelmente atraente. Usa muita maquiagem e terninho Chanel. Ela se aproxima do delegado e encosta a mão no seu ombro.
- Eu não acredito que ele tenha matado o padre Alencar. Parece inofensivo!
- Ah, é? - rosna o delegado - E desde quando você é especialista em zoologia?
- Especialista não sou. Mas até o seu Felipe aqui diz que ele não estava sujo de sangue, na noite do crime. Não é?
A contragosto, o dono do leão concorda com a cabeça.
- Isso não quer dizer nada - refuta o Dr. Palmeira - Esses bichos são como gatos. Vivem se limpando.
Taí, ele tem razão. O leão não podia ter se limpado? Na dúvida, olho disfarçadamente para Suzana. Ela sacode a cabeça, impaciente.
- Delegado, essa senhora...
- Minha mulher. Marieta.
- Essa senhora tem razão. Ninguém tem provas de que o leão seja culpado. Todo mundo é inocente até prova em contrário. O senhor, que é advogado, sabe muito bem disso. Então por que matar o Bertoldo?
- Por que essa jaula não é segura! E não existe nenhum outro lugar onde ele possa ficar preso com segurança.
- Nisso eu discordo, Antenor - diz a mulher.

- Engraçado, ele tem olho verde mesmo...
- Leões têm olhos verdes, oras.
- E um mau-hálito desgraçado.
- Porque só come carne. Ainda bem que eu sou vegetariana!
Bertoldo dá um rugido. Recuo alguns passos.
- Ele está bravo?
- Só entediado - explica Suzana - Não precisa ficar com medo, ele está preso!
O Dr. Palmeira também se aproxima, ainda mais mal-humorado do que o leão.
- Se meus superiores ficam sabendo dessa história, estou ferrado.
- Calma, delegado. É só até sexta-feira. E desta cela ele não pode escapar, certo?
- Em princípio, não. A cela é novinha. Aliás, essa delegacia foi inaugurada há três meses, e o leão é o primeiro preso.
Olho para baixo, incomodado. Como policial, também não me sinto à-vontade com essa história. Imagine trancar um leão na cadeia - não, pior ainda, numa delegacia!
- Se houvesse outros presos aqui, nunca consentiria nessa palhaçada. A sua sorte é que Santa Margarida é tranqüila...
- Eu agradeço a sua boa-vontade, delegado - diz Suzana.
- Agradeça antes aquela maluca da minha mulher... - resmunga o delegado, sentando-se à sua mesa e começando a mexer na papelada. - Não sei como vocês duas me convenceram desse absurdo. Por mim, eu passava uns tiros no bicho. Mas lembrem-se: é só até sexta, e a senhora fica responsável pela alimentação e limpeza!
- Não se preocupe. Eu trago a comida, e o Sebastião vem fazer a limpeza.
Já fora da delegacia, Suzana suspira de alívio:
- Nossa! Aquela Dona Marieta salvou o Bertoldo!
- É, até que ela foi simpática.
- Pena que seja tão perua - conclui minha cliente, com uma risadinha.

No almoço, Suzana nota minha relutância em pedir churrasco.
- Ué, você não vai comer carne?
- É que... você é vegetariana...
- E acha que vou passar mal, só de ver você comendo carne? Ora, Totó. Que bobagem. Sirva-se. É só bicho morto, afinal.
Convencido, ataco a picanha. Suzana fixa um olhar distante no meu bife, e suspira:
- Vai me custar uma fortuna pagar a alimentação do Bertoldo... O Felipe lavou as mãos do assunto.
- É verdade, fica caro - intervém Mariana, que até ali estava quieta. - Seu marido não vai achar ruim?
Essa é a abordagem "sutil" que ela tinha me prometido.
- Marido? Desse mal não sofro, Mariana.
- Você é solteira?
- Divorciada há tanto tempo que já me sinto solteira. Entende?
- Então você se divorciou há muitos anos?
- Dezessete.
- Ah, bom - diz Mariana, inabalável - Ontem, quando você estava falando no celular, pensei que era com seu marido. Ou namorado.
- Não! - contrapõe ela, com um pouco mais de energia do que o necessário. - Aquele era o Flávio. Meu filho.
- Filho? Nossa. Que idade ele tem?
- Dezesseis. Casei bem moça, Mariana. Dessas besteiras que a gente faz. Até o ano passado, o Flávio estava morando comigo. Agora está com o pai. Sabe como é: ele está estudando para o vestibular, e eu tinha que viajar com o circo... Aliás, o safado se diverte contando pra todo mundo que a mãe fugiu com o circo.
Não agüento a curiosidade:
- E como é o pai dele?
Ela termina de mastigar a abobrinha:
- Caretão. Chato. Tem minha idade, mas parece um velhinho. Sabe como a gente se separou? Eu tinha acabado de ter o Flávio, e ele não queria que eu fosse pular carnaval. "Agora você é mãe, não pode mais fazer essas coisas". Vi que não adiantava perder tempo: a gente nunca ia dar certo. No dia seguinte saí de casa. Melhor coisa que eu já fiz.
"Hoje ele é executivo, sabe? e ganha a maior grana. Casou de novo, mas nunca parou de implicar comigo. Sempre que ia buscar o Flávio em casa, ficava enchendo o saco: que eu devia arranjar uma profissão séria, que onde já se viu ser veterinária do Jóquei... Também odiava quando eu era instrutora de alpinismo, ou quando trabalhava como mergulhadora. Tudo que eu fazia ele implicava.
- E você?
- Eu? Não discutia. Deixava ele falar e ia fazer as minhas coisas.
- E você nunca casou de novo? - pergunto, "casualmente".
- Ah, não. Tive alguns namorados, mas no fim é sempre a mesma coisa. Homem só quer botar o pé no pescoço da gente.
Com esse balde de água fria, não pergunto mais nada até o fim do almoço.

- Você viu? - digo para Mariana, alguns minutos depois, na recepção. - Ela não é tão velha assim. E fez questão de dizer que era solteira.
- Ah, esquece, Totó - responde minha irmã. - Se ela estivesse interessada, achava um jeito de saber se você tem namorada.
Quantas vezes por dia tenho vontade de estrangular minha irmã? São duas e meia, e ela já está caracterizada para ir ao "momento de reflexão". A camiseta, dessa vez, tem um versículo do evangelho.
- Que saco. - suspira ela. - Vou ter de ouvir um monte de sermão e musiquinha, até descobrir alguma coisa... Os caras são uns malas-sem-alça.
- Temos que atirar pra todos os lados, Mariana. Antes do almoço, fui dar uma volta no Poleiro e consegui uma dica interessante. O Pedrosa tinha um adovogado que brigou com ele mês passado. Ele deve saber muita coisa sobre o cara... Vou inventar alguma história para me aproximar.

- Muito bem - diz Suzana, depois que minha irmã saiu - Qual é a especialidade desse tal doutor...
- Boanerges.
- Dr. Boanerges?
- Segundo o seu Eleutério, lá do Poleiro, é posse de terras mesmo. Isso me dá uma idéia. - Estalo os dedos - Vou dizer que estou pensando em comprar uma fazenda aqui, mas estou preocupado com os sem-terra. Posso arranjar uma medida cautelar? Essas coisas. Ele deve ter muita experiência no assunto.
- É - concorda Suzana. - A história pode colar.
- E no meio da conversa, acho jeito de falar do Pedrosa. Se eles estão brigados, o Boanerges deve estar louco para contar os podres do outro. Segundo o Eleutério, eles foram amigos durante anos. Amigos e sócios.
- Sócios em quê?
- Grilagem. O Dr. Boanerges arranjou várias escrituras duvidosas para que o Pedrosa pudesse se apossar de umas terras que andavam em litígio. E sabe o que é mais engraçado? Logo depois que o cliente botava a mão na terra disputada, o advogado recebia metade da área, como honorários.
- Que esquisito!
- A conclusão do pessoal é que os dois eram sócios. Hoje, o Boanerges tem um patrimônio respeitável.
- Mas se eles se davam tão bem, por que brigaram?
- Parece que, no último desses negócios, o Pedrosa passou a perna nele. Não "pagou" metade das terras para o advogado.
- Ah. Entende-se.
- Pois é.
O Dr. Boanerges não mora em Santa Margarida, mas em Antinhas, perto daqui. Arranjamos uma lista telefônica e ligamos para o advogado. Uso o nome do nosso "amigo comum", Seu Eleutério. O Dr. Boanerges diz que terá o maior prazer em me receber - mas só amanhã de manhã.
- Quero ir junto - avisa Suzana, assim que desligo.
- Obrigado pela companhia. Mas o que você vai ser?
- Sua mulher, oras!
Quase engasgo com o café.

Enquanto Mariana não volta, eu e Suzana nos instalamos no Poleiro. Quem sabe a gente ouve alguma coisa interessante...
- Sou a única mulher aqui - cochicha minha cliente, depois que sentamos.
- Isso te incomoda?
- Não, acho até divertido. Adoro invadir Clubes do Bolinha.
A homarada em torno também parece apreciar a presença de Suzana. "A senhora não é a moça do circo? Aquela dos cavalos?" Apresento meus amigos: o Doutor Vicente, seu Eleutério, seu Joaquim....
- Estou aqui com seu Totó, do Ibama - explica ela - Tentamos evitar que matem o leão.
Todos concordam, gravemente, que é judiação matar o bicho - se ele não for culpado.
- Ele não é - garante Suzana. - Mas tivemos que brigar com o delegado, para impedir que ele atirasse no Bertoldo.
O Dr. Vicente, resmunga:
- Esse sujeito tem o dedo mole...
Mas, antes que o ex-vereador prossiga, alguém o cotuca:
- Cale a boca, parceiro! Olha lá a mulher do homem!
- Não acredito... - diz um outro.
Dona Marieta, resplandecente em seu Chanelzinho, atravessa a praça, e encaminha-se sorridente em nossa direção:
- Mas que surpresa! - diz, com voz melíflua. Descontando o excesso de maquiagem e perfume, as unhas pintadas e as inúmeras pulseiras, ela não é nada má. Bem bonitona. - Então, vieram conhecer nosso ponto de encontro? Bem pitoresco, não é?
- Muito - diz Suzana.
- A senhora aceita uma bebida? - pergunto. - Uma cerveja? Um refrigerante?
Sem precisar de mais convites, ela acomoda-se à nossa mesa.
- Refrigerante não, que só tem Fanta Uva.... Mas aceito uma cervejinha. Não devia, já estou atrasada para o trabalho, mas...
- E qual é a sua profissão? - pergunta Suzana, curiosa.
- Sou advogada. Estou indo para o Fórum.
(Já tem advogados demais nessa história, francamente.)
- Mas a audiência - diz ela, consultando um relógio cravejado de pedras - só começa em meia hora. E então? Estão gostando de nossa cidadezinha?
- É simpática.
- Meio parada, não?
- Nem tanto - arrisco -. Com o assassinato do padre Alencar...
- Coitado dele! Conheci muito o padre, sabe? Sou católica praticante, não perco missa no domingo. Durante a semana, às vezes também pego a missa das seis. Acho importante a gente cultivar a espiritualidade. O senhor também não acha? - Nem ouve a minha resposta, e continua: - Não porque está morto, mas ele era uma gracinha de padre! Muito atencioso. Pena essa história de andar com os sem-terra. Nada contra - balança as pulseiras com um gesto conciliatório - só acho que a Igreja não devia se meter nesses assuntos. Mas o Padre Alencar era um idealista! Vamos sentir muita falta dele.
A cerveja chega, e ela enxuga um copo sem piscar. Enche outro, e continua:
- Duvido que tenha sido morto pelo leão. Ele tinha o maior jeito com animais! A-do-ra-va! Que nem São Francisco, você conhece a história de São Francisco? - volta-se para Suzana. - Viu aquele filme lindo em que ele aparece com um penteado estilo pagem?
- Bom, eu...
- Você não deve conhecer, é muito novinha. Mas sei que o padre adorava bichos. Outro dia até brigou com o Pedrosa por causa disso.
- Pedrosa? - pergunto, alerta. - O fazendeiro?
- Esse mesmo. Eu estava passando, justamente para ir ao fórum, e vi os dois discutindo. Só peguei uma frase do padre. Ele estava acusando o Pedrosa de "maltratar e explorar esses pobres animais"... Estava com pressa, não ouvi o resto.
- Mas que animais ele maltrataria? - pergunta Suzana. - Hoje mesmo estive na sua fazenda. Ele cuida bem da criação...
Marieta pára um instante, numa atitude reflexiva, com o dedo mindinho em riste:
- Sabe que eu também achei esquisito? Não sei do que o padre estava falando. Também nunca vi o Pedrosa maltratar animais. É estranho... - Bom - levanta-se subitamente - preciso ir correndo, sabe? Não vão embora sem me fazer uma visitinha. Para mim, é uma diversão! O Palmeira é muito anti-social, não vai a lugar nenhum. E não me deixa sair também. Vocês acreditam que ele é ciumento?
E sem esperar comentários, ela se precipita pela rua, de bolsinha Chanel em punho. É nesse momento que o celular toca. Mariana já voltou da reunião e quer falar comigo. Urgente.

- Esqueçam o Pedrosa - afirma minha irmã, assim que nos encontramos, na praça da Matriz. - Não foi ele.
- Como você sabe?
- Achei alguém com motivos para matar o padre. A Sabrina me deu o serviço todo!
- Fala logo, Mariana.
- Bom, a tal reflexão foi um tédio. Ninguém falou nada que se aproveitasse. Só rezaram e fizeram discursos. No fim, foi saindo todo mundo e ficou só eu, a Sabrina e o Ronaldo. Os dois estavam no maior baixo-astral. Eu então sugeri que a gente fosse beber alguma coisa, para dissipar o clima ruim.
- Boa idéia.
- Me levaram para um boteco horroroso, caidésimo. No começo, só queriam tomar Fanta Uva. Mas acabei convencendo os dois a pedirem cerveja.
"Claro, não estavam acostumados a beber, e depois de uns dois copos já tinham soltado a língua. Aí começou de novo a ladainha. Que o padre era um santo. Que o padre era defensor dos oprimidos. Que o padre era isso, era aquilo etc. Aí o Ronaldo comentou que era uma pena que ele tivesse tido tantos problemas, ultimamente.
"Pensei que estivesse falando dos sem-terra, das ameaças dos fazendeiros. Mas aí ele contou que, nos últimos meses, o padre estava pensando em largar a Igreja. Problemas espirituais. Dúvidas sobre a vocação, entende? Esse papo todo.
- Hum. Interessante, mas o que isso tem a ver com a morte dele?
- Espera um pouco! Continuei entochando cerveja neles, até o Ronaldo dizer que estava tonto e precisava ir ao banheiro. Passou um tempão lá, acho que chamou o Hugo. Na hora em que ele saiu da mesa, a Sabrina - que também estava no maior pileque - me contou qual era o problema espiritual do padre.
- E qual era?
- Mulher! - entoa minha irmã, triunfante. - O que eu disse pra você, desde o começo?
Eu e Suzana nos entreolhamos, pasmos.
- Ele tinha um caso?
- Exatamente.
- E com quem?
- Essa vocês não vão acreditar: com a Dona Marieta, mulher do delegado.
- Não acredito!
- A tal da Sabrina me deu todos os detalhes. O coitado do padre estava no maior conflito. A mulher vivia na igreja, trançando de cima para baixo. Procurou o padre pedindo conselhos, dizendo que estava com problemas no casamento. Tretou relou, o padre muito compreensivo, querendo consolar a mocréia, já viu, né?
"Transou com a mulher e ficou lá, minhocando. Entrou em crise. Achava que tinha de largar a batina. Pedir demissão. Acabou se abrindo com o Ronaldo, que era o mais chegado. E o Ronaldo contou pra Sabrina, que não larga dele.
"O resto da comunidade também andava desconfiado. Todos mundo achava que ali tinha coisa. Mas era um grupinho muito fechado, e eles gostavam do padre, não queriam detonar o cara na cidade. E olha só: na sexta-feira anterior à morte dele, o padre chegou todo aflito pro Ronaldo, e disse que o Dr. Palmeira - marido da Marieta - tinha visto a mulher saindo da casa do padre. E que a Marieta ligou muito nervosa pro Padre Alencar, dizendo que o marido ia matá-lo."

Por alguns instantes, eu e Suzana ficamos mudos. Mariana continua com seu ar triunfante.
- Não foi o Pedrosa, então - Suzana é a primeira a falar.
- Calma! - aviso - Nada de conclusões precipitadas. Mariana, isso são apenas indícios.
- Ah, sim, claro - diz minha irmã, assumindo o tom de uma experiente detetive que lida com assassinatos de padres todos os dias.
- Precisamos de provas. Você vai descobrir onde o delegado estava na noite do crime. E outra coisa: encontramos a Dona Marieta hoje no Poleiro, e ela não tinha cara de quem perdeu o amante.
Minha irmã não se abala:
- A Sabrina acha que a mulher só estava namorando o padre pela aventura. E pelo sexo, entende? Mas ele não, estava apaixonado.
- Quem diria... - começo, e Suzana completa:
- Quem diria que um padre da Teologia da Libertação fosse pular a cerca com uma perua daquelas!
- Vocês queriam o quê? - pergunta Mariana. - Que ele tivesse um caso com o Ronaldo?

Os opostos se atraem - penso eu, às onze da noite, quando vou me deitar. Sabe-se lá o que o padre viu no balançar de pulseiras da Marieta! Ficou apaixonado. E o que é pior, nem foi correspondido. Foi usado apenas pelo sexo.
Será que uma aventureira profissional como Suzana topa namorar um investigador de polícia, que só anda de terno, mora com a irmã e ganha a vida investigando adultérios? Bem que ela podia topar.
Não me incomodo em ser usado pelo sexo.

No outro dia, ao descer para o café da manhã, levo um susto. Suzana se fantasiou inteira para encontrar o advogado em Antinhas. Um pouco ao estilo de D. Marieta, só que mais discreto.
- Suzana, que roupa esquisita é essa?
- Ora, a gente tem que ter fantasias para qualquer ocasião, Totó! Você acha que convenço como esposa-dondoca-de-fazendeiro-rico? Já bolei um personagem completo para mim.
- É, até que está convincente. Aliás, você está bonita com essa roupa.
- Você também fica ótimo de blazer.
- Vão parar com essa jogação de confete? - interrompe Mariana. Senta-se à mesa, mal-humorada: - Estou com a maior dor de cabeça. Além de todas as cervejas que tive de empurrar na Beatolândia, ontem à noite fiquei bebendo até uma da manhã no Poleiro!
- Bebendo? Com quem?
- Com o escrivão do Doutor Palmeira.
- Não brinca! E aí? O homem tem algum álibi?
- Nenhum. Deu plantão o dia inteiro, mas por volta das dez horas saiu dizendo que ia fazer uma diligência. Mais tarde, o escrivão precisou falar com ele, ligou para o lugar onde o delegado deveria estar, e ele nem tinha aparecido. Em casa também não estava, e a Dona Marieta não sabia dele.
- Nossa - diz Suzana - ele está pior do que a do Pedrosa.

- Vou ser franco com vocês, meus amigos - resume o Dr. Boanerges. - Vocês querem comprar uma fazenda na região. Ótimo. Mas do jeito que as coisas estão, o melhor é contratar uma firma de segurança privada. Se dormem no ponto, acabam sendo invadidos.
- Não me diga - respondo, considerando a figura do advogado.
Quem vê cara não vê coração, mas o Dr. Boanerges tem a mais esplêndida cara de picareta que já vi. Careca, olhinhos de víbora e anel de grau no mindinho, o advogado chama todo mundo de "meu amigo".
- Ficamos muito preocupados - explica Suzana - porque ouvimos falar na invasão da propriedade de um fazendeiro daqui. Um tal de Pedrosa, de Santa Margarida. Que horror, né? Imagine o prejuízo do coitado...
A menção do Pedrosa deixa o advogado ouriçado. Faz uma careta. Pede permissão para acender um charuto. No final, não resiste à tentação:
- Minha amiga - a senhora desculpe a intimidade, mas para mim todo cliente é amigo! - não acredite em tudo o que ouve. Principalmente em Santa Margarida.
Olha para nós como se tivesse feito uma declaração bombástica.
- Mas a fazenda Santa Lúcia não é dele? - pergunta Suzana, com ar ingênuo.
- A Santa Lúcia, de fato, é do Pedrosa. E foi invadida. - O advogado encolhe os ombros - Mas ele deve estar dando graças a Deus.
- Por que?
- É o pior abacaxi da região. Tenho até pena dos sem-terra! Agora, com certeza o Pedrosa vai comprar um perito para fazer avaliações fantasiosas daquela porcaria, e depois consegue uma indenização enorme do governo. O senhor vai ver. Eu sei do que estou falando. Já tive o desprazer de fazer negócios com esse senhor. Ele não tem palavra. É um cascateiro. Um grileiro!
Olho para ele, admirado. Se o que o Seu Eleutério me contou é verdade, esse advogado tem uma cara-de-pau impressionante.
- Mas essa indenização pode demorar anos...
- E o que ele tem a perder, durante esses anos? Meu amigo, o Pedrosa é um homem paciente. E esperto, o canalha. Tira dinheiro até de pedra. O senhor pensa que ele vive mesmo de agricultura? Que nada, tem outros negócios. E nem todos são legais...
O telefone toca. Pedrosa atende, diz: "Está certo", e se levanta, num pulo.
- Vocês vão me desculpar, mas preciso visitar um cliente. Se precisarem de outras dicas, não se esqueçam de mim. Faço o serviço completo: arranjo a fazenda, negocio o preço e preparo a documentação! E não se esqueçam: cuidem da segurança! Esse povo anda muito abusado.

No caminho para Santa Margarida, faço um desvio pela fazenda Santa Lúcia. Cerca de trinta tendas pretas podem ser avistadas da porteira. Encostada a ela, um caipira masca melancolicamente um talo de capim. Nem sinal de polícia.
O caipira confirma o que o Dr. Boanerges disse. A terra de fato é uma droga, não dá nada. Pedrosa foi o terceiro proprietário que tentou tirar alguma coisa da Santa Lúcia. Desistiu da idéia há anos. Os sem-terra entraram ali para marcar posição. O patrão? Estivera ontem no local, e nem parecia chateado. Ele sim, corria o risco de perder o emprego de caseiro, se a ocupação se prolongasse.
- Mas o patrão não é meio bravo? - sondo - Me disseram que anda armado...
- Só espingarda de caça. Ele adora caçar.

- Deve ser por isso que o padre brigou com ele - comenta Suzana, quando voltamos ao carro.
- Pois é. Mas o Pedrosa não ia assassinar o padre só porque ele queria proteger os bichinhos, certo? Além disso, a caça é permitida por aqui. É, Suzana, acho que agora só temos o Dr. Palmeira. E ele é um sujeito violento. Vamos agora mesmo à delegacia.

Santa Margarida deve ser, de fato, uma terra muito pacífica. Quando chegamos à delegacia, o Dr. Palmeira está tirando sua soneca pós-almoço. Do escrivão, nem sinal.
Um cachorro entra na delegacia, fareja o bacharel e volta à rua. Vai se aquecer ao sol.
- Que sujeito inútil - comenta Suzana, baixinho. - Francamente, você vê ele assassinando o padre?
Bertoldo dá um rugido de sua jaula. Nem assim o delegado acorda.
- Isso é o que vamos descobrir - digo, cutucando o ombro o valoroso defensor da lei. - Boa tarde, Dr. Palmeira.
O homem abre os olhos, estremunhado. Pisca várias vezes, até me reconhecer. Me olha com cara de poucos amigos:
- O que vocês querem aqui? O domador veio hoje de manhã. O leão já foi cuidado.
- Não viemos por causa do leão, Dr. Palmeira.
- Então vieram por que?
- O que o senhor estava fazendo no domingo à noite, na hora do crime?
Ele me olha por um segundo, abestalhado. Depois explode:
- Não é da sua conta! Quem é o senhor, para me fazer essas perguntas? E não venha com essa história de fiscal do Ibama, porque já liguei pro Rio. É tudo mentira.
Suspiro. A história do Ibama foi feita para durar, no máximo, uns dois dias. Mas essa investigação está demorando mais do que pensei.
- Está certo, Dr. Palmeira, não sou do Ibama. Sou detetive particular e também policial, lotado no 25o DP do Rio. Portanto, cuidado comigo, viu? Já estou sabendo que o senhor não tem álibi para a noite do crime.
- Bobagem! Na noite do crime, eu estava fazendo uma diligência.
- Não, não estava. Segundo o seu escrivão, o senhor não foi encontrado em lugar nenhum naquela noite. Nem em casa.
- Eu mato aquele cretino!
- Calma, Doutor Palmeira. Me conte o que estava fazendo naquela noite. Rachando o crânio do padre?
- Mas isso é ridículo! Por que eu mataria o Padre Alencar?
- Por que ele estava tendo um caso com sua mulher.
- Ah, isso! - ele diz, como se tivesse lembrado de algo. Suspira fundo, fecha os olhos e os abre de novo: - É verdade. Ele estava comendo minha mulher. Mas quem nessa cidade não comeu?
Eu e Suzana nos entreolhamos, atônitos. O delegado continua, em voz lamentosa, enumerando nos dedos:
- O farmacêutico comeu. O agente da Receita Federal comeu. O prefeito comeu, e o vice também. O garçom do Poleiro. O padre anterior, que veio antes do Alencar. O seu Eleutério...
- O seu Eleutério?!?
- Ele mesmo. Sabe o médico que examinou o cadáver? O Dr. Furtado? Então. O presidente da Câmara Municipal. O office-boy da Câmara. Olha só, acabaram os dedos da minha mão. E isso são os que eu sei.
Levanta-se e vai pegar um café na garrafa térmica, que engole com uma careta. Prossegue:
- Faz anos que ela me chifra. Por que eu implicaria justamente com o padre? Tirando essa mania dos sem-terra, ele até era boa gente.
- Mas a D. Marieta ligou para o padre na sexta-feira, dizendo que o senhor tinha descoberto o caso, e ameaçado matá-lo...
- Claro que eu descobri o caso. Depois de ver a Marieta saindo da casa dele, às três da tarde, não ia descobrir? Só falei pra ela maneirar, porque podia pegar mal. Padre é padre, né? Se bobear, vira escândalo.
"Agora, a Marieta adora fazer um drama. No dia em que o corpo do padre foi descoberto, foi a maior choradeira. Agora, já está alegrinha de novo. Logo arranja outro."
- Mas o senhor não se importa com isso?
- Não... - diz o policial, com um ar de desinteresse. - Tirando isso, até que ela é boa esposa. Trabalha feito uma mula, e ainda cuida da casa. Muito carinhosa, também.
Eu e Susana estamos sem palavras. Nunca me senti tão decepcionado. Ainda faço mais uma tentativa:
- Mas onde o senhor estava, afinal, na noite de domingo?
O delegado encolhe os ombros. Dá um sorriso safado:
- Ora bolas, seu Totó. Também tenho direito de me divertir.

Voltamos para o hotel silenciosos, desanimados. O delegado ainda bateu de novo na tecla do leão: "Sexta-feira o laudo chega aqui e vocês vão ver uma coisa. Foi ele", diz, apontando para o acusado, que se lambe em sua cela.
Quase chegando ao hotel, encontramos Mariana, toda animada:
- Vocês não imaginam! Passei a manhã toda no Poleiro e bati o maior papo com o Seu Eleutério. Ele me disse que a Marieta é a maior galinha, deu pra todo mundo aqui na cidade.
- A gente já sabe - digo eu, cortando o seu entusiasmo. - Inclusive, pelo que sei, já transou até com seu Eleutério.
Minha irmã arregala os olhos, inconformada:
- Com aquele bigodão?
- Com aquele bigodão.
- Eca, que nojo! Mas... - ela reflete - Se isso é verdade, e se o marido sabia de tudo, como seu Eleutério diz...
- Ele não tinha motivo para apagar o padre - digo, sombriamente - Certo, espertinha?
Ela concorda, balançando a cabeça.
Atingimos o fundo do poço. Estamos sem nenhuma pista.

Depois do almoço, nos reunimos para um brainstorm.
- Para ser franco - resumo - não tenho nenhuma idéia brilhante para continuar a investigação. Os tais desafetos do padre não tinham nenhum motivo para matá-lo.
- É verdade - concorda Mariana. - E eu não descobri mais ninguém que odiasse o padre.
- Mesmo assim, o caso dele com a D. Marieta... Sei lá, vai ver algum ex-amante ciumento dela...
- Fiz umas sondagens. - diz Mariana - Ninguém desconfiava de nada. Só aqueles malas lá da comunidade jovem.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, cada um remoendo seus pensamentos. Sou o primeiro a falar:
- Bom, o negócio é o seguinte. Sempre assumindo que o Bertoldo não é o assassino...
- E não é! - protesta Suzana.
- Ainda temos que fazer uma última checagem nos nossos dois suspeitos. Suzana, lembra do que o Boanerges disse hoje? Que o ex-sócio tinha negócios ilegais. Talvez o padre soubesse de alguma coisa sobre o assunto, e se tornasse perigoso para o Pedrosa.
- Mas como vamos investigar isso?
Nesse exato momento, o celular de Suzana toca. Ela atende, murmura alguns monossílabos e volta-se para nós:
- É o Pedrosa. Quer que eu vá olhar uma vaca que se machucou.

Suzana volta às três da tarde, meio desanimada. Pergunto imediatamente:
- E aí?
- Uma droga! Não consegui ficar um instante no escritório dele, para fazer a busca que você recomendou. A vaca não tinha nada, só um arranhão. Depois, ele me fez conhecer a fazenda toda, a plantação de cana, o rebanho... Perguntou se eu era solteira...
- Que cretino - digo, furioso.
- Mas achei pelo menos uma coisa interessante.
- O quê?
- Isso aqui.
E Suzana me estende um papel de tamanho ofício, amarrotado e sujo. Parece um panfleto, desses feitos em computador. Em letras grandes, estão os seguintes dizeres: "MOVIMENTO DOS SEM-TERRA OCUPA FAZENDA IMPRODUTIVA". Em baixo, uma explicação, em linguagem incendiária, da necessidade de ocupar a Fazenda Santa Lúcia, pertencente ao latifúndio que suga a nação. O panfleto é assinado pela Comunidade Eclesial de Base de Santa Margarida.
- Onde você achou isso?
- Na garagem dos caminhões do Pedrosa. Perto de uma mancha enorme de óleo. Disfarcei e botei no bolso. Ele não viu nada.
- Você perguntou ao Pedrosa sobre esse papel?
- Não. Achei que seria melhor investigar, primeiro.
- Muito bem, Suzana! Você está se revelando. Depois desse caso, não quer trabalhar conosco? - e disparo um sorriso (imagino) sedutor.
- Primeiro precisamos resolver o caso... O que você acha, Mariana?
- Esse material não podia estar na fazenda do Pedrosa - pondera minha irmã, com a mão no queixo. - Pelo que vocês me contaram, está cheia de seguranças. Duvido que algum sem-terra consiga botar o pé lá. Ou mesmo o pessoal da CEB. Totó, você viu esse panfleto na Santa Lúcia?
- De jeito nenhum. Você está pensando o mesmo que eu?
- Estou. Vamos falar com o Ronaldo.

A mãe do Ronaldo nos recebe de cara feia: "O menino está estudando para os exames da Faculdade", diz. Em contraste, a recepção do Ronaldo, depois que entramos, não poderia ser mais calorosa:
- Mariana! Que bom que você veio me visitar!
(Nossa. Quanta espinha, coitado.)
- Foi com ela que você saiu ontem à noite? - pergunta a mãe, cada vez mais carrancuda. O porre de Ronaldo não passou despercebido.
- Ronaldo - contra-ataca a Mariana - preciso muito falar com você. - Esse aqui é o Totó, meu irmão, e essa é a Suzana, que trabalha no circo.
- Mamãe - diz o líder - é melhor deixar a gente sozinho.
- Mas você não vai tomar sua vitamina, Ronaldo?
- Depois. Depois - e ele praticamente empurra a mulher pela porta. Senta-se à nossa frente e fica esperando. Sem mais reservas, contamos o que estamos fazendo em Santa Margarida. Ronaldo aprova:
- É melhor assim, mesmo. Alguém precisa investigar o assassinato do Alencar. A polícia daqui - e quase cospe, de tanto desprezo - está a serviço do latifúndio.
- Pois é - digo - nós estamos aqui para isso mesmo: investigar. Também não acreditamos que o leão tenha matado o padre. Agora, me diga uma coisa, Ronaldo...
Exibo o panfleto sujo.
- .... você já viu isso?
Ronaldo solta uma exclamação de surpresa:
- Ora vejam só! - vira e revira o papel entre os dedos - Claro que eu já vi. Fui eu quem escrevi e imprimi esse troço no computador, no domingo. Fiz uns quinhentos exemplares. Mas onde vocês acharam esse exemplar? Estava tudo aqui no meu quarto.
- Todos os quinhentos?
- Claro. Não chegamos a distribuir. Era para marcar a invasão da Santa Lúcia, que ia acontecer no dia seguinte - segunda-feira.
- Vocês já sabiam da invasão?
- Lógico que sabíamos. Mas aí o Alencar morreu, e o pessoal ficou tão abalado, que a invasão foi adiada. Ontem, quando ela aconteceu, ninguém nem se lembrou dos panfletos. É como eu digo: eles nunca saíram aqui de casa.
- Nunca? Ninguém pegou?
- Venham ver - e nos leva até o seu quarto, que tem livros espalhados para todos os lados, pôsters de Che Guevara e uma cama desarrumada. Num canto, está uma pilha de documentos exatamente iguais ao que Suzana achou.
- Estão vendo? - explica Ronaldo - Está intacta. Ninguém mexeu nela. Eu moro sozinho com a minha mãe, e quando saio tranco o quarto, porque ela é muito enxerida.
- Ninguém mais viu esse panfleto?
- Bom... só o Alencar. Como eu já disse pra polícia, no domingo à noite ele passou por aqui, rapidinho, para acertar algumas coisas. Mostrei o documento pra ele... Espere aí! Agora estou lembrando! Ele pegou um panfleto, sim! Começou a ler, disse que tinha erros de português, e aí enfiou o papel no bolso. Ia terminar de ler em casa. Parecia preocupado com alguma coisa. Agora, me digam: onde é que vocês acharam esse panfleto?

- Que golpe de sorte! - comenta Suzana, depois que saímos da casa de Ronaldo. - Com um simples papelzinho, conseguimos resolver o caso.
- Calma! - advirto. Não quero atitudes precipitadas, que podem arruinar o caso. Já foi um sufoco segurar o Ronaldo. Nossa! O garoto queria denunciar o fazendeiro para a cidade toda.
- Mas o padre esteve lá, na noite do crime! Tanto é verdade, que deixou cair o panfleto!
- Esse panfleto não prova nada. Precisamos de mais evidências. E ainda não temos o motivo do crime.
- Precisamos falar de novo com o advogado - diz Mariana.
- Isso mesmo - aprovo. - E dessa vez, não vamos esconder o jogo. Ele está brigado com o Pedrosa há algum tempo. Duvido que esteja envolvido nesse crime - se é que houve crime. E adoraria incriminar o ex-sócio. Vamos atrás dele.
Falo pelo celular com a secretária do Dr. Boanerges: ele vai estar no escritório até as sete da noite. Pulamos no carro, animados. Refaço todo o caminho para Antinhas, buraco por buraco. A suspensão do meu carro vai se lembrar dessa estrada por muito tempo.
No meio da viagem, o celular de Suzana toca. Ela atende:
- Dr. Palmeira? Como vai? O Bertoldo está bem?... O quê?
Fica escutando por alguns segundos, e a sua expressão muda. Finalmente, murmura:
- O senhor pode esperar até amanhã? Por favor, Dr. Palmeira - Mais um longo silêncio - Está bem, eu agradeço a sua compreensão.- Desliga o telefone e exclama: - Puta que o pariu!
- Que foi?
- Chegou o laudo de Juiz de Fora. O padre foi morto por um ataque de animal. Possivelmente, um felino de grande porte.
Páro o carro no acostamento.

- Coitado do Bertoldo! - Suzana está arrasada - O delegado diz que vai matar ele amanhã.
Mariana também está de crista caída.
- Depois de todo o trabalho que tivemos... Não acredito.
- Não entendo - diz Suzana, perplexa. - Esse leão era muito manso. Nunca atacou ninguém.
- Vai ver, o padre fez alguma coisa que irritou ele - sugere minha irmã.
Suzana tem lágrimas nos olhos:
- Fui eu que me iludi. Fui ingênua. Um leão é um leão, por mais anos que passe na jaula. Desculpem ter arrastado vocês para essa aventura - diz, engolindo em seco.
Continuo em silêncio por alguns segundos. Depois, digo em voz calma:
- Muito bem. Vamos parar com essa choradeira e raciocinar? Antes de mais nada: o laudo diz que o padre pode ter morrido em conseqüência do ataque de um grande felino. Pode não é deve, certo? Em segundo lugar: esse laudo não explica como o panfletinho foi encontrado na fazenda do Pedrosa.
- Deve ter sido coincidência, Totó. - diz Suzana. - O caso está encerrado. Todos vão acreditar no laudo.
- Pois mesmo que ele seja verdadeiro - digo - para mim o caso não acabou. Quero saber o que houve naquela fazenda, na noite em que Padre Alencar morreu.

Ainda tenho que insistir mais um pouco. As duas estão desanimadas, sem vontade nenhuma de falar com o Dr. Boanerges. Mas acabo convencendo-as, e em mais quinze minutos estamos em Antinhas.
O Dr. Boanerges está se preparando para sair, mas muda de idéia ao nos ver.
- Ora, meu amigo, que prazer! Resolveu comprar alguma fazenda? Ainda está na dúvida? Vamos entrar, que lhe passo as dicas.
Entramos no cubículo empoeirado onde ele atende seus clientes. Pigarreio:
- Muito bem, Dr. Boanerges. Temos que contar uma coisa para o senhor.
- O quê?
- Não somos fazendeiros. Não viemos aqui para comprar fazendas.
O homem nos olha, amedrontado. Talvez esteja com medo de assalto...
- Então, porque vieram?
- Somos detetives e fomos contratados para investigar um crime. A morte do padre Alencar.
O Dr. Boanerges empalidece ligeiramente - mas logo se recompõe:
- Ora, aquilo não foi crime. O padre foi morto pelo leão do circo.
- É possível. Mas existem algumas circunstâncias que não combinam com esta hipótese - E desfio toda a história do panfletinho. O advogado está ficando cada vez mais pálido. No fim, desaba na sua cadeira e geme, com as mãos tapando o rosto:
- Oh meu Deus do céu.
- O que foi, Dr. Boanerges? O senhor sabe alguma coisa sobre a morte do padre?
- Sei. - geme ele de novo. - Eu teria contado antes, mas achei que o leão pudesse ser culpado...
- Pudesse como?
- Sentem aí - diz ele, com ar derrotado. Eu conto toda a história.
Sentamos. Ele afrouxa a gravata e começa, nervosamente:
- Como vocês já devem saber, eu tive um problema com o Pedrosa. Não é segredo para ninguém. O sem-vergonha usou os meus serviços numa questão de litígio de terras, e nunca me pagou. Rompemos e eu fiquei esperando a hora de dar o troco.
"Eu e o Pedrosa trabalhamos juntos muitos anos. Claro que eu tinha material suficiente para enterrar ele, se quisesse. O problema", pigarreia mais uma vez, "é que, inocentemente, me envolvi em alguns desses negócios. Alguém poderia me interpretar mal, entendem?"
Eu e Suzana trocamos olhares:
- Entendemos - digo.
- Bem. Fiquei pensando, e acabei tendo uma idéia: denunciar o Pedrosa por um outro negócio sujo dele, do qual eu não participei. Me lembrei de uma maracutaia dele que se encaixava bem no que eu queria. Resolvi fazer uma denúncia anônima, para impedir qualquer retaliação.
"Enquanto aperfeiçoava meu plano, fiquei sabendo que outra pessoa estava a par da história: o Padre Alencar. Ele já tinha questionado várias vezes o Pedrosa sobre esse negócio - uma atividade clandestina, ilegal, mas muito rentável. Pensei que talvez eu pudesse passar uma dica para o padre. Padre sempre tem muita credibilidade, podia fazer a denúncia por mim.
"Telefonei para ele uma ou duas vezes, dando outras dicas, sem me identificar. Aí, no sábado passado, tive um golpe de sorte. Estava andando pela cidade, e encontrei por acaso um empregado do Pedrosa, bebendo num botequim. Esse sujeito trabalha há anos numa fazenda em Mato Grosso do Sul".
- O Pedrosa tem fazenda em Mato Grosso do Sul?
- Perto do Paraguai. Mas pouca gente sabe. Aparentemente, é uma fazenda de gado como outra qualquer. Só que o sem-vergonha usa aquilo como entreposto para comércio ilegal e contrabando. Esse empregado dele - o Ramiro - estava justamente vindo do Paraguai num caminhão, com um carregamento ilegal que o Pedrosa queria inspecionar. Iam passar a noite na fazenda. O Ramiro não sabia da minha briga com o patrão e contou tudo.
"Assim que saí do botequim, fui correndo para o telefone, liguei para a casa paroquial e passei a dica ao padre. Era uma oportunidade de ouro. Ele só tinha de chamar a polícia e fazer o flagrante. Como eu podia imaginar que esse maluco fosse sozinho pra lá?"
- Talvez ele tenha querido verificar os fatos pessoalmente - diz Suzana - Agora conte, Dr. Boanerges. Que mercadoria ilegal era essa que o Pedrosa estava contrabandeando?
- Bichos.
- Bichos?
- Pois é. O Pedrosa comprava animais silvestres de peões lá da região da sua fazenda, a preço de banana. É gente muito pobre. Ele tinha um esquema profissional: trazia esses animais em caminhões climatizados até o porto de Santos, onde eles eram embarcados clandestinamente para o exterior. Você não imagina a procura que esses animais têm lá fora. Circos e zoológicos particulares pagam fortunas por eles. O caminhão que o Ramiro veio dirigindo estava cheio de gaiolas com pássaros, capivaras, macacos...
- Que crápula - murmura Suzana, indignada.
- Pelo que o Ramiro me contou, tinha até uma onça.
- Uma ONÇA?!?

- Foi um acidente - diz Pedrosa - O Ramiro deixou a porta do caminhão aberta e entrou em casa para falar comigo. Mas todas as gaiolas estavam fechadas.
- Todas, menos a da onça - observa Mariana, sardonicamente.
- Como eu ia adivinhar que a danada ia destruir o fecho com um tapa? Quando saímos, ela nem estava mais lá. Esmigalhou a cabeça do padre. Quase tive um infarto. O padre Alencar deve ter chegado no escuro, para verificar a denúncia do Boanerges.
"Ficamos apavorados, eu e o Ramiro. Foi aí que meu capataz teve a idéia. Sabia que o circo estava na cidade...
- Você é um covarde ganancioso - diz Suzana. - Não pensou um instante antes de transportar o cadáver do padre para a cidade, largar numa rua escura, e deixar que um animal inocente fosse incriminado. Mas é claro: para quem prende um monte de bichos todo ano, ser responsável pela morte de um leão é fichinha!
- Se você não fosse tão louco por dinheiro - murmura o Dr. Palmeira para o seu preso - poderia até ter escapado, seu trouxa.
Dois dias depois do depoimento de Boanerges, Bertoldo já foi removido da cela e está de volta ao circo. Em seu lugar, ficou o fazendeiro Pedrosa, que aguarda a chegada do advogado.
Assim que foi chamado à delegacia, o fazendeiro negou tudo. Disse que o ex-sócio estava louco. Mas o testemunho de Boanerges - e mais a influência de Dona Marieta, que é íntima do juiz - garantiram um mandado de busca à fazenda de Pedrosa. E lá, por incrível que pareça, foi encontrado o famoso caminhão. Estava escondido num capão de mato, cheio de gaiolas com animais.
- Se você tivesse despachado imediatamente o Ramiro, depois da morte do padre, nós nunca encontraríamos o caminhão. - reflete o Dr. Palmeira. - E nem aquele seu motorista cagão, que confessou tudo na hora.
- A onça valia mais do que todos aqueles bichos juntos - resmunga o fazendeiro. - Além disso, podia matar mais alguém. Eu precisava recuperar o bicho.
- Bom - digo eu, me levantando - precisamos ir andando... Muito obrigado pela ajuda, Dr. Palmeira. Mande lembranças à D. Marieta.
Saímos para uma bela manhã de sábado, com nossa missão cumprida. Suzana está de malas prontas: vai voltar conosco para o Rio. "Chega de circo", declarou, assim que devolvemos o leão aos cuidados do domador. "Agora vou realizar meu sonho de viajar pelo mundo. Vou conhecer país por país, em ordem alfabética".
Passamos por uma banca, e Mariana compra o jornal da cidade. O Diário de Santa Margarida ainda não deu a prisão do fazendeiro, acontecida no fim da tarde de ontem. Mas isso não tem importância, porque a manchete de hoje também é sensacional: ONÇA CAPTURADA NO ACAMPAMENTO DOS SEM-TERRA.
- Vão devolver para o Ibama - anuncia minha irmã. - Que pena. Eu, se fosse eles, adotava o bicho como mascote.
- Mas ninguém vai matar essa onça, certo? - pergunta Suzana.
- De forma alguma. - digo - Ela vai ser devolvida ao lugar de origem. Afinal, o culpado pela morte do padre é o Pedrosa, não ela.
- Será que ele não abriu a jaula e atiçou a onça em cima do padre?
- Duvido muito. Não por causa do padre, mas da onça... Esse bicho realmente vale uma grana.
Olho para o outro lado da praça: é sábado, e o Poleiro está fervendo.
- Eles vão ter assunto para um mês - comenta Mariana.

- Afeganistão - digo eu, de repente.
São oito horas, e estamos comendo uma pizza encomendada por telefone. Do outro lado da mesa, Mariana me olha com cara de poucos amigos.
- Afeganistão o quê, seu cretino?
- A essa altura, a Suzana deve no Afeganistão. Ela disse que queria conhecer o mundo inteiro, em ordem alfabética. Portanto...
Voltamos de Santa Margarida há três semanas, e desde então não tive mais notícias de Suzana.
-É verdade - concorda Mariana - Ela deve estar lá no Afeganistão, vestida com uma burka, no meio de um tiroteio. Foi pra lá só pra ficar livre de você, babaca. Puta merda, não sei porque eles colocam beringela na pizza. Odeio beringela!
Suspiro, e continuo a comer o meu pedaço, melancolicamente. Terminado o almoço, vou espremer a embalagem de papelão dentro do lixo. Estamos de volta à velha rotina: pizza por telefone, casa suja e desarrumada, adultérios para investigar...
A campainha toca. Sem ânimo, vou atender a porta. Deve ser a Vânia, aquela amiga despirocada da Mariana. Os pais dela fazem questão que a garota aprenda inglês. Toda sexta-feira, ela diz aos pais que vai à aula de inglês, e fica aqui em casa, assistindo filmes do Chuck Norris, seu ídolo.
- Suzana?
É ela mesma, linda, bronzeada, com uma mochila às costas.
- Oi, Totó.
- Já voltou do Afeganistão?
Ela ri:
- Em primeiro lugar, não voltei de lugar nenhum, porque não saí ainda. Estava ocupada com meu filhote. E em segundo lugar, não estou indo pro Afeganistão. Movimentado demais pro meu gosto. E a viagem é cara. Prefiro começar pela Argentina.
- Mas... Você quer entrar?
- Negativo. Vamos tomar um troço aí no botequim da esquina?
Aceito correndo, com medo que Mariana apareça e também seja incluída no programa (felizmente, ela está no banheiro).
- Quantas horas faltam pro seu vôo? - pergunto, quando a porta do elevador se fecha.
- Umas quatro. Dá tempo pra gente conversar um pouco. Eu queria te fazer uma pergunta, antes de ir embora.
- O Pedrosa foi solto - adianto. - O advogado dele conseguiu um habeas-corpus.
- Perfeito, mas não era sobre o Pedrosa que eu queria perguntar.
- Então era o quê?
- É o seguinte, Totó: você quer namorar comigo?
Assim que ela fala, o elevador se abre na nossa frente. Suzana sai e eu, de tão atrapalhado, fico lá dentro. O elevador vai até o 15o andar, pára em vários outros andares, pessoas entram, saem, e eu continuo lá, parado, com o coração batendo a uma velocidade incrível.
Felizmente ela ainda está me esperando, quando chego ao térreo.
- Então? - pergunta.
- Namorar? Assim, de repente? Você vai viajar agora...
- Volto daqui a um mês. O negócio é o seguinte: eu estou sem namorado, você foi o máximo nesse caso do Bertoldo - segurou todas - e eu te acho uma gracinha, sinceramente. Quando eu voltar, a gente pode namorar um pouco, pra ver se dá certo. Topa ou não topa?
- Topo. Mas pelo amor de Deus, não vá conhecer um argentino e mudar de idéia. Eu sou muito sensível.
- Não vou olhar para homem nenhum. Juro.
- Que bom.
- Só os bonitos, é claro.
Saio para a rua de mãos dadas com ela, achando o mundo lindo, a vida bela, e o botequim onde entramos uma sucursal do paraíso (na verdade é uma espelunca horrorosa, dessas onde você nunca sabe se uma barata vai sair da sua coxinha). Suzana me dá um beijo, e ainda estou sob o efeito dessa experiência cósmica quando o garçom vem falar comigo.
- Tem cerveja? - pergunto, sorrindo para ele, como se fosse o mais belo garçom do mundo.
- Cerveja, tamos em falta, patrão. - Sorri mostrando um dentinho de ouro na cara muito preta, e em seguida oferece: - Serve Fanta Uva?

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