Onde se ganha o pão, não se come a carne...
JUSTA CAUSA
Raymundo Magalhães. O nome imponente, com ípissilon no meio, está no seu RG encardido. Ali aprendemos que Raymundo é do Crato, no Ceará; filho de Maria Deonilda, nome do pai em branco. Cabeça-chata mas bem-apessoado, chegando aos cinqüenta. Um ou outro cabelo branco, o corpo ainda firme. O ar de distinção o qualifica para o cargo de porteiro do edifício-sede de um conglomerado de mídia. Raymundo usa terno escuro e gravata, fala baixo, é educado, tem muitos anos de casa. Faz o turno da noite e conhece todos os jornalistas, que nunca deixam de cumprimentá-lo: beleza, seu Raymundo? Ele responde afável; está quase se aposentando, mora no Piqueri com a mulher, sustenta uma filha e uma neta, ainda tem muitas prestações da casinha por pagar.
Os jornalistas vão indo embora, lá pelas nove está tudo vazio.
Até que se abre o elevador e sai uma moça. Uma jornalista. Bom, moça é gentileza, já deve ter passado dos quarenta. Cargo importante na empresa, disso até seu Raymundo sabe. Diretoria. É de lua; tem horas que cumprimenta, outras passa sem nem olhar o porteiro. Não que ele se importe.
Dessa vez ela está amável, puxa conversa, quer saber: como foi seu dia? muito cansado, seu Raymundo? Um pouco, minha senhora. Não precisa me chamar de senhora, que é isso, seu Raymundo. Também fiz hora extra hoje. Como a gente trabalha, né? Já vai sair? Quer uma carona? Não, incômodo nenhum, imagina. Que custa dar carona pra um colega?
A moça é tão gentil, fica chato recusar. Saem no carro dela, novo em folha, com ar condicionado e poltronas de couro. No caminho ela pára de repente numa rua escura. Fecha os olhos, pula vários andares da pirâmide social e agarra o porteiro.
Seu Raymundo não sabe o que fazer, o que dizer pra moça. Ela começa a chorar, pede desculpas. Diz que sempre sentiu uma atração por ele. E depois, se ele soubesse:
"...eu tenho uma vida horrível, Raymundo - posso chamar você assim? Horrível. Meu marido me largou por outra, vivo sozinha, não tenho ninguém, só meu trabalho. E todos me odeiam nessa empresa. Pensa que não sei o que dizem pelas minhas costas? Minha vida é um inferno, o senhor reparou que mês passado faltei vários dias? Pois é. Não comente com ninguém, dei outra desculpa, mas estava no hospital, me recuperando de uma tentativa de suicídio. Foi num fim de noite, fiquei sozinha em casa; me deu uma depressão que o senhor nem imagina! Tomei todos comprimidos que tinha, e olhe que tinha muitos, faço tratamento com psiquiatra. Quase morri.
"Mas agora já estou melhor.
"Seu Raymundo eu juro por Deus que se o senhor não me levar agora mesmo prum motel eu me atiro da ponte e morro afogada nesse rio fedorento".
Fazer o quê? Seu Raymundo é levado pela jornalista maluca a um motel. Suíte presidencial, uma fortuna, ele nunca esteve num lugar desses. Vinte anos de fidelidade irrestrita à Dona Marli, sua esposa. E comer a tal mulher não é fácil, ele está inibido e pra falar a verdade ela é muito feia, pernas finas, um narigão enorme, ar de demente. No fim ele consegue um desempenho razoável, fechando os olhos e pensando na mulher. A jornalista parece satisfeita.
O problema é que não pára por aí, ela volta outras vezes. Sempre a mesma manobra, fica mais tarde e oferece carona ao funcionário. Ele sente remorso, vergonha. Imagine se os colegas de trabalho soubessem. Imagine se Dona Marli soubesse! Começa a perceber também que a moça, quando fica até mais tarde, enche a cara. Já chega arrastando as palavras, e fixando o porteiro com um ar de luxúria embriagada que lhe dá calafrios na espinha.
No começo ainda tenta dizer não, mas a moça é clara: não brinque comigo, tenho poder pra colocar você na rua. E é verdade. Seu Raymundo não pode perder esse emprego, e a filha, tadinha? mãe solteira que não recebe um tostão do pai do seu neto? e as prestações da casa? e o filho casado que ele também ajuda, pro rapaz terminar a faculdade?
No motel, fecha os olhos e pensa na carne macia da esposa, enquanto ataca os ossos pontudos da jornalista.
Mas ela se torna exigente. Bebe e faz declarações de amor, Raymundo, estou apaixonada. Vamos morar juntos, não agüento mais aquele apartamento vazio.
Mas o quê as pessoas vão pensar?
Eles que pensem o que quiserem, estamos no século vinte e um, sou dona do meu nariz.
Mas e a minha mulher?
Não estou nem aí com a sua mulher.
E os meus filhos?
Eles que se fodam.
Uma hora ela é cínica, outra doce; mas sempre maluca, louca, demente. Quando bebe bastante fala do ex-marido, chora, diz que quer ter um filho com o porteiro. Que sua frio, desesperado.
Um dia chega em casa e encontra a Dona Marli assustada, ligou aí uma mulher esquisita, não disse o nome, parecia drogada, sei lá. Queria falar com você. Quando disse que não estava, me xingou e bateu o telefone na minha cara. Quem é essa sujeita, Raymundo?
Naquela noite o porteiro se decide, chega, vai acabar com essa história. Se for demitido, paciência, pega o Fundo de Garantia. Já tem bastante dinheiro lá, dá pra agüentar enquanto arruma outra coisa.
Às dez da noite sai com a jornalista e diz, você me desculpe, mas assim não dá; minha mulher está aborrecida, vai descobrir tudo e e aí é um problema. Melhor parar com essa história, imagine se seus colegas ficam sabendo, não é? que vexame pra senhora, digo, pra você.
A mulher não responde nada, fica em silêncio ao volante. Raymundo quase pensa que ela vai aceitar as coisas, mas de repente a jornalista berra, você quer me abandonar, seu desgraçado? me usou e agora quer me jogar fora feito lixo? Ah, mas isso não fica assim. Pisa no acelerador e joga o carro por cima da ponte.
A jornalista quase morre, Raymundo bebe um monte de água fedorenta. A história se espalha, ele é demitido por justa causa.
Já nenhuma beleza pra começo de conversa, a mulher leva trinta pontos na cara. E Raymundo perde trinta anos de FGTS.
Também demitida, hoje à tarde a jornalista está armando sua terceira tentativa de suicídio, à base de muita vodka e tranqüilizantes; enquanto isso Raymundo se prepara pra ver o programa do Gugu no recesso do seu lar, em companhia de Dona Marli, sua esposa. Ela sabe de tudo e já o perdoou.
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