Ele sabia abrir todas as portas. Até que um dia fugiu.

O JOVEM HOUDINI

“Respeitável público! O Grande Circo Universal apresenta sua maior atração: o Garoto Prodígio, o Gênio das Fechaduras, o Mago das Fugas, o Jovem Houdini! Com apenas treze anos, senhores, treze anos, vejam bem, esse artista consegue escapar de qualquer prisão, jaula ou armadilha! Ferrolhos, trancas e fechaduras não têm segredos para ele! Foge até dos mais  modernos cofres, controlados por computador!”
“Hoje à noite, nosso artista fará uma demonstração da sua arte, escapando de um cofre com alarme a laser! Este equipamento nos foi emprestado por uma instituição bancária que deseja permancer anônima. Atenção senhores... O Jovem Houdini está sendo amarrado e algemado... Seus olhos são vendados... Agora ele é trancado no cofre por nossa assistente, a bela Keila. Obrigado, Keila, obrigado.  (De nada, bicha velha). Como os senhores podem ver, todos os alarmes foram acionados. Vamos cronometrar o tempo que nosso artista levará para escapar, sem acionar nenhum deles!”
“Três minutos e quarenta e um segundos! Impressionante, senhores e senhoras! O Jovem Houdini acaba de bater seu próprio recorde! Palmas para ele!”
“Obrigado, respeitável público, obrigado. Nosso artista agora precisa descansar. Seus métodos de fuga lhe custam muita energia. Ele ainda é só um garoto.”

“Respeitável público de Madri (ou Londres, ou Cingapura, ou Cidade do México, ou Bombaim), no espetáculo de hoje, nosso jovem artista será mergulhado de pés e mãos amarradas nessa cuba de água semi-congelada, de onde escapará em apenas dois minutos! É um prodígio! E lembrem-se, senhores, ele tem apenas catorze anos!”

“Senhores e senhoras, estamos felizes de estar em Bruxelas (ou Filadélfia, ou Rio de Janeiro, ou Madras, ou Pequim) com nosso prodígio, o Jovem Houdini. Hoje o artista vai escapar dessa cela em chamas sem uma só queimadura, apesar dela estar trancada com um segredo eletrônico inviolável... E esse garoto de quinze anos faz isso apenas com seus poderes paranormais!”

“Respeitável público da Cidade do Cabo. Por motivos de força maior, hoje não poderemos apresentar o espetáculo do Jovem Houdini. Dirijam-se à bilheteria para receber de volta o dinheiro de seus ingressos”.

Dois anos depois, Pablo Rivera, apresentador e empresário do Jovem Houdini, reencontrou seu protegido.
Quanta coisa pode acontecer em dois anos! Meses depois da fuga do Jovem Houdini, Pablo Rivera ficou doente. Gastou todas economias em hospitais, médicos e remédios. Quando se recuperou, estava pobre.  Tentou trabalhar como mágico, mas não era grande coisa nesse ramo. Dirigiu por uns tempos um show de elefantes dançarinos; mas os elefantes estavam velhos e tiveram de encerrar a carreira por causa da artrite.
Antes de adoecer, Pablo Rivera procurou muito pelo seu protegido. Contratou detetives. Mas nenhum foi capaz de localizar o garoto. Um deles até brincou:
 - Desculpe, Monsieur Rivera, mas esse Jovem Houdini...
- Sérgio. O nome dele é Sérgio.
- Além de escapar de cofres, também desaparece! O garoto é um prodígio!
Pablo não respondeu. Seu coração estava partido.
Agora, dois anos depois, sentado num banco da Praça São Marcos em Veneza, vestido com um surrado terno de linho, ele refletia sobre a melhor maneira de gastar suas últimas liras. Comida ou uma diária de hotel? É duro passar fome, mas ficar  ao relento naquela noite de outono não era boa idéia...
Foi então que um jovem bem-vestido veio sentar-se ao seu lado. O senhor Rivera virou-se, e voilà. Ao seu lado estava Sérgio, o Jovem Houdini!
- Você! - balbuciou, em choque. - Você!
O jovem também estava surpreso:
- Mestre Pablo!
- Seu ingrato miserável!
Os dois se abraçaram. Pablo Rivera chorou.
- Por que fugiu de mim, meu filho?
- Não gostava mais daquela vida.
- Você devia ter conversado comigo...
- Tentei, mas você nunca me ouvia.
Pablo examinou Sérgio com atenção. O rapaz de fato usava belas roupas, mas de uma elegância suspeita, como se fosse... E aquilo no rosto, o que era? Sem conter-se, passou um dedo pelos seus lábios:
- Batom? - perguntou, chocado.
Sérgio deu um sorriso lânguido:
- Batom.
- O que você faz para ganhar a vida?
- Exatamente o que você está pensando.
- Madrecita! - O velho empresário começou a chorar de novo.
- Não faça dramas, mestre...  - disse o garoto, com um suspiro fatigado.
- Se tivesse continuado comigo, nada disso aconteceria. Você não precisaria fazer essas coisas para sobreviver...
- Quem disse que não gosto dessas coisas?
Pablo desviou o olhar, embaraçado. Houve um longo silêncio, que ele rompeu dizendo em voz fraca:
- Você ficou tão bonito.
Era verdade: o rapazinho magro que abria cofres com a força da mente se tornara um belo rapaz, alto e forte. Os cabelos castanho-claros eram  compridos. As unhas estavam cuidadosamente manicuradas. Pena - pensou Rivera - que usasse tanto perfume...
Os dois ficaram se olhando, até Sérgio dar uma risada:
- Pra quê essa tristeza toda? Você parece precisar de uma boa refeição. Vamos. Eu pago.
- Mas...
- Vamos já. Andiamo via!  Já contei que minha avó era italiana? Que saiu do Vêneto quando menina e passou o resto da vida num bairro paulistano muito feio, chamado Brás?
- Você nunca me contou, não...
- Pois é. Como vê, estou voltando às origens. Vamos comer!

Às onze horas da noite, o Jovem Houdini e seu ex-empresário estavam no quarto de um luxuoso hotel da cidade.
- Você tem dinheiro para pagar isso? - perguntou Pablo Rivera. E tomou rapidamente mais um gole de vinho, como se temesse a resposta.
- Claro que tenho, mestre! Ontem passei a noite com um americano muito rico... Quer mais um gole?
- Quero - disse Rivera.
- Rico, velho e nojento - disse Sérgio, com uma careta.
O velho empresário lançou um olhar triste ao rapaz. Suspirou. Tomou o resto de vinho com um só gole, e perguntou:
- E seus poderes?
Sérgio, que se preparava para encher sua própria taça, parou a garrafa no ar:
- Que tem os meus poderes?
- Nunca mais os usou?
- Não - disse secamente o rapaz. - Nunca mais quebrei sequer um cadeado. Não consegui nem sair de uma cadeia ordinária de Fiesole, onde me colocaram uma vez....
- Mas por quê?
- Não quero falar disso. Perdi os poderes, pronto.
- Isso não faz sentido. Você tem de me contar. Me deve uma explicação.
- Mestre, aqueles poderes só faziam sentido quando estávamos juntos.
- Como assim? - disse o velho, levantando a cabeça do travesseiro.
O rapaz olhou-o longamente. Depois disse:
- Você tinha a chave. Mas eu sabia abrir. Quando quis, me fui.
- Ainda não entendo - gemeu Rivera, fechando os olhos e deixando a cabeça cair de novo no travesseiro. Sérgio reclinou-se sobre ele e beijou-o. E disse ao seu ouvido:
- Só seu amor me prendia... Esse era o milagre. Esse era o prodígio.... Só  seu amor.
Mas o velho já estava ressonando.
Sérgio deu um suspiro, levantou-se sem muita firmeza e cobriu Rivera com um cobertor.  No lobby, instruiu o empregado:
- Não acordem o signore  do quarto 25. Ele está repousando. A conta já foi paga.
- Ele tem  a chave? - perguntou o rapaz.
- Ele não precisa - disse Sérgio, com um sorriso.
Saiu do hotel gingando o corpo. Naquela noite, já estava de volta às calçadas de Veneza.

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