"Altas baixarias com um pequeno grande homem"
O HOMEM PERFEITO NA TERRA DOS ANÕES

Ele é baixo, muito baixo, mas altamente casado. O homem mais casado da Terra. Passa horas ao telefone com a mulher. Comenta as proezas do caçula, do mais velho, da garotinha do meio. E está sempre ansioso para chegar em casa, ao final do expediente.
Não tenho a menor chance com esse homem baixo, ridiculamente baixo, bem mais baixo do que eu. Mesmo assim, eu tento.
Ele é meu chefe e me esforço para agradá-lo. Faço horas extras sem reclamar, até me ofereço. Pego aqueles serviços que ninguém quer: os piores clientes, os piores horários. Sinto um prazer inexprimível em ouvir, calada, insultos de um cliente mal-educado ao telefone. Estou sofrendo pelo homem baixo, meu chefe; e sei que seu olhar compassivo me acompanha.
 Outro qualquer, nessa situação, me tiraria o couro. Mas ele, apesar de baixo, é bondoso. Várias vezes me avisa, não se mate tanto, Maria Elisa, não se estresse. Vá pra casa descansar. E eu protesto, suplico para ficar trabalhando. Nada supera meu prazer de aparecer no dia seguinte cansada, com olheiras fundas, e sentir em mim, como uma carícia, o seu olhar: Maria Elisa é minha melhor funcionária, ouço ele dizer um dia. Uma pérola.
No fim do ano ele dá uma festa em sua casa para o departamento. É então que fico conhecendo sua mulher e seus filhinhos adoráveis. Todos muito baixos.
No meio de uma coxa de peru, percebo que luto uma batalha perdida. A carne do peru é rósea e tenra; ainda por cima a mulher cozinha maravilhosamente.
Esse homem nunca me amará.  Bato em retirada alegando dor de cabeça.
Um novo ano começa, e viro outra Maria Elisa. Pra começar: saltos altos, que me permitam olhar ele de cima. E lá de cima, me aproveito da minha posição de  confiança para miná-lo, espalhar fofocas a seu respeito. Reclamo que estou sobrecarregada; também, meu chefe deixa todo o trabalho em minhas costas! Ao revisar seus relatórios, introduzo erros. O homem baixo entra em baixa.
Aos poucos, ele percebe o que está acontecendo. Me chama em sua salinha, me interroga. Está magoado, não entende porque o traio. Seu olhar de tristeza faz com que todos os riscos que corri, sabotando-o, valham a pena. Sim, esse momento vale tudo. E o homem baixo não sabe que reagiu tarde demais. Sua natureza crédula o transformou numa vítima fácil. Sua demissão já é  tida como certa, e sou a primeira na linha de sucessão. Meu salário vai dobrar, mas nada disso importa; é secundário, bobagem. O que vale é o olhar triste desse homem baixo.
Invento mentiras, nego algumas acusações, assumo outras, alego problemas pessoais. E ele cai feito um patinho, impressionante a sua inocência.
Continuo meu trabalho de sapa, mais por esporte que por necessidade. Mais algumas semanas, e meu chefe recebe o bilhete azul. Sei que terá dificuldades em arranjar outro emprego, já passou da idade. Observo sua retirada, o arrumar dos papéis, o esvaziar das gavetas, as lagrimazinhas idiotas das subordinadas. Ele não se despede de mim, apenas me lança um olhar magoado. Foi vítima da sua própria bondade.
Eu poderia gozar aqui mesmo, nesse exato instante.
É só no dia seguinte, ao assumir meu novo cargo, sob os olhares rancorosos dos colegas, que a realidade me atinge novamente, com gosto de coxa de peru. Estou sozinha, ele não vai voltar. O homem baixo foi para casa, onde ficará para sempre com sua mulher baixa e seus filhos anõezinhos.

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