De alguns sonhos, é melhor nem acordar...

MORFEU É MEU DEUS

Noite, era a noite que se aproximava. Um crepúsculo sujo. Na cadeia você imagina o mundo em cores alucinantes; mas, lá fora, só encontra mais cinza. Alguns amigos, a família - venha de tarde meu filho, seu pai não quer te ver. Primeira noite na Augusta, mas as caras conhecidas não me diziam nada. Estava ali pra outra coisa.
Noite, noite, noite.
Saí da cadeia com uma idéia fixa. Hospedado de favor contigo, Marcinho, levei dias pra tomar coragem. Você achava a idéia maluca; com o tempo, desistiu de argumentar. Naquele fim de tarde, devia imaginar que eu estivesse ali, na esquina da Frei Caneca onde tudo tinha começado.
Noite,  Marcinho.
Eu só queria falar com ele. Sem idéias de vingança. Longe disso. Pensando bem, ele não tinha feito nada de errado. Cada um se defende como pode, né? Na cadeia eu não podia me defender, então... Você já imagina. A boneca do pavilhão. Mas ninguém quer falar sobre isso. Ninguém quer ouvir essa história.  Pode mudar de assunto. Nem eu mesmo quero falar.
Mas antes de esquecer tudo, precisava falar com o cara.
Me lembrava bem dele. Uns quarenta anos, por aí. Biba pintosa, correntinha no peito, sorriso óbvio. Apareceu no Trianon, eu estava lá de michê. É, michê, Marcinho. Vai dizer que não sabia. Cê achava que eu vivia do quê?
(Noite, por acaso? Noite afinal?)
E agora, dois anos depois, eu estava ali, esperando o cara aparecer. Ô Marcinho - sem falsa moral. A grana não ia fazer falta pra ele. Quando pintou no Trianon, vi logo que era rico. Vamos pro meu apê? Hesitei, preferia os bares. Mas ele queria em casa mesmo.
Quanto você cobra? Disse o preço, ele topou: tô com  meu carro aqui no estacionamento. Puta carro também. Corolla. Não me lembro o ano, Marcinho.
Você é meu melhor amigo. Achou que eu tinha me regenerado. Que não dava mais aquele golpe.

É como diz um cara que eu conheço: no fundo, é a velha luta de classes. Bicha pobre contra bicha rica. Não muda nunca. Difícil o cara dar queixa; até porque muitos são casados. Mas esse cara não usava aliança. Usava, isso sim, um sorrisinho irritante pregado na cara. E língua presa, cuspia os esses, que nojo. Ia ser um prazer limpar o babaca.
(Foram dois anos na cadeia só pensando nessa história).
Fomos pro apartamento dele, ah! ali naquela janela, no terceiro. Um por andar, o filho-da-puta tinha do bom e do melhor. Sala enorme, som ferrado, home theater, o caralho. Nem precisei dizer que estava com sede, ele abriu um armário, mostrou orgulhoso, o que você prefere? será que o cara bebia tudo aquilo, não é possível, acho que era só pra exibir. A conversa de sempre: só bebo se você me acompanhar. Claro, vamossss tomar um vinho. Me animei, era a melhor escolha, vinho as pessoas tomam rápido.
Noite fechada mesmo, agora.
A ironia é que sempre gostei de dormir cedo, me matava aquela história de ficar rodando no Trianon. Carros passando. A conversa da garotada, os olhares, e eu às vezes já estava morrendo de sono quando pintava alguém que. Com a maioria dos caras eu só dormia e cobrava uma grana. Não dava o golpe em qualquer um. Escolhia. Tinha que ser como aquele cara. Bem-vestido. Antipático. Exibido. Depois do primeiro copo de vinho disparou a falar. Contou vantagem da empresa onde trabalhava, que o chefe adorava ele, que tinha sido promovido e não sei mais o quê. Perguntou que carro eu tinha? porque o Corolla ele tinha acabado de comprar, modelo ótimo aliás. Eu disse que não tinha carro e ele, condescendente: "Melhor, faz maissss exercíssssio, né?" É.
O cara me deixava furioso. Assim que virou as costas, coloquei o comprimido no copo de vinho dele. Pus com gosto, sei porque vi essa cena na minha cabeça milhares de vezes, lá na cadeia. Que nem DVD. Replay. Replay. Replay de novo, torturante. Ele bebeu tudo num gole só, nem reclamou do gosto. Claro, tenho certeza de que não troquei os copos - Marcinho, cê vê muito filme policial. Ele bebeu o vinho que eu dei. E ele não dormiu.
Continuou falando, e se encostando em mim. Esperei o remédio fazer efeito.  Preocupado. Olhando o relógio, contando os minutos. Com aquela grana ia pagar crediário, comprar umas roupas bacanas. Mas o cara não dormia. Começou a me alisar, me beijar. Eu deixando acontecer, mas olhando o relógio. Nada. Em geral demorava uns cinco minutos, no máximo dez. Mas já fazia meia hora e o cara continuava acordadíssimo. Eu tinha mais comprimido, botei no copo quando ele foi no banheiro. Um médico lá da prisão disse que eu podia ter matado ele. Pois o filho-da-puta nem piscou. Voltou, engoliu o resto do vinho de uma vez só e disse:  "Vamos pra cama".
Fui, fazer o quê?
Resumo da ópera: ele não dormia, e meu pau não levantava.
Quis me chupar. Se esforçou de todos os jeitos. Nada. Língua, mão, dedo, tudo. Eu estava morrendo de vergonha. Foi o nervoso, sei lá. No fim, quase chorando, disse que não cobrava nada. E se ele quisesse outra coisa... Pra mim tanto fazia. Ele se afastou, ressentido. "Dorme aí, amanhã a gente converssssa". E saiu do quarto.
Acho que cochilei um pouco. Quando acordei ele estava do meu lado. Quieto. Olhos fechados. Ressonando. Me deu um alívio. "Puta, o cara dormiu". Até dormindo parecia satisfeito consigo mesmo. O dono do mundo. Com seu armário cheio de bebidas. Com a correntinha no peito. O Corolla do ano. Agora ele ia ver uma coisa.

Essa parte você já sabe, Marcinho. Eu tava catando as coisas pelo apartamento quando o bofe acordou. A carteira dele já estava no meu bolso, eu tava pegando um relógio que achei no banheiro, coisa fina, acho que Rolex mesmo. Ou imitação bem boa. Ele veio por trás. Uma pancada na cabeça, com um vaso.
Noiteeeeeee!
Fui acordar na cadeia.
Não tava dormindo nada, explicou "a vítima" ao delegado, só me achou esquisito, e então preferiu ficar acordado, fingindo que cochilava. (Imagina, só: o cara quase me mata de pancada, e no fim ele é a vítima). Um desastre. Já era minha segunda vez, da primeira paguei um policial pra aliviar o flagrante. Daquela vez não teve jeito. O juiz mal olhou pra minha cara, o advogado que minha mãe pagou disse que eu dei sorte de pegar só dois anos.
Sorte porque não foi com ele.
Dois anos remoendo a mesma pergunta, por que ele não dormiu? Responde pra mim só essa pergunta, Marcinho, por que não dormiu? Eu tinha que saber, senão ia ficar maluco. Depois podia cuidar da minha vida, arranjar um emprego, todas essas coisas que você vivia me dizendo pra fazer. Mas primeiro tinha que falar com o cara.

Era ele que eu estava esperando na Frei Caneca. Já estava indo embora quando de repente ele apareceu, do nada.
Eusabia que o cara ia se assustar. Mas falei com calma.  Olha, só quero saber uma coisa. Depois vou embora. Por que você não dormiu, naquela noite?
- Eu vou chamar a polícia.
 O porteiro olhou assustado. Mostrei  minha roupa, os bolsos vazios:
- Cara, nunca andei armado. Quem bateu em mim foi você, confere? Eu só preciso saber disso. É uma pergunta simples. Me responde agora, e nunca mais precisa falar comigo.
A correntinha continuava no peito.  Tinha perdido cabelo e feito umas mechas no que sobrou, troço ridículo. Mas no geral, igualzinho a dois anos atrás.
- Mas o que vossssê quer sssaber, afinal? - quase cuspiu em cima de mim.
Noite cor de asfalto. Mas na luz do prédio eu podia ver a correntinha brilhando. Os pelos no peito. Que nojo daquele escroto.
- Por que você não dormiu? Eu te dei um monte de remédio, porra.
- E não tem vergonha de contar?
- Por favor, pára com isso. Olha pra mim. Eu tô fudido. Nem queira saber o que passei na cadeia... Você não podia pelo menos me responder essa pergunta? Por que não dormiu? Por que?
Minha voz tremia, e de repente comecei a chorar. Ele me olhou um tempão, e depois disse a única coisa que eu não esperava:
- Quer subir pro meu apartamento?

Nem dentro do apartamento parei de chorar. Me dobrava em dois. Soluçava, Marcinho. O cara me olhava. E a noite entrava pela janela. Soberana reinando. Ele não acendeu a luz... Ficamos no escuro.
Foi uma aparição que se colocou do meu lado:
- Não fica assssim, você ainda é tão novo...
Ele estava com pena de mim. Dizem que pena é humilhante. Eu aceitei sem problemas.
- Isso vai passssar. É só uma fase ruim. Quem nunca fez uma besteira na vida?
- Você não sabe o que fizeram comigo... você não sabe...
- Você presssisa se tratar. Fazer terapia.
Eu chorava sem parar. A voz reconfortante continuava no meu ouvido. Era outro homem que estava do meu lado, não o bofe que tinha me agredido com o vaso. Um homem vivido. Experiente.  Me disse que também já tinha passado por coisas difíceis (que foi, bateu o Corolla?) A gente não pode viver no passado. Ficasse calmo. Ia me  trazer uma bebida.
- Eu queria estar moooooorto! Eu acho que eu já morri!
Eu tava uivando, Marcinho. Nenhuma dignidade. As lágrimas e o ranho corriam pela minha cara. Ele me abraçou. Era bom estar encostando meu rosto molhado nos pelos do seu peito. No escuro mesmo  me trouxe a bebida, um uísque. Tomei a dose de um gole só e ele me trouxe outra. E outra.
Nunca fui forte pra bebida. Ele continuou falando, falando um monte de merda, e eu me aquietei. Tudo bem. Tudo bem. Ele devia ter razão. Ia passar. Eu ia ficar melhor. Ver um psicólogo, é isso. Ele não acendia a luz. Aquele homem tinha me salvado a vida.
- Preciso vomitar.
No banheiro ele me ajudou, segurou minha cabeça, depois limpou meu rosto com uma toalha molhada.
- Você não tem condissssões de sair assim.
- Mas...
- Pode ficar na minha cama.
- Você é muito bom - eu voltei a chorar. - Eu não mereço...
- Psiu. Vou botar você na cama.
Me levou pro mesmo quarto, e foi então que a noite caiu em cima de mim.

Às vezes fico pensando. Será que ele não guardou um daqueles comprimidos, esperando que eu aparecesse outra vez?  Não sei. Marcinho. Só sei que desmaiei, desabei. E teria dormido a noite inteira se ele não tivesse me acordado de madrugada.
Estava escuro. Eu estava nu. Ele tinha jogado todo seu peso em cima de mim, e resfolegava, gemia. Tentei resistir, ele era mais forte. Não havia como. Eu sei que você não vai acreditar, amigo; mas ele não era mais aquele bofe ridículo que tinha me abordado no Trianon. Era outra pessoa. Forte. Poderoso. Cruel. O quarto estava todo escuro, eu não via uma só luz, da rua ou de onde fosse. Ele fez tudo que queria comigo. Tentei gritar, me tapou a boca. Acabei me entregando, mais uma vez, por que não? já tinham sido tantas na cadeia.
No final, a humilhação suprema: gozei.
Depois caí de novo naquele sono pesado, de concreto armado, de pedra, de túmulo... Ainda me admiro de ter acordado. Eu estava morto, Marcinho. Eu juro que estava morto. Queria estar morto.
Pelo menos, quando acordei, ele não estava  mais ali.
Trancou os armários, prevenido. Em cima da mesa, grana e um bilhete: "Dê a chave pro zelador." Só isso. “Dê a chave pro zelador”.
Voltei pra rua.
Não tenho mais nada pra contar, Marcinho. Foi isso. Só isso. E essa história vai ficar dentro da noite.
Promete?
(...)
Promete, Marcinho?
(...).
Eu confio em você.

Boa noite, Cinderela.
Boa noite.
Noite.

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