Maria Lídia, uma inocente dona-de-casa, nunca imaginou que seria vítima de um terrível crime passional...
HARPIA

Meritíssimo senhor juiz, senhores jurados. Antes de mais nada, gostaria de agradecer a permissão para defender minha causa nesse julgamento. Nem todos os réus, eu sei, têm essa chance! Seja qual for a pena a mim aplicada, levarei para o fundo de minha cela - quiçá para o resto dos meus dias - a gratidão por essa oportunidade.
Sim, claro, senhor juiz. Prometo me ater aos fatos, como foi combinado com meu advogado. Aliás, gostaria de deixar claro que não alimento qualquer desconfiança na capacidade profissional do Dr. Estêvão. Apenas achei - achamos, na verdade - que alguns fatos relativos ao crime só seriam realmente compreendidos com a exposição do próprio criminoso. Ou seja, eu.
Matei sim, senhores, confesso. Eu poderia negar a autoria do crime. Poderia alegar que minha esposa foi assassinada por um criminoso, um assaltante qualquer que invadiu nossa casa. Afinal, ela sempre teve mania de deixar as portas destrancadas. O rolo de massa que foi usado como arma do crime sumiu, e quando foi recuperado num lixão, já não servia como prova.
Sempre fui considerado um marido exemplar. Ninguém nunca desconfiaria de mim se não tivesse me entregue à polícia, devorado pelo remorso. Matei a mãe dos meus filhos e nunca poderei me perdoar. Mas espero que minha pronta admissão do crime e meu arrependimento sejam considerados, na hora de impor a pena.
Além disso, existem fatos de nossa vida conjugal - minha e de Maria Lídia - que deveriam ser considerados, antes que esse júri dê sua sentença. Fatos atenuantes. Fatos verdadeiros. Fatos que minha própria esposa confirmaria, se estivesse viva!
E, é claro, se não estivesse na hidroginástica... Hoje não é terça-feira? Terça-feira ela tinha aula, pobrezinha....

Meu marido me acha burra, mas pensa que eu ligo? Tô cagando e andando.
Ele me olha com uma cara! Parece que eu tô fedendo. Mas fedendo muito, sabe que nem carniça? ou bosta? Rá, rá! Pensa que eu ligo? Não tô nem aí! Você acha que eu fico em casa me lamentando? De jeito nenhum! Saio, passeio, me divirto com as minhas amigas. Venho aqui para a hidroginástica. Ele que fique lá... se embolorando com seus livros.

Casei muito jovem, meus senhores. Mal tinha vinte e três anos. Nessa época as pessoas se casavam jovens, e sabem por quê? A paixão, senhores. Casávamos movidos pelo fogo da paixão. Os mais jovens não vão acreditar, mas estou vendo um senhor, ali na terceira fila, que entende do que estou falando. Costumes medievais, senhores jurados. Usanças bárbaras.
As moças de boa família tinham que casar virgens. Assim aconteceu com Maria Lídia, minha noiva durante quatro anos. Tivemos que esperar eu conseguir uma cadeira de professor-adjunto de Literatura Portuguesa, para casarmos.
O noivado foi vigiadíssimo. Namorávamos na sala, sob a vigilância da senhora minha sogra, já falecida. Curti quatro anos de espera. Quatro anos, meus senhores! O máximo que ganhava era um beijo um pouco mais ardoroso no portão, na hora da despedida. Isso até o momento em que a falecida minha sogra tossia - ela tinha um catarro pavoroso - e gritava:
- Maria Lídia! Passa já pra dentro, senão apanha friagem!
Aliás, minha sogra... Eu deveria ter prestado atenção, senhores jurados, à mãe da minha noiva. Dona Eponina era gorda, tinha uma papada enorme, rugas até o sovaco. E era uma megera. Meu sogro mal podia levantar a voz em sua presença. Aconselho aos jurados solteiros, aliás, e que estejam em vias de se comprometer, que observem com cuidado sua futura sogra. Existe uma coisa chamada hereditariedade...
Sim, senhor juiz. Os fatos, somente os fatos. Como eu dizia, casamos muito jovens - eu com vinte e três anos, ela com dezenove. Maria Lídia era uma moça lindíssima. É pena eu não ter um retrato dela aqui comigo... Uma beleza. Foi Miss Suéter, sabiam? Cabelos castanhos, olhos pretos lânguidos, um tantinho de sardas... Usava sombra preta em volta dos olhos, aqueles olhos de um negro profundo, emoldurados por cílios enormes... E a cinturinha então? Cabia na minha mão. Pernas maravilhosas, senhores. Desculpem mencionar o fato nesse tribunal, mas é preciso dizer: minha esposa, quando nova, tinha pernas fantásticas! E eu ali, ao lado daquela beldade, aquela deusa, sem poder encostar um dedo! Os senhores entendem agora porque a gente casava cedo?

É um palerma, um mosca-morta, um babaca de argola! Sempre foi. Desde a época do namoro. Você acredita que a gente noivou quatro anos e o pamonha nunca encostou um dedo em mim? Nunca! E olha que não faltou oportunidade. Claro, o namoro era da moda antiga, né. A gente namorava na sala, com minha mãe vigiando, pra eu não ficar mal-falada, morou? que na época usava essas coisas, da moça ficar mal-falada. Hoje em dia não, é uma beleza. A moça sai, dá mais que xuxu na serra, e ninguém acha ruim...
Mas mamãe, coitada, era compreensiva. Saía da sala, ia tomar água, demorava pra voltar. Pois você acredita que o paspalho ficava lá, parado, sem tomar a iniciativa? Um dia perdi a paciência e não tive dúvida, enfiei a mão dele nos lugar competente, rá, rá! Nossa! O homem ficou branco! Olhou pra mim todo assustado e gaguejou: "Que é isso, Maria Lídia?"
Hoje isso acabou, né? Eu entendo essas coisas, sou uma mulher moderna, rá, rá! Pensa o quê? Olha o comprimento da minha saia! E já sou avó, viu? Avó moderna, de minissaia! Rá, rá!

Enfim, casamos. Como já disse, durante meu noivado nunca tive nenhuma intimidade com Maria Lídia - nem física, nem intelectual. A física, como os senhores podem imaginar, resolvemos logo. Em Poços de Caldas, para ser mais exato.
Já a intelectual...
Conforme os meses foram passando, constatei que minha noiva - coitadinha - não era exatamente uma sumidade. É triste dizer isso, senhores, porque afinal das contas ela está morta. Mas minha falecida esposa não teve educação bem cuidada. Estudou num colégio de freiras medíocre, onde aprendeu canto orfeônico, tricô e umas três frases em francês. Nunca pegava um livro, um jornal. Só lia O Cruzeiro para se inteirar das fofocas sobre as atrizes da época.
Quando eu tentava lhe falar do meu trabalho - por exemplo, da minha tese de mestrado - notava que seu olhar ficava vazio. Várias vezes me interrompia perguntando insignificâncias - por exemplo, se gostava da cor do seu vestido, ou o que achava da Mara Rúbia. Bocejava. Em outras palavras, meus senhores, fazia tudo que é humanamente possível a uma mulher para demonstrar tédio e aborrecimento.
Não pensem que desisti fácil. Já que o assunto da minha tese - a Literatura Medieval Portuguesa em Herculano - a aborrecia, procurei interessá-la em outros luminares das letras lusitanas. Presenteei-a várias vezes - em aniversários, por exemplo - com livros de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com esses autores concordará que eles estão longe de provocar o tédio... Pois Maria Lídia recebia, agradecia - com visível ar de decepção - e enfiava num canto. Anos depois eu os reencontrava intocados...
Pois bem, não gostava de Literatura Portuguesa. Talvez não gostasse nem de literatura em geral - lamentável, mas fazer o quê? Não pensem que a culpei por isso. As pessoas têm habilidades diversas, não é?
Procurei interessá-la em política internacional - a nacional, por algumas contigências da época, era assunto perigoso. Como não gostava de jornais, assistia com ela os noticiários de TV e procurava comentar os acontecimentos importantes da atualidade. Veja só que coisa, meu bem, o homem chegou à Lua! E essa guerra do Vietnã, hem? que problema! E o que você acha, meu amor, da questão de Israel?
Maria Lídia bocejava e pedia pra ver a novela.

Ih, caiu o sabonete! Vou pegar com cuidado senão os peitos caem, rá, rá! Agora deixa eu me enxugar, que já viu, né? Gente velha pegou friagem está ferrada, vem o reumatismo.
Mas como eu estava dizendo: meu marido é um chato. Você nem tem idéia, meu bem. Logo que casamos, começou com umas histórias pra boi dormir. Que era pra eu ler, pra me informar, não sei mais o quê. Com o tempo percebi que tinha vergonha de mim.
Não, minha flor, não estou exagerando. Você é mocinha, não conhece os homens. O Eduardo dava aquelas reuniões lá pros amigos dele - tudo uns morto de fome, metido a coisa, a intelectual - e tinha tanta vergonha de mim, que me mandava pra cozinha enrolar pastel. Isso mesmo. Aquele pastel que fiz no aniversário da Duda, aqui da hidroginástica. Gostou? Receita de família. Se quiser te dou.
Eu achava até melhor ficar na cozinha. Os amigos dele eram muito chatos, falavam uns troços que eu não entendia, me dava sono.... Eu quando tô com sono é um problema. Pode estar o papa falando comigo, durmo na frente dele. Durmo, ronco e babo. Rá, rá!
A mulherada então, faça-me o favor. Tudo mal-cuidada, descabelada, com aqueles saiões compridos parecendo crente... E meu marido lá no meio, todo feliz. Falando de política, de livro, e de quem fez não sei o quê no departamento de não sei quem. Eles se achavam todos de esquerda, revolucionário, essas bobagens todas. Mas na hora do vamos ver adoravam um título: porque o professor... porque o doutor...
Doutor uma ova! Doutor pra mim é só médico. Um monte desses doutor foi parar no xilindró, naquela época. Ou teve que sair fugido do país feito bandido. Imagina só que vergonha. Bela merda os tal dos título!

Os anos foram passando. Vieram os filhos - Vladimir, o mais velho, e Liliane Aparecida, a caçula. Nem preciso dizer quem escolheu o nome de quem...
Em matéria de gostos e caráter, meus filhos puxaram a mãe. A Liliane sempre teve horror aos estudos. Vivia do cabeleireiro pra discoteca, lembram das discotecas? Acabou engravidando e casando com um marginal qualquer por aí. Claro que o casamento não deu certo, e ela voltou pra casa, onde ficou assistindo novela e reclamando da vida. Estudar? Trabalhar? Nem queria saber.
Hoje se casou de novo, é mãe de três filhos, o marido está rico. Maria Lídia diz - dizia - que eu deveria ficar feliz com ela. Feliz? Meus senhores, outro dia peguei a Liliane Aparecida - sangue do meu sangue, carne da minha carne - falando "pobrema"! "Pobrema"!
Foi uma facada no coração, senhores. Até hoje a sinto sangrar.
Meu filho, vocês já viram, veio testemunhar. Não pensem que tenho nada contra sua opção sexual. Sou uma pessoa aberta, sem preconceitos. O que me dói não é o Vladimir ser "promoter" de casas noturnas... como se diz hoje em dia? GLS, não é? É um trabalho como outro qualquer. Mas o Vladimir nunca leu um livro na vida, e o último filme que assistiu foi Priscila, a rainha do deserto. Não temos comunicação, é muito difícil conversar com ele.
Deve ser por isso que me chamou de monstro insensível, e caiu no choro aqui no tribunal. Ele era muito apegado à mãe. Não lhe quero mal...
Bem, meus senhores, prosseguindo a história do meu casamento. Não aconteceu numa semana, num mês, nem mesmo num ano. Um belo dia - Liliane Aparecida já tinha casado, e Vladimir saído de casa para morar com um decorador - olhei para o meu lado e vi... uma harpia.
Sim, é isso mesmo. Eu estava casado com um monstro. Minha doce noivinha de olhos negros e cinturinha fina tinha se transformado numa harpia.

Vai fazer plástica? Faz muito bem, menina! Faça logo, enquanto está com tudo em cima, cheia de amor pra dar! Eu, se for fazer plástica, o coitado do médico nem sabe por onde começar. Rá, rá! E isso que eu fui bonita...
Mas hoje em dia... tá uma desgraça, né? Não precisa mentir pra me agradar. Sei que estou um bagulho. Um desastre de fenemê, rá, rá! Peito caído, barriga, ruga até no pé... A única coisa que ainda vale a pena são as pernas. Por isso capricho na minissaia! O resto tá medonho. Mas sabe de uma coisa? Pelo menos não preciso mais fazer regime. Como e bebo à vontade, graças a Deus, apetite é que não me falta. Às vezes até tenho indigestão, mas aí resolvo o asunto com um bom laxante. Passo a noite que nem flor: plantada no vaso!
E depois, se cuidar pra quem? Pra aquele chato do meu marido? Eu sei que ele me acha horrorosa. E daí? Por acaso ele está lindo, com aquela barriga e a careca?

Juro, senhores jurados. Aconteceu de repente. Foi um choque pra mim. Minha noiva encantadora, minha mulher bonita, mesmo que inculta, tinha se transformado numa harpia. Ou seja - se algum dos senhores não teve a oportunidade de fazer estudos clássicos, que aliás eu recomendo, são a base da cultura - um monstro mitológico com cabeça de mulher e corpo de abutre.
Com a idade, Maria Lídia enfeiou muito; pior ainda, parecia sentir um prazer mórbido em se avacalhar. Começou a tingir o cabelo numas cores horríveis, vermelho, loiro cor de xixi, uma coisa medonha. Foi ficando seco, parecia palha, todo arrepiado. E as raízes brancas apareciam. Será que as mulheres acham que os homens não reparam nisso?
Depois da menopausa, então, engordou feito um porco. Principalmente na barriga. Maria Lídia nunca foi muito alta, aí ficou parecendo um barrilzinho. E não se mancava. Seu gosto foi piorando, se vestia de forma cada vez mais vulgar - aliás condizente com seu comportamento, porque depois de velha pegou a mania de dizer tudo que lhe vinha à cabeça. Inclusive palavrões. Vão me achar antiquado, mas não acho bonito uma senhora daquela idade, já avó, dizendo obscenidades a torto e direito.
Em matéria de roupa, sua pior mania era a minissaia. Eu morria de vergonha. Nas raras vezes em que saíamos juntos pedia, implorava para que colocasse um vestido mais discreto. Ela não cedia. Dizia que tinha pernas bonitas e queria mostrá-las. Claro que nunca cheguei a mencionar as varizes.... Mas ela tinha um monte.
Vivia na aula de hidroginástica, o que aliás era um alívio, porque enquanto estava lá eu pelo menos não ouvia sua voz de gralha cacarejante. Os senhores já notaram que determinadas mulheres, ao envelhecerem, desenvolvem uma voz... galinácea? Um horror! E falava sem parar, ficou mais tagarela com os anos. Só bobagem: porque a novela, porque a amiga que fez plástica, porque o emprego do Vladimir... Como se desse pra chamar aquilo de emprego... Sim, claro, senhor juiz, serei mais objetivo.
A senhora aí, de tailleur verde, está me olhando com ar chocado... Mas veja bem, minha senhora, nunca fui infiel à minha mulher. Nunca! Sempre a respeitei. Outro qualquer a teria trocado por uma mocinha com a metade da sua idade. Mas eu não. Não sou desse tipo.
Não vou negar que, pelo menos uma vez, me senti atraído por outra mulher. Tenho que confessar... É uma moça que eu estava orientando, mais como um favor, porque como os senhores sabem já estou aposentado. Inteligentíssima. Especialista em Fernando Pessoa, aliás o seu doutorado é sobre ele. Não se trata de nenhuma mocinha, já foi casada, tem um filho... Convivemos bastante, e de fato a Renata - meu Deus, não pretendia citar seu nome! - me atraiu. Ela é linda, suave, feminina. Tem um porte de sílfide, delicada, esbelta...
Sempre fui respeitoso e até paternal com ela. Sei que na minha posição - primeiro como professor, segundo como homem casado - não posso me permitir certas coisas. Nosso relacionamento permaneceu inteiramente platônico. Eu adorava Renata, mas à distância. Conversávamos horas sobre poesia, e as sutis nuances entre os diversos heterônimos de Pessoa... Uma amizade, uma afinidade intelectual, que minha mulher nunca poderia entender.
Apesar de nunca termos tido qualquer relacionamento impróprio, Renata foi, de certa forma, o pivô do assassinato. Mas isso, é claro, já está na minha confissão. Os senhores devem ter lido.

Ele tem tanta vergonha de mim, que nem me convida mais pra sair. Azar! Eu saio com a moçada aqui da hidro. A gente dá risada, toma uns chopes, se diverte. Bem melhor do que ficar trancado naquela biblioteca com aquela porcaria de livros. Nunca entendi que graça ele vê nisso. Livro é um troço tão chato...
Ultimamente arranjou uma franguinha que vai lá em casa. Diz que está fazendo doutorado. Dá pra ver na cara dele que o bobão está apaixonado.
Não, isso não. Duvido que estejam de caso. Ele já está numa fase que nem Viagra dá jeito, rá, rá! Verdade. Faz anos que o bimbo não levanta. E depois outra, não tem coragem. Sempre foi muito covarde. Sangue de barata.
Já já eu acabo com a graça dele. Também não sei o que ele vê na tal da moça, toda lambida, sem bunda, nem peito... E aliás moça é gentileza; tem no mínimo uns trinta e cinco, se já não tiver batido nos quarenta.

É verdade, senhor jurado. Exatamente como meu advogado disse. Com a idade, e muitas horas de estudo, sempre sentado, fui desenvolvendo esse pequeno problema de saúde. Nada grave, mas bastante incômodo. Muito comum em profissões sedentárias.
A essa altura, aliás, eu estava mais confinado do que nunca à minha biblioteca e aos meus estudos. Aceitei outros orientandos. Escrevi um livro. Trabalhava mais do que quando estava na ativa. Tudo para ficar longe de Maria Lídia, que me inspirava verdadeiro horror. Só de ouvir aquela risada dela - tinha uma risada metálica, estridente, rá, rá! - sentia arrepios.
Fui ficando cercado, confinado àquele pequeno espaço da minha casa. Maria Lídia ocupava todos os demais cômodos. Assistia TV até altas horas. Sempre os piores programas, de novela mexicana a Raul Gil. Ria tão alto com essas bobagens que perturbava meu sono. Por isso adquiri o hábito de só ir dormir depois que ela se recolhia, bem tarde. Saía da biblioteca e ia para a cama bem devagarzinho, pé ante pé, para não fazer barulho.
Também comecei a sentir uma certa animosidade dela em relação a Renata - as mulheres são muito sensíveis com essas coisas. Uma vez Maria Lídia derramou café em cima da coitada. Só se referia a ela - pelas costas, claro - como sirigaita, lambisgóia ou coisas piores, que não tenho coragem de repetir na frente deste seleto corpo de jurados.
Acabei me arranjando para só falar com minha orientanda pelo telefone, e encontrá-la apenas nas dependências da faculdade. Assim não irritava Maria Lídia.
Mas todas essas precauções foram inúteis, e hoje em dia estou aqui, sendo julgado pelo assassinato de minha esposa. É um pesadelo, mal posso acreditar. Agi movido por uma emoção que me cegou. Todos que me conhecem poderão testemunhar que nunca, em toda minha vida, me envolvi num só episódio violento. O que aconteceu foi uma fatalidade.
Na manhã do crime, fui ao médico para tratar daquele meu problema de saúde. Enquanto isso, Maria Lídia estava na aula de hidroginástica. Infelizmente me atrasei no trânsito e cheguei depois dela.
Entrei na cozinha e lá estava minha mulher. Tinha acabado de enrolar a massa do pastel e atendia ao telefone. Pelo tom de voz, entendi imediatamente que falava com Renata:
- Não, meu bem. Ele não está, viu? Não sei quando volta. Hoje tinha hora no proctologista pra examinar as hemorróida. Do jeito que a coisa tá, vai demorar bastante. Rá, rá!

Meritíssimo juiz, senhores jurados. Não tenho mais nada a dizer. Com a palavra, o senhor promotor.

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