Meia-noite, hora das bruxas.
Ou da faxina, no meu caso
Tenho recusado todos convites para sair: "Ana Lúcia, descobrimos
uma gafieira ótima, quer ir dançar com a gente? " "Não".
"Ana Lúcia, vamos pra balada em Moema? " "Não."
"Sábado meu irmão vai fazer aniversário, quer
vir? ""Não, muito obrigada. Tenho de terminar a faxina."
- Mas ainda não acabou?
Pensam que é fácil limpar uma casa desse tamanho. Mamãe
morou aqui até morrer. Enquanto viveu, conservou tudo limpo. Mas
depois da sua morte alugamos a casa, e o inquilino era um tremendo porco.
Anos depois, despejada do meu apartamento, herdei uma casa enorme, suja
e cheia de fantasmas. Mas não tem importância. Eu vou limpar.
No começo pensei em contratar uma faxineira. Mas como não
conheço ninguém de confiança, resolvi eu mesma fazer
a limpeza. Faxina a sério, como mamãe me ensinou. Nada dessas
passadinhas de cuspe que as empregadas dão hoje em dia.
Antes de começar a faxina, todo dia eu chegava do serviço,
comia um troço qualquer e ficava assistindo televisão até
tarde. Quando as emissoras começavam a repetir a programação,
ia me enfiar na cama.
Tomava banho, botava o pijama, apagava a luz e me deitava. E quem disse
que eu dormia. Ficava rolando na cama, hipnotizada, pensando sempre no
mesmo assunto. Sempre. Sempre.
Acendia a luz, pegava um livro, tentava me distrair da minha idéia
fixa. Evitava romances. Comecei a ler biografias, História, essas
coisas. Mas nem isso adiantou. Lá pelas tantas páginas,
o rei Fulano casava com a princesa Sicrana, aliança política
muito importante na época, porque...
Será que o rei Fulano amava a princesa Sicrana? Com certeza não,
era casamento arranjado. Será que ele tinha amantes? Evidente,
era prática na época. E como essas amantes se sentiam, vendo
o rei Fulano com a tal princesa Sicrana - agora rainha Sicrana, aliás?
Sofriam? Nem davam bola? Que nada, tenho certeza que sofriam. Roíam
beira de penico. Passavam noites aos prantos... Telefonavam pras amigas...
Peraí, naquele tempo não existia telefone.
E se de repente o Rei Fulano tivesse uma crise de consciência,
e resolvesse romper com a amante para ficar com a esposa?
Mais uma noite em claro.
Era uma noite de chuva, me lembro até hoje.
Entramos no cinema feito dois cachorros molhados, rindo e nos sacudindo.
Nos dirigimos à bilheteria compenetradas de nossa obrigação
cultural: ver um drama ucraniano, bielorusso, um troço assim.
- Infelizmente está esgotado.
Nos entreolhamos, aliviadas por termos escapado
aos nossos deveres com a Bielorússia. Mas o que fazer agora? Não
podíamos simplesmente sair - chovia aos potes lá fora, uma
tempestade de verão.
- Mas ainda tem lugar pro outro filme...
Michael Douglas e Glenn Close. Os críticos
desciam o cacete: moralista, machista, manipulador.
- Duas entradas, por favor.
Entramos cochichando, o filme já havia começado.
Na tela, Michael Douglas - um executivo de Nova York - e sua família.
A mulher bonita de uma beleza recatada; a filhinha que parece estrela
de comercial de iogurte; e ele como sempre gostoso pra cacete, com aquele
seu ar de yuppie durão.
Um dia a mulher do Michael Douglas tem que viajar
com a filha, mas ele fica na cidade a negócios. Vai a uma reunião
e conhece a Glenn Close.
Com o tempo aquilo foi me enchendo o saco - noites e mais noites de insônia,
exaustivas, improdutivas. Se até livros de História lembravam
meu drama, vídeos então eram piores. Uma vez inclusive peguei
de novo - aí já foi masoquismo deliberado - o filme da Glenn
Close, e assisti tudo de novo, roendo unha, torcendo pela vilã.
Quinze dias naquela casa e eu estava um caco.
As palavras se repetiam na minha cabeça. Me lembrava uma vez em
que fiz transcrição de entrevista. Serviço tedioso,
infernal. Você volta a fita e ouve centenas de vezes a mesma coisa:
"Eu nunca te prometi nada".
"Ela sempre foi a mulher mais importante da minha vida."
"Claro que gosto de você. Mas de outro jeito."
E a pior de todas, a mais terrível:
"Você fantasiou a nossa relação".
Eu achava que, se lembrasse noite e dia daquelas frases, acabaria me
acostumando com elas. Perderiam seu significado, ficariam ocas, sem importância
- pedaços de uma história acontecida há muito tempo
com outra pessoa.
E de fato, depois de um tempo, as três primeiras frases já
não me pareciam tão ruins. Mas a última continuava
com seu poder destrutivo intacto:
"Você fantasiou a nossa relação".
Era um artefato radiativo. Meia-vida: milhões de anos. Se eu vivesse
cem milhões de anos aquelas malditas palavras continuariam me machucando
- constatava, colocando a última fita de vídeo para rebobinar.
Foi então que decidi começar a faxina.
Na reunião, Glenn Close e Michael Douglas
trocam olhares. Depois vão tomar um café, ou coisa parecida,
e as coisas esquentam. Terminam no apartamento dela. Aliás o apartamento
da mulher parece caverna de bruxa, tem até fumacinha saindo da
porta.
O sexo entre eles é quentíssimo.
(Fiquei com a vaga idéia de que a mulher do Michael Douglas era
daquelas que transam de luz apagada. Ou pior ainda, tentam botar em prática
as dicas do algum manual de tenha-um-orgasmo-saudável).
Glenn Close banca a desencanada, e deixa implícito
que é só um casinho sem conseqúências. E o
pobre Michael Douglas acredita.
Tinha muita coisa para limpar. Já no primeiro levantamento, notei,
consternada, que os armários da cozinha tinham teia de aranha;
o ralo do banheiro nunca fora desentupido; e os lustres pesados de mamãe,
então...
Eu também não deveria ter deixado as cortinas pro inquilino.
Estavam imundas, era evidente que tinham ficado três anos sem lavar.
Deus do Céu, como é que existe gente assim?
Há duas semanas passo minhas madrugadas limpando esse mausoléu.
Já cuidei do ralo do banheiro e do armário da cozinha. Limpei
os tetos. Removi marcas de eletrodomésticos do piso.
Nunca tive a pretensão de resolver o problema em duas ou três
noites. Mas não tem importância, tenho as madrugadas livres.
E enquanto estou bancando a escrava de senzala, pelo menos não
penso em coisas ruins.
Engraçado como o sabão em pó, o Pinho Sol e a cera
têm propriedades terapêuticas. Ou substâncias químicas
que deixam a gente tonta. Sei lá.
Essa vai ser a última noite. Quase tudo já está
limpo na casa. Só faltam as cortinas.
A história das cortinas me entristece. Mamãe adorava elas.
Comprou alguns anos antes de morrer. Pelo menos uma vez a cada seis meses,
tirava-as dos trilhos e as lavava cuidadosamente. São brancas,
as cortinas - ou pelo menos eram, antes desse inquilino porco.
Hoje é a vez das cortinas. Por muitos motivos, deixei por último
as cortinas.
Não me lembro direito o que acontecia no
filme em seguida. Afinal, faz anos que assisti...
Deixa eu ver... Acho que a Glenn Close começa
a telefonar pro Michael Douglas. Isso, telefona pra ele, mas o cara não
está mais a fim. Pra ele foi só uma escapadinha. Ela então
fica muito mal. Chora baldes no seu apartamento-caverna, ouvindo uma ópera.
Minha amiga, que é mais culta, disse que era Madame
Butterfly.
- Quem é a Madame
Butterfly ? - cochichei no ouvido dela.
- Uma japonesa que tomou um pé na bunda
e se matou. Psiu!
Que horror - pensei eu, na época. Que coisa
mais deprê. Também não sei porque essa mulherada fica
correndo atrás de homem casado. Bando de trouxas. Todo mundo sabe
que é furada...
O primeiro passo é trazer uma escada para tirar a cortina dos
trilhos.
É claro que nunca fui apresentada à mulher dele. Vi algumas
vezes, de longe.
Eu sei que parece despeito, mas não me troco por ela. Baixinha.
Dentuça. Claro, deve ter baixinhas dentuças que são
um charme, mas não era o caso da tal...
Helena. Pronto. Já disse o nome. E até o nome era sem-graça.
Não que fosse feia, mas era o tipo de mulher que os homens nunca
olham duas vezes.
Meu Deus, até os trilhos estão pretos de poeira...
No começo eu a olhava com certa complacência. Afinal, só
estava tendo um casinho com o marido dela, né? nada de tirar pedaço.
Mas conforme os meses passavam e eu ia caindo de quatro pela figura,
a Esposa Oficial se tornou uma figura ameaçadora. Quando ria na
mesa ao lado, era como se estivesse rindo de mim. Ela era a enganada,
mas quem se sentia trouxa era eu. Afinal ela dormia todas as noites com
aquele homem lindo. Podia ter todos os defeitos do mundo: sem-graça,
burra, até mau caráter. Mas o homem que eu amava era dela.
Muito bem, já tirei a cortina. Falta ainda o forro, mamãe
sempre fez questão de um bom forro. Depois ponho tudo na máquina
de lavar. É muita coisa, vou ter que fazer a lavagem em dois turnos.
Vai a a madrugada toda. Paciência.
Nunca fiz a menor exigência para ele. Nunca. Mas no fim, não
acredito que ele tenha rompido por amor à Helena.
Ele rompeu porque estava assustado.
Ficou com medo de mim, é isso. Percebeu o quanto gostava dele,
o quanto me apegara, o quanto ele era importante pra mim. Que os melhores
momentos da minha vida eram com ele. Percebeu tudo isso e em vez de ficar
contente, se apavorou. Talvez até tenha tido medo de que eu ligasse
pra mulher dele, como a Glenn Close.
O que minha mãe diria, se soubesse que me apaixonei por um homem
casado? Não quero nem pensar. Mas de uma coisa tenho certeza. Se
me visse aqui nesse momento, lavando as cortinas da sala, esquecia tudo
e ficava feliz.
Com o tempo a Glenn Close vai ficando irada e resolve
jogar merda no ventilador.
Ela faz ameaças, aparece no apartamento
dele, detona o carro do infeliz... Tanto apronta que o Michael é
obrigado a contar tudo à mulher, que fica possessa com ele, claro.
E o dia em que o Michael Douglas e a Mrs. Sem-Graça
chegam em casa e acham o coelho da filha cozinhando na panela? Essa é
a cena mais assustadora do filme. Pobre do bicho. Tão fofinho e
peludinho...
O assassinato do coelho não deixa dúvidas
na platéia: a mulher é realmente má. Se a gente tinha
alguma dúvida, se no começo até ficou com peninha
dela, agora torce contra a megera.
Quanto mais eu tentava me aproximar, mais ele se afastava. Desconfio
que, quando via meu nome no visor do celular, desligava. E a secretária
sempre dizia que ele não estava...
Os encontros foram ficando raros, difíceis. Mas, quando nos víamos,
ele nunca estava menos carinhoso ou com menos tesão. Não.
Nem sequer me deu uma chance de ficar com raiva dele, de achá-lo
um chato ou cafajeste. Nada disso. A cada vez que nos víamos, ele
parecia se esmerar, mostrando o quanto eu ia perder.
Numa dessas vezes, disse que estava cansado de ir a motéis, ou
ao meu "apertamento" da época. Me levou à sua
casa. A mulher estava viajando.
Eu devia ser muito ingênua mesmo, porque esse encontro me deu esperanças.
Como a gente pode ser boba. Mas sempre quis conhecer o lugar onde ele
morava, o travesseiro onde deitava a cabeça pra dormir (mas ele
quis fazer amor no sofá), a coleção de CDs, essas
bobagens.
Depois que a gente transou, fiquei vagando pelo apartamento, nua, enquanto
ele cochilava. Confesso que estava procurando traços da outra:
tentando imaginar como ela era, o que fazia ali...
Em vez disso, o que achei foi uma tremenda bagunça. Vai ver foi
um acaso, as pessoas às vezes se desorganizam em véspera
de viagem. Tudo mal-cuidado, mal-arrumado, mais com cara de acampamento
do que de casa. No banheiro uma multidão de potes e cremes se amontoava
num canto. Fui abrindo: uns inteiros, outros consumidos pelo meio, alguns
destampados... Toalhas molhadas. Bidê empoeirado.
Cozinha: uma montanha de pratos por lavar. Despensa: semivazia, assim
como a geladeira. Ela deve trabalhar muito, pensei. Uma vozinha na minha
cabeça retrucou: mas você também trabalha. E sua casa
não é assim.
Sala: tapete puído em vários lugares. Livros, papel, caneta,
capas de vídeo espalhadas por um dos sofás. No outro, ele,
ferrado no sono.
Fui até a janela, apalpei as cortinas. Estavam sujas. Até
ali eu só tinha visto bagunça. Mas aquelas cortinas eram
um caso diferente: estavam sujas.
No clímax do filme, a Glenn Close invade
a casa do Michael Douglas. Quando a mulher dele olha no espelho, lá
está a bruxa, com ar de louca e uma faca na mão. Cara, que
susto! até eu pulei da poltrona.
Segue-se uma luta e aí o Michael a mata
dentro de uma banheira cheia de espuma. Eletrocutada, acho... Não,
nada disso, esquece, apaga! É a Mrs. Sem-Graça que liqüida
com a bruxa. Dá-lhe um tiro nas idéias para salvar a família.
Bem-feito.
E aí eles vivem felizes para sempre.
A segunda leva das cortinas de mamãe já está na
máquina. Depois vou pendurá-las lá fora. A noite
está quase quente, sopra apenas um ventinho fresco. Ideal para
secar roupas e varrer a poeira das almas.
Hoje é a última noite de faxina.
Ele disse para não procurá-lo mais. Disse que não
queria botar o casamento em perigo. Disse que se arrependia da nossa
aventura ; que fora uma coisa má, errada.
Ele me disse que amava a esposa.
Tudo isso está muito bem e muito certo. Ele amava a esposa, eu
fantasiei a relação. Pois bem. Pra certas coisas não
há remédio, não há faxina que dê jeito.
Volto a dormir à noite - essa casa já está limpa.
Tão limpa como na época da minha mãe. Mas tem uma
coisa. Se qualquer dia por um acaso, uma loucura, dessas coisas que acontecem
na vida, ele aparecer por aqui - verá que não moro na caverna
da bruxa. Que minhas cortinas são limpas; mais limpas, até,
que as da mulher dele.
Ah, e outra coisa: não tenho nada contra coelhos.
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