Tudo
começou quando fui fazer uma matéria para o Caderno de
Variedades. Página dois. Três colunas, sem muito destaque.
"Júlio
Fontenelle volta a São Paulo para dançar 'Giselle', no próximo
dia 3, segunda-feira. Aos 28 anos, esse gaúcho já recusou
muitos convites para trabalhar no exterior. É uma estrela em ascensão
no balé nacional. Trabalhando na companhia carioca Dança
no Escuro, Júlio contribuiu decisivamente para que o grupo ganhasse
um patrocínio do Ministério da Cultura, no ano passado.
Comenta-se que o cachê que ganhou para dançar 'Giselle' em
São Paulo, foi quase o mesmo da estrela Mariana Gregório".
-- Que cá
entre nós - disse Júlio, espreguiçando-se lânguidamente
no sofá -- não é grande coisa. Uma sacanagem o que
estão fazendo com a Mariana...
O fotógrafo espocou o último flash, e guardou o equipamento.
-- Tenho outra foto - anunciou. E saiu sem se despedir, batendo a porta.
Ficamos sozinhos na suíte. Júlio riu.
-- Meio bravo, o seu amigo, hein? - Os olhos brilhavam de malícia.
Não tinha um rosto convencionalmente bonito: o nariz era grande
demais, para começar. ("Minha mãe é uma espanhola,
daquelas bem bravas. Daí esse narigão. O Fontenelle é
do meu pai", explicou, no começo da entrevista.)
Mas que charme. Que sorriso.
-- O cara é o rei do mau humor -- expliquei.
-- Aliás - perguntou Júlio como vai aquela senhora? Aquela,
que sempre me entrevista pelo seu jornal? Leda Bamberg, não é
isso?
-- Heda - corrigi, sombriamente - Está em férias. - Heda
estava, na verdade, encostada. Só não a demitiam para não
pagar indenização. Quando conseguia uma pauta, suas matérias
iam parar no lixo. ("Ela está ficando gagá. Isso não
vende jornal, é um saco!", reclamavam os editores).
Júlio tomou mais um gole de chá.
-- Ela é uma grande profissional. Entende tudo de balé.
- declarou, balançando a cabeça.
Abaixei a cabeça humildemente: perdão por existir! Fui a
três balés na minha vida, em dois dormi. O editor me pegou
a laço.
"Vai você, Teresa, mas pelo amor de Deus, não me escreve
um daqueles tijolaços da Heda, hem? Faz uma coisa bem leve. Puxa
para um lado pop, parece que o cara é bonitão, né?"
"Ele é um gato", suspirou a menina de Roteiro, do outro
lado da mesa. "Deve ser bicha", rosnou o editor. "Quero
essa matéria pronta às quatro da tarde, certo?"
"Júlio
- que se recusa a comentar salários - recentemente aceitou um convite
para uma temporada no Teatro Colón, na Argentina. Viaja daqui a
um mês. Essa não é a primeira vez que Júlio
vai à Argentina; ele morou dois anos em Buenos Aires, no início
da sua carreira. Depois de dançar 'Giselle', pretende tirar alguns
dias de férias em São Paulo. 'Estive aqui só duas
vezes, mas acho a cidade fascinante', diz."
Não sei como
aconteceu. Até hoje, tanto tempo depois, não sei contar
essa história. Eu estava ali ouvindo o cara falar, quando de repente
parei de escrever. Fiquei com o lápis na mão, olhando um
ponto fixo atrás dele. Júlio percebeu e ficou olhando para
mim. Antes que pudesse pensar, as palavras já tinham saído
da minha boca:
-- Tem alguém atrás de você - eu disse.
Assim que falei, caí em mim. Meu Deus, e agora? O cara vai pensar
que eu sou maluca. Em vez disso, Júlio olhou para mim, deu um sorriso
triste e disse:
-- É. Eu sei que tem.
"Em São
Paulo, os 'points' preferidos de Júlio são o Ibirapuera,
o Masp, e a banca de coco verde na esquina da Dr. Arnaldo com a Alfonso
Bovero. Para fazer compras, ele prefere os shoppings. 'Mais sossegado',
diz o bailarino...."
Cheguei à
redação branca, com as pernas tremendo.
Claro, não era a primeira vez que me acontecia. Quando eu era menina,
uma tia-avó às vezes me olhava e dizia:
-- Valdelice, essa menina é médium.
Minha mãe ficava pra morrer, coitada. Como se já não
bastassem minhas outras esquisitices: jogar futebol na rua com os moleques,
trazer cachorro doente da rua... Ainda por cima, médium!
-- Imagina, titia - e dava um daqueles seus sorrisos amarelos, pobre mamãe.
Eu ficava olhando para a velha (me lembro que ela tinha uma verruga enorme,
bem na asa do nariz), entre amedrontada e furiosa, pensando: como ela
descobriu? Como pode saber?
A vizinha de trás morreu de meningite, e nós fomos todos
ao enterro, porque mamãe não tinha com quem me deixar. Não
havia nada de estranho no cemitério, era só um lugar silencioso,
cheio de estátuas de anjo com asas enormes.... Mas, quando fomos
embora, senti que alguém saíra comigo. Alguém que
eu não podia ver, mas que estava muito perto. Alguém que
acertava seu passo com o meu... Me voltei bruscamente:
-- Que foi, menina? - perguntou minha mãe.
-- Nada. Nada. - A presença se evaporou, e eu respirei mais livre.
Mesmo assim, ao chegar em casa, lancei um último olhar ressabiado
para a rua.
Fiquei longe do cemitério. Mesmo assim, aconteceu outras vezes.
Não via coisas, não, Deus me livre. Mas às vezes
sentia uma proximidade invisível, muito forte. Me espantava que
os outros também não percebessem. Olhava em torno, angustiada:
as pessoas continuavam conversando, alheias àquela presença.
Uma ou duas vezes, é verdade, me falaram em mortos recentes:
-- Coitado do Alfredo. Foi tão de repente. Sentado aí, na
cadeira em que sua menina está.
Tomei horror da morte, dos falecidos, do além-túmulo. Não
deixava nem que falassem do assunto. Levantava e saía batendo portas,
tapando os ouvidos. A família, alertada, passou a respeitar minha
esquisitice. Ninguém gosta mesmo de falar em morte.
Uma amiga do colégio me contou que era espírita. Ia ao Centro
todas as semanas com a família, ouvir as vozes do Além que
traziam mensagens de paz. Passei a fugir dela como da peste. Mudava de
calçada para não encontrá-la.
-- A Adriana é uma chata.
Mas no dia em que minha tia-avó - aquela que dizia que eu era médium
- partiu desta pra melhor, não tive escapatória. Ao enterro
e velório, ainda vá que não fosse. Missa de sétimo
dia, já era falta de coração.
-- Você tenha a santa paciência, minha filha. A tia Angelina
me ajudou a vida toda. Na missa você não pode faltar. O que
é que tem demais, uma missa?
A essa altura, por reação, eu me tornara atéia. Feroz:
odiava a religião, Deus, as Igrejas, o pacote inteiro. Odiava principalmente
que me falassem em vida depois da morte. "Como se não bastasse
essa daqui, depois ainda tem outra?", escarnecia.
Morreu morreu, pronto. Acabou. Vai pra debaixo da terra. Ouvi não
sei onde a frase do "ópio do povo" e adorei, vivia repetindo.
Resolvi que era comunista.
-- Tudo bem - interveio meu pai --, você pode ter suas idéias,
mas faltar na missa da tia Angelina já é desrespeito. O
seu Nivaldo da farmácia também é comunista e foi
ao batizado do neto.
Não tive remédio senão ir. Passei o tempo todo sentada
na última fila, suando frio, tentando não olhar o banco
vazio à minha direita.
Ali sentada em seu vestidinho roxo estampado, tia Angelina me olhava com
seus olhos de peixe. Não porque estivesse morta, não: já
em vida tinha aquele olhar parado.
Foi a gota d'água.
Sentir gente que não existia já era muito ruim; ver, era
coisa de louca. Eu tinha dezessete anos e não queria ir parar no
hospício. No dia seguinte, peguei uma mala, enfiei nela todas as
minhas roupas e comuniquei que ia embora. Queria fazer o cursinho na capital.
Meu pai não entendeu nada:
-- Ano que vem você vai. Pra que essa pressa toda?
Inventei um monte de coisas: que era necessário, que meu colégio
era uma porcaria, que tinha estudar mais, etc, etc. Lá por dentro,
tinha resolvido que a culpa era da cidade. Um buraco de vinte mil pessoas,
em que você dava a volta em dez minutos. Lugar antiquado, atrasado,
retrógrado... Numa palavra: caipira. Não era de admirar
que fosse habitada por fantasmas. Mortos e vivos.
Meus pais acabaram consentindo na mudança, e eu respirei de alívio
quando peguei o ônibus. Na cidade grande, fiquei por muito tempo
longe das "presenças". As aparições sumiram,
como se de fato a mudança de ambiente resolvesse o problema. Entrei
na faculdade, arrumei o primeiro emprego, o primeiro namorado. As coisas
foram melhorando.
Anos depois, quando lembrava porque saíra de casa, sentia até
vergonha. Que baboseira! Enfim, excesso de imaginação. Não
podia me livrar das lembranças, mas as atenuava: sensibilidade
muito forte, coisa de adolescente. Evitava pensar na missa da Tia Angelina.
O tempo vai passando. Você deixa o passado para trás. E reza
para que ele esteja, mesmo, morto e enterrado.
De vez em quando
ainda acontecia. Claro, não confessava nem para mim mesma. Como
um epiléptico que não se lembra de suas ausências,
das crises que o jogam babando no chão. Foi a alternativa que encontrei:
esquecer aqueles encontros assim que aconteciam. Transformá-los
em lacunas na memória, que eu nunca poderia preencher. Voltava
para casa, acendia a luz, ligava a televisão. Ia fazer minha comida,
ouvindo o barulhinho reconfortante dos comerciais. Na hora de dormir,
se houvesse alguma dificuldade, dois comprimidos resolveriam. Só
dois -- não queria me habituar. Só para os casos extraordinários.
Acontecia ocasionalmente. Era o estresse, entende. As pressões
do dia-a-dia. Mas estava sob controle. Não era nada grave.
Até aquele dia.
De volta à
redação, liguei o computador e comecei a martelar as teclas
feito um robô.
Sentir aquele homem, atrás de Júlio, já tinha sido
bem ruim. Muito ruim. Nunca "presença" nenhuma fora tão
forte (talvez só a velha na missa). Não chegara a vê-lo,
mas sabia, por exemplo, que era um homem.
Bem atrás do bailarino.
Mas o pior fora aquela frase: "Eu sei". Sabe o quê? pensei,
com os dedos correndo pelo teclado. Ele sabe que alguém está
espiando por atrás do seu ombro? Deve ser tão maluco quanto
eu. Talvez nós dois devêssemos procurar tratamento. Juntos.
Nunca falara do assunto com ninguém. Nunca: nem com amigo, nem
com namorado. Nem mesmo naqueles momentos em que você se abandona
por inteiro. Mordia os lábios, às vezes, para não
começar: "Sabe, quando eu era pequena, me aconteciam umas
coisas esquisitas..."
E, de repente um desconhecido adivinhava as minhas alucinações.
Acabei a matéria, tirei uma print e fui entregar ao editor:
-- Estou me sentindo mal - disse. Vou para casa, se você não
se importa.
Nos próximos
dias, evitei pensar no assunto. Ou melhor: tentei evitar. Mas as palavras
de Júlio martelavam na minha cabeça.
"É, eu sei que tem".
Talvez eu não fosse tão louca, afinal. Tentei me abrir com
minha melhor amiga:
-- Lena, você acredita em vida depois da morte?
-- Claro que sim - respondeu ela, engolindo a última batatinha
frita do prato. E começou a falar do seu sistema pessoal de crenças;
só parou às duas da manhã, quando saímos do
bar.
Três semanas depois da entrevista eu estava na redação,
tomando um cafezinho, quando me chamaram:
-- Telefone pra você! - Fui até o mesão e peguei o
aparelho:
-- Teresa Mascarenhas?
-- Sou eu.
-- Aqui é Júlio. Júlio Fontenelle. Aquele da "Giselle",
lembra?
-- Claro - disse eu, com voz opaca.
-- Tudo bem com você?
-- Tudo.
-- Estou ligando porque a assessoria de imprensa me mandou os clippings
agora. Adorei a sua matéria.
Naquele momento, soube que havia algo errado.
-- Que bom.
-- Ficou um texto bem leve, bem gostoso.
-- Só falta flutuar - disse eu.
Júlio começou a rir:
-- Flutuar, essa é ótima. Você tem senso de humor.
Então, Teresa. Eu liguei porque amanhã à noite vou
estar em São Paulo. Um amigo meu está estreando um balé
aí. "Porto Seguro", você já ouviu falar?
-- Não. Quer dizer, ahn, sim. Acho que vai sair uma notinha.
-- Ele me convidou para a estréia e eu não posso faltar,
é um amigo de anos. Estive pensando: já que você escreve
sobre balé, não seria interessante ver a estréia?
Esse meu amigo, o Israel, ele é tão talentoso.
Deu o horário, e endereço do teatro.
-- Não vou poder - disse eu, defensivamente. - Se já saiu
essa notinha na estréia, acho difícil publicarmos mais do
que isso. (Em último caso, eu até arranjaria uma matéria
sobre o espetáculo. Desde, é claro, que ele me deixasse
em paz pelo resto da vida.)
-- Não, meu bem - disse ele, com uma risadinha - Você não
está entendendo. Não quero que você escreva sobre
o Israel. Uma notinha no seu jornal já está ótimo
- é o primeiro espetáculo solo dele. Mas não é
por isso que te convidei. É que pensei que a gente podia sair depois
do espetáculo, trocar umas idéias... O que você acha?
O tom era sedutor. Mas nós dois sabíamos que não
havia sedução em jogo.
Disse que, definitivamente, não podia.
Não sei o
que me arrastou para a porta do teatro, naquela noite. Não podia
ter ficado quieta em casa? Minha teoria é que fui em busca de uma
resposta à Grande Pergunta -- aquela que me perseguira a vida inteira.
Até onde eu sabia, Júlio era a única pessoa que podia
me dar alguma pista.
Ficou contente em me ver. Eu estava de pé na calçada, hesitante
e contrariada, com vontade de sair correndo. Ele deve ter percebido, porque
imediatamente me pegou pelo cotovelo:
-- Mudou de idéia! - disse - Mas que coisa maravilhosa. Pena ter
chegado no fim do espetáculo... Vamos tomar uns uísques
num bar que eu conheço, certo?
-- Só posso ficar meia-hora - menti.
-- Não, mas de forma nenhuma, não admito - protestou ele.
- Gostei tanto da sua reportagem...
Se ele elogiasse mais uma vez aquela matéria, eu gritaria.
-- É aquele bar em Moema? - perguntou alguém ao seu lado.
Alguém de carne e osso, graças a Deus. Só então
reparei no rapaz: meio magro, decididamente mais novo. Como Júlio,
ele também usava o cabelo comprido, mas preso em um rabo-de-cavalo.
Tinha gestos lânguidos.
Júlio olhou para ele:
-- É outro. Você não conhece. Pra falar a verdade,
Manu, acho melhor você ir pro hotel. Está com uma cara exausta.
-- Estou ótimo - protestou o outro.
-- Não, não está - disse Júlio, com voz de
comando. - Amanhã a gente tem que acordar cedinho pra pegar a ponte
aérea. Vai pro hotel. A Teresa me faz companhia.
Eu estava constrangidíssima; o tal do Manu, furioso, virou as costas
e voltou para dentro do teatro. Só então consegui abrir
a boca:
-- Olha, se você quiser levar o seu amigo, por mim não tem
problema nenhum...
-- Não, o Manu precisa ir pra casa.
-- Mas ele ficou furioso.
-- Amanhã já passou - disse Júlio, encolhendo os
ombros. - Você não está de carro, né? Então
vamos pegar um táxi.
Fomos parar num bar do gênero escuro-com-pianinho. Justo o tipo
que gosto. Comecei a ficar de bom humor já no primeiro uísque,
principalmente porque não estava "sentindo" ninguém
atrás de Júlio. Nem na frente, nem à direita, nem
à esquerda. Graças a Deus!
Mas por que ele estaria tão interessado em conversar comigo a sós?
Bom, quem sabe fosse bissexual. Quem sabe hoje fosse meu dia de sorte.
Por que não? Eu não tinha preconceitos, longe disso...
-- Não é uma delícia? - perguntou ele. - Adoro esse
lugar. Bar de agito me enche o saco, me dá nos nervos.
-- Em mim também - disse, caçando uma azeitona com palito.
Pedi o segundo uísque.
-- E então, Teresa - disse ele, sorrindo. - Teresa. Puxa, que bacana,
um nome fora de moda. Odiaria se você se chamasse Adriana, Bruna,
Andréa... Andréa principalmente, tenho horror a Andréas.
-- Por que?
-- São falsas. Desleais. - disse ele, também mastigando
uma azeitona. Na primeira vez que trabalhei com um grupo profissional
de dança, eles tinham uma Andréa. Imagine, ela me deu uma
rasteira.
-- Falou mal de você pelas costas?
-- Não, você não está entendendo. Ela me deu
uma rasteira literalmente. Esticou o pé quando eu estava passando.
Caí e quase quebrei o joelho. Aquela vaca podia ter me aleijado.
Comecei a rir.
-- E enquanto eu estava no chão, gemendo, ela ainda dizia: "Tadinho
dele."
-- E você nunca se vingou?
-- Não precisei. Ela se afogou na sua própria falta de talento
- Cuspiu o caroço da azeitona, delicadamente, no prato.
Ele era encantador. Me fêz rir sem parar. Insistiu para que eu bebesse.
Mas qualquer ilusão sobre suas intenções desapareceu
quando, lá pelas onze da noite, ele me perguntou:
-- Você já trabalhou com assessoria de imprensa?
-- Assessoria de imprensa? - perguntei eu, abstrata. Com três uísques
em cima, nem conseguia lembrar do significado da expressão.
-- É. Aquele trabalho que você faz para as pessoas que precisam
aparecer na imprensa, ganhar notinhas nas colunas sociais... vender alguma
coisa, enfim.
-- Ah, sim. - compenetrei-me. - Assessoria de imprensa. Não, nunca
fiz isso.
-- Tem algo contra?
-- Não. Só não é meu gênero. Nunca pintou.
Sei lá.
-- O que você acharia de ser minha assessora?
Não entendi:
-- Mas pra que você precisa de assessora, Júlio?
-- Pra ficar famoso - explicou ele, gravemente. Ficar famoso e me mandar
dessa joça de país.
-- Mas você me disse que recusou convites para trabalhar fora...
-- Não eram os convites certos - cortou ele. - Agora, com essa
temporada no Colón, pode ser que pintem propostas melhores. É
uma boa vitrine. Vou fazer uma turnê grande, quase um mês.
Buenos Aires, Rosario, Mar del Plata...
-- Mas adianta alguma coisa você sair no jornal? Quer dizer, em
termos de balé?
-- Na verdade, eu acho que preciso de um pouco de publicidade, de barulho
mesmo. É o que está faltando para eu sair daqui. Porque
conhecido no meio já sou - explicou ele. - Chamou o garçom,
pediu outro uísque e desembestou num discurso sobre a importância
da mídia nos dias de hoje. Até mesmo naquelas artes "de
elite". Ele, Júlio Fontenelle, estava cansado de bancar o
operário da dança, modesto, talentoso e dedicado. Queria
estourar. Queria sair "dessa porra de país, onde vou passar
o resto da vida andando de ônibus e suando frio pra pagar o aluguel..."
Fiquei olhando-o, entre desencantada e admirada. Era inteligente, o safado.
Muito inteligente. E eu que achava que eles só precisavam de equilíbrio,
pra não cair da sapatilha de ponta...
-- Mas o que você quer de mim, afinal? - disse, cansada.
-- Quero que me acompanhe nessa turnê da Argentina - respondeu ele,
prontamente. - Quero que mande press-releases - é assim que se
fala, né? - sobre o meu trabalho lá, para todos os veículos
daqui. Converse com os editores pelo telefone, escreva matérias
para o seu jornal...
-- Não posso fazer isso. Não seria ético.
-- Tudo bem - concordou ele. - Mas qualquer notinha que você consiga
colocar na imprensa é de ouro. Eu preciso me tornar uma personalidade
conhecida, entende? Quero que meu nome fique popular. Carne de vaca mesmo:
"Ah, sim, o Júlio Fontenelle, aquele bailarino narigudo que
fez sucesso na Argentina..."
-- Vai ser difícil, Júlio. Balé não é
popular no Brasil.
-- O balé, não. Mas eu quero ser.
-- Bom - encerrei eu - com certeza você encontra alguém que
faça esse trabalho. Mas não vou ser eu.
-- E por que não?
-- Para começo de conversa, não posso ir à Argentina.
Tenho que trabalhar.
-- É mesmo? Há quanto tempo você não tira férias?
-- Um ano - disse eu, mentindo. - Tinha até vergonha de contar:
da última vez em que pedira férias, meu editor ficara doente,
o filho da puta, e não tive outro remédio senão assumir
o posto dele. Na marra. Ameaçada de demissão.
Isso fora há quase dois anos.
-- Então, pede férias - disse ele.
-- Pra ficar trabalhando?
-- Ora, Teresa... Você não vai trabalhar quase nada. Produz
meia dúzia de textinhos, manda pra cá, gasta meia hora no
telefone - eu sei que você conhece muita gente nas redações
- e pronto. O resto do tempo bate perna na Calle Florida e paquera os
argentinos. Eles são bonitões, vai por mim - e piscou o
olho - Vão ser as melhores férias da sua vida.
Não resisti. Perguntei:
-- Quanto?
Ele mencionou uma quantia. Toda mulher tem seu preço, e aquilo
era muito mais do que eu valia. Comecei a ficar desconfiada.
-- Mas, já que você é tão duro, de onde vai
tirar essa grana? - Ele se inclinou sobre a mesa, com um ar confidencial:
-- Sabe a minha mãe?
-- A espanhola.
-- Isso. A espanhola brava. Ela é rica.
-- Não sabia.
-- Pois é. Tem três estâncias. Agora que o meu pai
morreu, ela vendeu uma. Vai me emprestar a grana pra eu investir na carreira.
-- Mas que generosa.
-- Bastante. Ela me dá a maior força. Já meu pai
nunca gostou que eu dançasse - e deu uma risadinha. E então,
Teresa?
Abria a boca para responder, quando, de repente, vi - ou, melhor, senti.
Um arrepio percorreu meu corpo. O ar parecia ter se congelado. Ele estava
ali, ao nosso lado, nos roçando.
-- Teresa? - perguntou Júlio outra vez, olhando para mim. Não
tinha percebido nada.
-- Não faço assessoria de imprensa - disse eu, com voz rouca.
E, sem dizer mais nada, apanhei a bolsa e saí do bar.
Ainda passei em outro
bar - um boteco imundo, me lembro, desses que têm mosca morta no
relógio de parede - e pedi uma pinga. Pura. Cheguei em casa tão
bêbada que caí na cama e apaguei.
No dia seguinte, mal conseguia abrir os olhos. Às onze horas, me
arrastei para fora da cama, botei a primeira roupa que achei, enfiei meus
óculos escuros e fui para a redação. Tinha que escrever
uma matéria sobre a última superprodução de
pancadaria em cartaz. O protagonista era um andróide mesmo, ou
seria um ex-campeão de boxe? Fiquei parada em frente ao computador.
Levantei as mãos para digitar, e não consegui. Tremiam sem
parar.
Foi aquela bebida toda, pensei. Foi a bebida, claro. Tentei de novo. A
tremedeira não passava. Saí, fui até a lanchonete,
comi uma torrada, bebi um café com leite. As mãos trêmulas
quase derrubavam a xícara. Voltei para a redação,
tentei de novo. Mesma coisa. Peguei minha bolsa, fui até o editor:
-- Hoje não posso trabalhar.
-- Por que?
-- Enxaqueca - eu disse, telegraficamente. - Vou sair daqui direto pra
um Pronto- Socorro.
Saí dali,
entrei no primeiro bar que encontrei, pedi um café e fiquei horas
sentada, pensando.
Eu não queria mais fugir.
Tinha fugido a vida inteira. Fugindo e mentindo, fugindo e mentindo, e
um belo dia você percebe que não adiantou nada. O seu pesadelo
não foi embora. Está ali na esquina, esperando você
sair.
Eu via coisas que os outros não viam. Coisas que não existiam.
Mas, pela primeira vez na vida encontrara alguém que também
as via. Porque disso eu não tinha dúvida. Júlio podia
até precisar de uma assessora de imprensa, mas não era isto
que ele queria comigo. Era algo sobre aquele homem -- aquele outro homem,
que só nós dois víamos.
Me concentrei e tentei lembrar da "presença".
Primeira certeza: era um homem. Um homem que queria ficar perto de Júlio.
Jovem - mais jovem do que nós dois. Da idade do tal Manu, que eu
vira ontem no teatro.
Fechei os olhos e tentei me recordar das emoções que emanavam
daquela presença. Podia sentir que ela era... triste. Isso. Triste,
não ameaçadora. Era alguém que faria tudo para ficar
com Júlio.
Alguém que o amava.
Foi por isso que
procurei o bailarino, pedi desculpas pela noite anterior, e aceitei a
sua proposta. Depois levei ao jornal um atestado médico, dizendo
que precisava de uma licença para tratar da enxaqueca. Meu editor
ficou pra morrer.
Eu estava curiosa, mas não indaguei nada nos próximos dias.
Júlio tinha todas as respostas. Falaria no momento adequado.
Viajamos juntos a Buenos Aires, nos hospedamos no mesmo hotel, e eu até
comparecia aos seus ensaios. Mas não lhe fiz nenhuma pergunta.
Conversávamos sobre coisas indiferentes.
Ele estava ensaiando um espetáculo de dança moderna que
ia ficar três dias no Teatro Colón. Eu me sentava por horas
e horas na imensa platéia escura. Luz, só havia no palco.
E também havia alguém que eu não podia ver, vagando
pelas galerias.
Me acostumei aos poucos com a sua presença silenciosa. No começo,
trincava os dentes para não gritar. Um suor frio escorria pela
minha testa. Júlio parecia calmo, mas eu podia ver que algo mudava
nele. Era como se, de repente, um peso fosse colocado em seus ombros.
No meio de um movimento, seu rosto mudava. Uma tristeza enorme lhe velava
os olhos. Continuava o movimento do mesmo ponto - mas já sem nenhuma
alegria.
Nesses momentos ele buscava o meu olhar, mas eu o desviava. Não
queria lhe mostrar todas as cartas. Não ainda.
Os ensaios duraram uma semana. Nos intervalos, eu vagava por Buenos Aires.
Fazia muito frio ainda, naquele final de setembro. Nenhum sinal da primavera.
Talvez por sugestão, eu, mesmo deslumbrada com a cidade, comecei
a ver nela um clima opressivo e sombrio, reforçado pelo céu
baixo, de nuvens carregadas...
-- É uma cidade espectral - explicou Júlio, quando eu falei
do assunto. - Borgiana. Você já reparou que, na Argentina,
os mortos estão mais presentes do que os vivos? - Senti um calafrio
na espinha, mas ele continuou: -- Evita Perón, por exemplo. Ou
Carlos Gardel. Os argentinos tratam seus mortos como se estivessem vivos.
-- Uma cidade cheia de mortos ilustres - disse eu, devagar.
-- Isso sem falar nos outros.
-- Que outros?
-- Os outros. Aqueles que nem as mães sabem onde estão.
Os que foram jogados de helicóptero no mar, ou que estão
por aí em sepulturas clandestinas...
Mudei de assunto. Aquela conversa me parecia sinistra.
-- Mas como é que você conhece tão bem a Argentina?
-- Morei aqui uns três anos.
-- Quando?
-- Há séculos. Em outra encarnação.
Olhei para ele com olhos arregalados. Júlio deu uma risadinha:
-- Brincadeira. Foi quando decidi que ia ser bailarino. Meu pai queria
me expulsar de casa, mas minha mãe ficou até orgulhosa.
Fazia questão que estudasse com os melhores professores, e como
a gente tinha parentes na Argentina, me mandou para cá.
Nesse momento, o telefone tocou. Júlio atendeu, e ficou por vários
minutos falando em voz baixa. Fui para a janela e olhei a rua. Uma mulher
oxigenada caminhava, conversando com um homem. Júlio tinha razão
- os argentinos eram bonitos.
-- Era o Manu - disse ele, desligando o telefone, depois de quase quinze
minutos. Passou as mãos pelo rosto, cansado: -- Quer vir pra cá,
imagina...
-- E por que não vem?
-- Por que eu não quero. Teresa, eu gosto muito do Manu, mas ele
aqui seria um saco. No mínimo, vai querer dar palpites no espetáculo.
Aí eu mando ele sumir dos ensaios e o cara fica trancado no quarto,
morrendo de tédio, me esperando...
-- Ele pode ir passear.
-- Passear? Você não conhece o Manu.
Dei mais umas voltas no quarto, e retomei a conversa:
-- E então, sua mãe te mandou para Buenos Aires.
-- Ah, sim. Fiquei três anos aqui, morando com uns tios. Estudei
com gente competentíssima - citou alguns nomes --, fiz um monte
de amizades, aprendi espanhol... Foi ótimo.
Continuou falando, mas percebi que não ia me fazer confidências.
Pelo menos, não agora.
-- Não entendo
muito espanhol - disse eu, na manhã seguinte à estréia
de Júlio - mas acho que isso são elogios.
E apontei para o "La Nación" que ele estava lendo.
-- Claro que são - disse ele, com voz tranquila.
A essa altura, eu já descobrira que Júlio esperava constante
homenagem ao seu talento. Elogios não o surpreendiam; faziam parte
da ordem natural das coisas. Erguia um pouco as sobrancelhas, agradecia
polidamente, e seguia seu caminho.
-- E o teatro estava cheio - prossegui. - Foi um sucesso.
-- É verdade. Foi uma noite quase perfeita - disse ele, suavemente,
olhando nos meus olhos. - Mas houve umas interferências - você
não achou?
Senti as pernas bambearem; sabia que ele falava da presença. Eu
a sentira bem perto de mim, durante todo o espetáculo.
-- Você quer dizer... perguntei, num murmúrio.
-- Quero dizer - atalhou ele - que você foi muito generosa em fazer
essa viagem.
E voltou aos jornais.
No último
dia em Buenos Aires, Júlio foi visitar os parentes. Queria que
fosse junto. Mas eu disse que não estava com saco para nada, naquela
manhã. Tinha trabalhado duro nos dias anteriores, mandando fax,
pendurada no telefone.
No Brasil, as pessoas estavam interessadas. Algumas pediram fotos. Júlio
ficou satisfeito.
-- Você vai mudar minha vida - anunciou, antes de sair.
Fiquei sentada no saguão do hotel, pensando. Estávamos indo
a algum lugar, e eu sabia disto. Júlio estava me conduzindo, mas
não poderia me acompanhar até o fim. Em algum momento, teria
de caminhar sozinha.
Com um suspiro, abri minha bolsa, e tirei dela um saquinho de plástico.
Há momentos em que só o tricô consegue me relaxar.
Estava fazendo um casaquinho para o filho de Lena, que ia nascer em março.
Uma meia, um tricô, duas meias. Uma meia, um tricô, duas meias.
Uma meia um tricô duas meias. Umameiaumtricôduasmeias...
Os minutos se passavam. O gerente, encostado no balcão, fumava
um cigarro, olhando para o infinito. Comecei a sentir uma estranha sonolência.
Os pontos continuavam a deslizar pela agulha, mas eu entrei numa espécie
de transe. Umameiaumtricôduasmeias... De repente, larguei o trabalho
e saí correndo pela porta.
O gerente teve num sobressalto:
-- Senhorita?
Não respondi. Na rua, fui andando muito rápido, sem olhar
para os lados. Uma ou duas vezes, quase me choquei com pessoas que se
desviavam de mim no último momento. Dobrei para a Calle Florida
e fui andando, andando.
A rua desembocava na imensa Praça San Martín. Parei na calçada
para tomar fôlego. Olhei para a praça, e ali, no meio da
massa de árvores, eu o vi.
Era ele. Soube com uma certeza absoluta, que gelou meus ossos: era ele.
Não me lembro de pormenores -- da roupa que usava, por exemplo,
ou de sua altura, ou mesmo da cor dos seus olhos. Sei que era belo de
uma beleza triste. Sei que seus cabelos negros e lisos emolduravam um
rosto moreno, de uma juventude para além do tempo. Sorriu para
mim. Notei que tinha covinhas nos cantos da boca, pequenas depressões
na carne, que o faziam parecer mais jovem ainda. Não pensei duas
vezes: atravessei a rua correndo.
-- Cuidado!
O carro freou com violência, fazendo um barulho assustador. Teria
me atropelado, não fosse um homem que milagrosamente estava por
perto, e me jogou no chão. Caí, machucando o cotovelo. O
homem curvou-se sobre mim, falando um monte de coisas que eu não
entendia. Agoniada, lutei para ficar em pé.
-- Está ferida, senhorita?
Olhei para o banco, na praça. Ele não estava mais lá.
Na volta ao hotel,
subi para o quarto. Pedi ao gerente que, por favor, avisasse meu amigo
que eu não estava bem. Tomei dois comprimidos cor-de-rosa e passei
o resto do dia dormindo.
Também não conversamos na viagem para Rosario, no dia seguinte.
Guillermo, o empresário da companhia de dança, dirigiu o
carro. Não parava de falar, e resolvi não entender o que
dizia.
Fiquei olhando pela janela as coxilhas suaves do pampa -- aquela paisagem
tão linda, quase árida em sua monotonia. Conversei com Deus
- eu, a atéia. Por que me escolhestes, Senhor? Por que eu? Eu que
não quero ver, não quero ouvir, não quero falar?
Como Cristo no Jardim das Oliveiras, pedi: afasta de mim esse cálice.
Mas Ele não me respondeu.
Júlio disse
que ficaríamos dois dias em Rosario.
-- Mas vocês não fazem só uma apresentação?
-- É, mas eu preciso de mais um dia aqui. Tenho umas coisas para
resolver.
Não o interroguei.
A apresentação foi fraca, havia pouca gente no teatro. Júlio
encolheu os ombros: "Já arrasamos em Buenos Aires"
-- Então, talvez seja melhor eu ir embora. - repliquei, para ver
a sua reação.
Ele olhou para mim, surpreendido.
-- Embora? Nem pensar, Teresa. Isso não tem cabimento! -- Abaixei
a cabeça submissa, e ele deve ter tido pena, porque me abraçou
pelos ombros: -- Ora, Teresa, você não vai me deixar sozinho
com esses argentinos chatos, né? Isso não se faz.
Voltei para o quarto do hotel e tomei mais dois comprimidos rosas. Dormi
a noite inteira, e só acordei às dez da manhã, com
alguém batendo na porta:
-- Teresa, acorda.
Saí da cama, e do pesadelo que estava tendo. Desgrenhada e miserável,
abri alguns centímetros da porta:
-- Júlio?
-- Vá se vestir. Quero te levar pra conhecer uma pessoa.
-- Mas...
-- Vá se vestir, Teresa, por favor.
Me vesti com gestos lentos. Abri a porta. Ele me olhou e franziu a testa,
aborrecido:
-- Pelo amor de Deus, Teresa.
Entrou no quarto, abriu minha mala e me jogou uma saia:
-- Calça jeans, não. Escolha uma roupa mais clássica...
E prenda esse cabelo. Está parecendo ninho de rato.
Tive vontade de mandá-lo à merda, mas obedeci. Fui tirando
a roupa aos trancos, feito uma criança humilhada. Ele virou-se
para o lado, não sem um rápido olhar de avaliação
ao meu corpo:
-- E outra coisa - completou, enquanto olhava pela janela. - Ponha pelo
menos um batom. Você está muito pálida.
A rua aonde Júlio
me levou ficava longe do centro da cidade. Era um beco sem saída.
Tocamos a campainha de uma casa pequena, com um jardim minúsculo
na frente, uma varandinha impecavelmente varrida.
-- Mas quem é que mora aqui, afinal? - perguntei.
-- Psiu! - fez ele, aborrecido.
Um tempo que me pareceu interminável se escoou, até que
alguém abriu a porta. Uma mulher idosa.
-- Júlio, meu filho! - disse. Quando se aproximou, notei que seus
olhos cinzentos estavam marejados. Destrancou o portãozinho e abraçou
longamente meu amigo, enquanto eu "sobrava" ao lado dele, embaraçada.
Finalmente, Júlio conseguiu se desvencilhar, e me apresentou. Em
espanhol.
O nome da mulher era Mercedes. Mercedes, e mais um sobrenome basco de
que já me esqueci. Entramos na casinha, atulhada de móveis
e enfeites antigos que deviam ter conhecido os seus dias de glória
lá por 1950.
Júlio me explicou que Dona Mercedes era viúva há
muitos anos. Tinha uma filha professora ali mesmo em Rosario, e um filho
executivo numa multinacional de seguros ("Miguelito me contou que
você esteve com ele em Buenos Aires!"), disse a mulher, e seus
olhos brilharam. Violoncelista amadora, tocava até hoje numa orquestra
de senhoras. Passara a vida em casa, cuidando dos filhos e do marido.
Depois de alguns minutos de conversa, os dois pararam de falar ao mesmo
tempo. Os dois pousaram as mãos na mesa de mogno. Dona Mercedes
fêz uma pergunta ao meu amigo, rápida demais para que eu
pudesse entendê-la. Júlio respondeu negativamente. Ela então
levantou-se, saiu da sala e voltou pouco tempo depois. Trouxe um álbum
de fotos com capa de madrepérola.
-- Júlio disse que você não conheceu meu Ángel
- murmurou ela.
Colocou o álbum em cima da mesa, abriu a primeira página.
E lá estava, é claro, o rapaz da Praça San Martin.
-- Acho que precisamos
conversar - disse a Júlio, assim que saímos da casa de Dona
Mercedes.
-- Claro - concordou ele.
Me levou a um café -- quase vazio, àquela hora. O garçom,
vestido com um enorme avental, nos trouxe dois chocolates.
-- Você já tinha visto ele, não tinha? - perguntou
Júlio.
-- Já - respondi, baixando os olhos, tímida como uma debutante
com o primeiro namorado.
-- Imaginei.
-- Acho que está na hora de você me contar tudo, Júlio.
Aliás, devia ter me contado desde o começo.
-- Eu não queria te influenciar. Te deixar sugestionada, entende?
Tomou o primeiro gole do chocolate. Suspirou:
-- Conheci o Ángel quando vim estudar em Buenos Aires. Nós
tínhamos a mesma idade. Ele era... o adolescente mais maravilhoso
que já vi na minha vida. Você não pode imaginar. Um
esplendor.
Concordei com a cabeça. Júlio era um homem bonito, mas a
foto que Dona Mercedes me mostrara ultrapassava a dimensão do "bonito".
Aos vinte anos - a idade em que morrera - parecia um belo espírito,
já transcendendo a carne. Atravessando-a.
-- Vocês eram muito... ligados?
-- Muito - disse Júlio. - Ele me apresentou a todo mundo, virou
uma espécie de protetor. O Ángel era muito mais maduro que
eu. Diferente. Diferente de qualquer pessoa que eu conheci na minha vida.
Você não imagina a generosidade, a inteligência...
Fêz uma pausa, bateu a cinza do seu cigarro no cinzeiro:
-- Além disso, era melhor bailarino.
-- Ora, Júlio. - disse eu, surpreendida. - Não acreditava
em meus ouvidos.
-- É verdade. - Havia amargura em sua voz. - Nós éramos
os prodígios da escola, mas sempre que alguém nos comparava,
eu perdia. Ele era extraordinário. Não digo isso porque
morreu.
-- Você se sente culpado pela morte dele? - disse eu, colocando
as duas mãos entre os joelhos.
-- Não - disse Júlio. - Não fui eu quem matou o Ángel.
Foi um caminhoneiro bêbado, na Régis Bittencourt.
-- Mas se ele não tivesse te seguido, quando você voltou
para o Brasil...
-- Foi decisão dele. Eu não pedi nada.
Com certeza não pediu - pensei. Que difícil não teria
sido a vida com Ángel! As comparações. As piadas
maldosas. Alguém superior a ele, em todos os pontos.
Pobre Júlio.
-- Claro, quando ele morreu, fiquei arrasado. Quis até parar de
dançar. Foi um golpe. Mas depois... - tirou outra tragada do cigarro,
balançou a cabeça - a gente continua a viver.
-- E quando você... - pigarreei - percebeu que ele tinha voltado?
Ele ficou olhando para a xícara à sua frente, como se estivesse
se concentrando para responder minha pergunta.
-- Quando?
-- Você não entende. Não foi assim! - disse ele, estalando
os dedos. - De um dia para o outro. Uns dois anos depois, comecei a ter...
umas impressões esquisitas, só isso. Às vezes, estava
andando na rua e sentia alguém me seguindo. Me virava, e não
via ninguém.
Lembrei do dia no cemitério, tantos anos atrás.
-- Depois, foi piorando.
-- O tempo todo?
-- Não o tempo todo. Mas com muita freqüência.
-- Que freqüência?
-- Não saberia precisar. Às vezes se passam semanas, até
meses sem que eu sinta nada. E de repente ele está lá, bem
do meu lado. Você pergunta quando ele voltou... Bem, às vezes
eu tenho a impressão de que nunca foi embora.
-- Você vê ele?
-- Não. Nunca vi.
-- Então, como sabe quem é?
-- Eu sei. Eu sinto que é o Ángel. É uma espécie
de aura... uma atmosfera. Deus do céu - suspirou ele - estou falando
um monte de besteira, não é?
-- Não.
A porta do café se abriu com estrondo, e um homem de meia-idade
se aproximou do balcão. Cumprimentou o garçom. Os dois começaram
a falar de futebol.
-- E como você sabe - disse eu, com os olhos fixos em meus sapatos
- que não está tendo uma ilusão... ou um distúrbio
psiquiátrico?
-- Só se você também estiver louca, querida - disse
ele, passando subitamente para um tom de falsete. Bem bicha.
Eu teria rido, se não estivesse com tanto medo.
-- Servem alguma coisa para beber nessa joça? - perguntei.
-- Quer dizer... álcool?
-- É.
-- Servem, claro.
O garçom me serviu uma vodca e voltou à conversa com o velho.
Estavam discutindo o Maradona. Tomei o primeiro trago:
-- Júlio, o que você quer de mim?
-- Quero que você mande ele embora.
-- O quê?
-- Já disse: quero que mande ele embora. Eu não agüento
mais. São sete anos de martírio, sabe lá o que é
isso? Sete anos pensando que estou louco? ou, pior ainda, que estou sendo
seguido por alguém que não posso ver, tocar, ouvir... alguém
que já morreu?
-- Já tentou falar com ele?
-- Mas é evidente que tentei. Milhões de vezes. Nunca acontece
nada. Me sinto um imbecil, falando com o vácuo.
-- Ele existe. Só não quer falar com você.
-- Se eu fiz algum mal para ele, já paguei várias vezes.
-- Júlio - disse eu, tomando mais um gole -- você é
um estúpido. Acha mesmo que ele voltou só pra te atormentar?
-- E não é isso?
A essa altura, já tinha decidido me embebedar. Estava cansada do
egoísmo, da burrice dos homens. Sempre os mesmos.
-- Por favor. É só o que você consegue ver?
-- Eu sei que você vê mais do que eu - disse Júlio,
teimosamente. -Por isso quero que mande ele embora.
-- Ele está te fazendo tanto mal assim?
-- Ele está me deixando louco! - gritou Júlio, esmurrando
a mesa. O garçom e o freguês interromperam a conversa e ficaram
olhando, assustados. Uma mulher que vinha entrando parou na porta. Sorri
um sorriso amarelo para os circunstantes, e voltei a falar com o bailarino:
-- Calma, Júlio.
-- É fácil pra você pedir calma.
-- Você tentou procurar profissionais? Sabe, médiuns, parapsicólogos...
Eu sou só uma jornalista.
-- Você acha que não tentei?
-- E não deu certo?
-- Eu chego lá e digo que estou com um problema. Eles nunca adivinham
o que é. Nunca. Gastei um monte de dinheiro. Já me descobriram
uma porrada de irmãos falecidos, e eu sou filho único. Me
dá um pouco dessa vodca.
-- Acabou.
-- Cansei dessa gente. Teresa, sabe o que eu fiz, quando você saiu
do meu quarto, lá no hotel em São Paulo? Fui investigar
sua vida. O Israel, aquele meu amigo, conhece muitos jornalistas. Me disseram
que você nem religião tinha.
-- É verdade.
-- Em você, eu confio. Você é a solução
para o meu problema.
-- Por acaso você me perguntou se eu queria resolver o seu problema?
-- Não - disse ele, tristemente. - Acho que vou ter de implorar,
né?
Balancei a cabeça:
-- Júlio, as coisas não são assim. Certo, eu sei
que ele está aí. Sei que você não está
maluco. Mas daí a poder mandar ele embora... Olha, vou ser sincera:
passei a vida inteira fugindo desse tipo de coisa. Não acho que
possa te ajudar, Júlio.
-- Você pode - disse ele, erguendo os olhos para mim. Eram olhos
de um homem desesperado. - Você pode, Teresa. Você se comunica
com ele.
-- Eu não me comunico com ninguém.
-- Você viu ele! E está ficando cada vez mais próxima.
Foi à casa da mãe dele. Viu os retratos. Lá em Buenos
Aires, te levei aos lugares que a gente frequentava. Teresa, pelo amor
de Deus, ele vai falar com você.
-- Júlio....
Foi uma longa conversa.
Longa e inconclusiva. Quando saímos de lá, já era
tarde, e um não tinha convencido o outro.
O que Júlio queria de mim? Que eu conversasse com aquela sombra,
que já se fora, e que eu nem conhecera quando viva? Era ridículo.
Sem contar que, nos dias seguintes, surgiu uma dificuldade adicional.
A "presença" sumira. Desaparecera. Passamos por Santa
Fé, Bahia Blanca, Mar Del Plata, La Plata e, em todas estas cidades,
eu e Júlio não víamos nem sentíamos nada.
Sempre que ele tentava abordar o assunto, eu falava de outras coisas.
Dos jornais do Brasil, por exemplo. Tinha cavado várias matérias,
até algumas entrevistas com Júlio por telefone. Me revelara
uma ótima assessora. Podia ter vendido peixe estragado com o mesmo
sucesso.
-- Agora sim, vão pintar os convites que você estava esperando.
Vai me mandar uma parte do seu salário, hem? Em dólar.
Fingia um bom-humor que estava longe de sentir. Estava infeliz. Quando
voltamos a Buenos Aires, mal notei a primavera que começava, com
dias gloriosamente azuis. Nos meus sonhos, muitas vezes, pressentia uma
figura longínqua. Um rapaz, com os cantos da boca um pouco afundados.
Mas quando acordava ele não estava lá.
Na véspera
da reestréia do espetáculo - só mais duas apresentações
- fui procurar Júlio em seu quarto. Queria perguntar sobre o horário
da volta.
-- Entra! - respondeu a voz lá de dentro, irritada. Virei a maçaneta.
Júlio estava sentado na cama, com o telefone no colo, um ar perdido
e zangado.
-- O que foi que aconteceu? - perguntei. Ele suspirou:
-- O Manu. A gente teve uma briga - repôs o telefone na mesinha
ao lado, raivosamente --, as coisas vão de mal a pior, é
tudo uma bosta.
Sentei a seu lado na cama:
-- Por que vocês brigam tanto, Júlio?
-- Porque ele é uma pessoa normal e eu sou um cretino. Porque estou
sempre viajando. Porque ele me acha um galinha e tem razão. Ele
quer mais compromisso, entende? e isso não posso dar.
-- Não mesmo?
-- É complicado, Teresa. Nem sei nem onde vou estar amanhã.
E depois.... - concluiu com dificuldade: -- Não quero botar mais
ninguém nessa história. Minha vida é um pesadelo.
Não era a primeira vez que ele usava aquela palavra, "pesadelo".
Notei que seus olhos estavam vermelhos, e consegui até sentir um
pouco de compaixão. Um pouco. Não devia forçar muito,
senão passava.
-- É muito cômodo para você, Júlio. Tudo que
não dá certo na sua vida é culpa dessa história,
não é? Dessa fantasia. As suas dificuldades de relacionamento,
seu medo de se comprometer...
-- Mas que merda, Teresa. Onde você comprou todo esse besteirol,
hem? Isso é hora de psicologia barata?
Fiquei olhando para ele, pensativa, mordendo o lábio. Estava decepcionado
comigo. Pobre Júlio.
A televisão mostrava uma novela com uma atriz loiríssima
discutindo, gravemente, as suas dificuldades de relacionamento com o marido.
Eu assistia o drama, bebericando um iogurte, quando o telefone tocou.
-- Teresa? - era a voz de Júlio, do outro lado da linha.
-- Oi.
-- Estou aqui no teatro, acabei o ensaio nesse instante. Teresa, você
precisa vir. Ele está aqui.
Fiquei aturdida.
-- Teresa? Alô?
-- Estou te ouvindo.
-- Vem pra cá. Você tem que tentar. Pelo menos tentar.
Desliguei o telefone e saí correndo.
Que dificuldade entrar
naquele maldito teatro. No começo, o porteiro não queria
entender o meu portunhol. Quando consegui explicar que um amigo meu estava
ensaiando ali, ele disse que o pessoal do grupo de dança já
se fora. Eu estava quase desistindo, quando Flávio - o outro brasileiro
do grupo - apareceu na porta, com a mochila nas costas, pronto para sair:
-- Teresa? O Júlio pediu para você entrar. Ele teve que ir
embora, mas disse que você vai achar a sua bolsa na platéia.
A bolsa, pois sim. Entrei voando no saguão. Subi a escadaria de
mármore, pulando degraus. E de repente me vi no coração
do Colón, na sala quase toda escura. Uma ou outra luzinha vinha
das laterais da platéia. Entrei devagar. O coração
batia forte, como se fosse pular da minha garganta e me sufocar numa onda
de sangue.
-- Tem alguém aí?
Jamais ousaria chamar seu nome.
-- Tem alguém aí?
A acústica perfeita do teatro reverberava as minhas palavras, como
já tinha feito no passado com tantas vozes perfeitas. Quase podia
ouvi-las. Um coro delas, atrás de mim. Divas, sopranos, contraltos,
baixos e tenores: me protejam.
-- Você está aí? - ousei, enfim.
Ouvi passos atrás de mim.
Me virei para olhar. Ali, no escuro da platéia, havia um vulto.
Sem vê-lo, podia adivinhar seus contornos: era ele. Aproximei-me
devagarinho, e sentei-me perto, duas ou três cadeiras ao seu lado.
Comecei a falar, olhando para o chão.
-- Você tem que ir embora.
Não esperei pela resposta.
-- Eu sei que não quer, mas tem de ir.
A sombra mexeu-se na escuridão. Senti um suave, mas poderoso movimento
de resistência. Mas ele era apenas de uma alucinação.
Não havia porque ter medo.
-- Ele não precisa mais de você.
Pronto. Já tinha dito tudo. Levantei a cabeça e fiquei olhando
fixamente para o ponto onde ele estava. Por uma fração de
segundo, seria capaz de jurar: a sombra adiantou seu rosto divino para
a luz, os cantos da boca forçados num sorriso amargo.
Mas a visão se desvaneceu logo, como um relâmpago na escuridão.
Na verdade, não sou capaz de jurar por nada do que aconteceu, depois
que parei de falar. Caí numa sonolência pesadíssima,
asfixiante como a de uma anestesia. Dormi. Dormi alguns minutos, e tudo
que estou contando aqui pode ser um sonho. Depois o porteiro do teatro
veio me acordar, perguntando se eu tinha achado a bolsa.
Existem poucas certezas
nessa vida, mas eu tenho uma. Nunca mais -- nem que disso dependa a minha
vida -- coloco os pés no Teatro Colón. Júlio diz
que, quando cheguei ao hotel, parecia um fantasma. Mesmo assim ele insistia
em me interrogar:
-- O que aconteceu? Você falou com ele? Me conta, Teresa, por favor!
-- Não cheguei a falar. Tive uma espécie de visão...
Você não entenderia. Eu preciso descansar, Júlio.
-- Você não vai assistir o espetáculo? disse ele,
surpreendido.
-- Não.
Subi para o meu quarto, tomei mais alguns comprimidos e apaguei. Apaguei
naquele dia e no seguinte. Não toquei mais no assunto com Júlio,
mas já na viagem de volta ele me olhava com gratidão:
-- Júlio, não tenho certeza de nada - adverti.
-- Sim, mas eu não sinto mais ele.
-- E daí? Você disse que passa meses sem acontecer.
-- Dessa vez ele não volta. Eu sinto.
-- Acho que você está se iludindo.
Se despediu de mim, radiante, me abraçando e me beijando efusivamente
(nem sei contar o quanto aqueles abraços e beijos me incomodavam).
Prometeu dar notícias sempre.
E deu.
Me ligou na primeira semana. Na segunda. Um mês depois. Seis meses.
Um ano. De todas as vezes, dizia a mesma coisa: a "presença"
nunca mais voltara.
Ele era um homem livre.
Bem, que mais há
para contar? Júlio Fontenelle finalmente alcançou o seu
objetivo. Recebeu um convite para dançar no Balé de Frankfurt.
Mudou-se de armas e bagagens, mas não se esqueceu de mim. Sempre
me escreve. Diz que está adorando o trabalho, e que a Alemanha
é fantástica. Divide o apartamento com um colega do Balé.
Em breve vem ao Brasil ("só a passeio") e faz questão
de me ver. Deve tudo a mim. Eu o livrei do pesadelo.
Vou ter que inventar uma boa desculpa para escapar dele - penso, relendo
melancolicamente a sua carta. O garçom vem ver se quero mais alguma
coisa.
-- Um uísque, por favor.
Quanto a mim, mudei de emprego. Estou trabalhando numa revista universitária,
com horário certo, fechamentos humanos e um salário razoável.
Mas ainda faço a parte de Artes e Espetáculos. Recentemente,
minha editora resolveu que dar mais espaço às "artes
esquecidas".
-- O balé, por exemplo. Você já escreveu sobre balé,
Teresa?
Neguei, me debati, mas não tive escapatória: estou escrevendo
sobre balé. De todos os assuntos do mundo, justamente o balé.
-- O senhor me vê a conta, por favor?
Pago a conta, pego meu casaco. Suspiro ao levantar da mesa. Foi um longo
dia de trabalho. Não foi fácil, mas finalmente chegou a
hora de voltar para casa. E não voltarei sozinha.
Ele vai me esperar na esquina. Ou no escuro do meu apartamento. Se não
vier hoje, virá amanhã. Nunca falha. Adivinho o seu vulto
no escuro, ouço seu passo de adolescente. Agora espero, com inefável
expectativa, uma visão do seu sorriso. Da sua boca de cantos marcados.
Desisti de negar, desisti de fugir há muito tempo. Hoje, só
me resta confessar.
Tem alguém atrás de mim.
FIM
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