Um pesadelo genético pode acontecer nas melhores famílias

EU SOU UMA CÓPIA

Sempre é triste acordar para um dia escuro.
Hoje, dia dezessete de junho, é segunda-feira, e nossa agenda está carregada. Oito horas: hemodiálise. Onze horas: pagamento da pensão. Meio dia: almoço com Tia Judite, que insiste em ver Afonso. Duas da tarde: neurologista para testes, seguido de sessões com a terapeuta ocupacional.
E no fim da tarde, o compromisso mais temido: o encontro com Geraldo Prata.
Toda essa maratona debaixo de chuva! Por enquanto, cai apenas uma garoa encorpada. Mas o céu está baixo e cinzento. E os dias escuros deprimem Afonso, também.
Ele está acordando agora. Seus olhos ainda piscam. Meu irmão tem fotofobia: fora de casa, só anda de óculos escuros.
- Glória?
- Estou aqui, Afonso.
- Me ajuda a levantar.
Dou a volta na cama. O quarto que ocupamos não é grande. Minha mãe o decorou em tons de vermelho, sua cor predileta: escolhida, eu imagino, para esperar o nascimento do primeiro filho. Uma criança tão especial! Deve ter gasto um bom dinheiro nesse horror.
Hoje, os tons esmaecidos do dossel da cama, do papel de parede e da cobertura do sofá se transformaram numa cor agourenta. Ao se sentar na cama, Afonso dá um grunhido. Como acontece todas as manhãs, está fraco e cansado.
Eu mesma vou vesti-lo. Sua coordenação piorou nos últimos tempos.
- Detesto essa camisa – ele resmunga, enquanto vou abotoando-o rapidamente. – Me deixa com cara de velhinho...
- Pare com isso. Com vinte e sete anos, ninguém vai achar você velho.
Ele dá um sorriso triste. Procurei tirar os espelhos de casa, mas lá fora ele encontra as vitrines, os espelhos dos elevadores, das lojas... Afonso sabe que aparenta mais que sua idade.
Tiro a blusa do seu pijama. Seu peito ainda é musculoso e bonito, apesar de toda a brancura. É estranho pensar que, até cinco anos atrás, ele ainda fazia esporte.
Preparo o café e nos sentamos em volta da velha mesa de fórmica. Na hora das refeições, a ausência de nossos pais ainda se faz sentir. Comemos em silêncio.
- O pessoal do grupo de teatro me telefonou – diz Afonso, entre dois goles de café com leite.
- O que eles queriam?
- Me convidaram para sair.
Começo a me preocupar: será que essa gente sabe cuidar do Afonso? Eles não o vêem há três anos. Vai ser um choque.

Hoje não havia tanta fila.  Afonso já está sendo atendido.
A hemodiálise, graças a Deus, ainda é gratuita. Mas ninguém paga o transporte até aqui. Como meu irmão não agüenta a viagem de ônibus, temos que vir de táxi.
- O médico está chamando a senhora. – diz uma enfermeira.
Saio correndo. Será que finalmente vou receber uma boa notícia?
O médico que me atende tem no máximo minha idade, é calvo – o pouco de cabelo que lhe resta forma um anel louro em volta do crânio -  e usa óculos sem aro.

  • Bom dia. A senhora é...
  • Glória. Irmã do Afonso.

Sento à frente dele, na escrivaninha. O Dr. Heraldo – o nome está numa crachá de plástico, no bolso do guarda-pó - me aperta a mão frouxamente. Seus olhos baixam para os papéis que estão na mesa:

  • Sinto muito, Glória. Infelizmente, não conseguimos encontrar nenhum doador para o seu irmão.
  • Nenhum? – minha voz treme . – Ele balança a cabeça. Fico em silêncio, olhando o retrato da sua família em cima da escrivaninha. Ele, a mulher, um garoto. Todos saudáveis, sorrindo com um ar de felicidade despreocupada.

Levanto a cabeça de novo:
- Mas num universo de três mil pessoas...
- Eu sei, é muita gente. Alguns deles, de fato, são mais saudáveis que seu irmão. Mas até nessas pessoas os rins já mostram sinais de deterioração. Por enquanto, estão assintomáticas. Mas logo começarão a ter os mesmos problemas do... – Consulta a ficha -  Afonso, não é?
- Isso.  – Respiro fundo, e parto para a pergunta seguinte: - E os primeiros? A primeira fornada?
Ele se permite um sorriso:
- A primeira fornada, como a senhora diz, é constituída exatamente de dez pessoas. Ou melhor, era.  Talvez a senhora não saiba, mas a taxa de suicídios entre eles é alta...
Balanço a cabeça, sem me alterar. Não há nada sobre essa gente que eu já não tenha lido ou pesquisado.
- Dois se mataram. Oito ainda estão vivos. Desses oito, temos dois muito doentes, com problemas de gigantismo – não sei se a senhora sabe, mas é uma das moléstias mais freqüentes – e retardamento mental. Não seria ético extrair o rim dessas pessoas. Dos seis restantes, um está desaparecido – ninguém sabe onde foi parar. E os outros cinco já declararam, categoricamente, que não estão dispostos a doar coisa nenhuma.
Olho para ele, chocada. Ele sorri com tristeza:
- Eu sei, é terrível. Uma pessoa pode viver muito bem com um rim só, e estamos falando de gente saudável. Mas são pessoas que vivem com medo. Não querem arriscar nada.
- Entendo. E a segunda... geração?
- Como eu lhe disse: a segunda geração, apesar de aparentemente saudável, já tem problemas renais. – Olha de novo os papéis: - O seu irmão, pelo que estou vendo aqui, já pertence à quarta fornada. Um caso grave, não? Problemas de saúde desde a adolescência....
Não respondo. Olho de novo para o retrato da família do Dr. Haroldo. Ele prossegue:
- Não perca as esperanças. A tecnologia de rins artificiais está cada vez mais adiantada – logo teremos um protótipo. E naturalmente existe a perspectiva de um transplante tradicional. Seu irmão já está na fila. Claro, aí as possibilidades de rejeição são maiores. Mas se der certo, ele pode viver muitos anos com um novo rim.
Devo fingir que acredito?

Ao sair da sala do médico, a enfermeira me avisa que a hemodiálise já terminou.
Vou andando pelos corredores de um branco sujo. Doentes sentados em velhos bancos de madeira escura aguardam para ser atendidos. São caras de sofrimento e paciência. Um cheiro acre e químico se mistura com os odores da humanidade doente. De um dos quartos, vem uma série de gemidos baixos, melancólicos e resignados. A dor faz parte da vida.
Na sala da hemodiálise, Afonso está me esperando, encostado num dos bancos de madeira. Sorri para mim.
- Pronto. Já troquei meu sangue. Sou um vampiro novo em folha.
- Então vamos indo – digo, juntando suas coisas na sacola. – Precisamos passar no banco para receber a pensão.
No táxi, ele fecha os olhos, cansado. Olho para a sua perna: treme. Mal de Parkinson? O neurologista diz que precisa fazer mais testes.
- Feche essa janela – resmunga meu irmão. – Estou sentindo um vento  horroroso.
- Moço, será que eu podia fechar a janela? – pergunto ao motorista de táxi.
Ele olha para trás.
- Sabe de uma coisa, moça? Não. Está fazendo muito calor. Eu não agüento trabalhar de janela fechada.
Um silêncio pesado se estabelece no carro. Meu irmão morde os lábios. Estala as juntas dos dedos. A irritabilidade é normal – me disse, várias vezes, a psicóloga. “Por um lado, tem a ver com os problemas neurológicos dele. Por outro lado, imagine-se na situação de Afonso!”
- Eu vou fechar essa porcaria. – avisa meu irmão.
- Espera aí, moço – diz o taxista – Dentro do meu carro, quem manda sou eu.
- Já vamos ver quem manda.
- Afonso! – digo eu, desesperada, segurando o braço dele.
O motorista freia bruscamente o carro, sai e abre a porta de trás.
- Fora daqui, seu merdinha – diz.
Tem duas vezes o tamanho do meu irmão. Afonso sai do carro, lívido de raiva. Os dois se encaram por um segundo, e Afonso dá um soco na cara do motorista.
Começo a gritar, desesperada.

- Você é completamente louco – arquejo, quando estamos entrando no banco. – Aquele sujeito podia ter te matado.
- Você quer me humilhar – diz ele, furioso.
- Eu não quero humilhar ninguém, Afonso...
- É mesmo? Então por que gritou para a rua toda que eu sou doente?
- Ele ia te mandar para o hospital. E agora chega, sim? Senão vou ser obrigada a te dar um tranqüilizante.
- Vá à merda, você também – diz ele, furioso. E entra no banco, quase me machucando com a porta giratória. Fico por alguns momentos na calçada, tentando recuperar o fôlego e a calma. Por fim, ele sai:
- Você não vem?
A raiva se evaporou do seu rosto. Sua voz é suplicante:
- Vem, Glória. Você precisa segurar minha mão, para eu assinar...
Suspiro fundo, aperto a bolsa contra o peito e entro no banco. Como sempre, é uma luta para convencê-lo a sentar-se e me deixar ficar na fila. Depois de quinze minutos, chego à caixa.
- Pensão por incapacidade... Um minutinho só. – diz ela. Passa a tarja magnética pela máquina. Olha a tela do computador e uma expressão de perplexidade se espalha pelo seu rosto: - Está bloqueada.
- Como assim?
- Bloqueada, veja. - Gira a tela do terminal em minha direção: - Foi depositada, mas você não pode retirar.
- Eu quero falar com o gerente.
Alguns minutos depois, estou na frente de um homem de terno azul. Ele é calvo, tem um ar compassivo, e cheira como se tivesse esgotado toda a produção de perfumes do país:
- É isso mesmo, minha senhora... Glória, não é?
- Isso mesmo.
- O que aconteceu foi o seguinte: o governo obteve uma liminar bloqueando o pagamento dessas pensões. – Apressa-se em me tranqüilizar: - Falei com o nosso Departamento Jurídico. A decisão deve ser revertida em alguns meses, quando acontecer a próxima audiência.
- Mas até lá, do que a gente vive?
Ele balança a cabeça, constrangido.
- Se a senhora quiser fazer um empréstimo... Mas francamente, eu não a encorajo. As taxas de juros andam muito altas. – Pigarreia e muda de assunto – Eu tenho acompanhado o caso pelos jornais. É um absurdo! Não sei como o governo se nega a pagar as pensões. Afinal, foram eles quem permitiram esse erro. São tão responsáveis quanto o tal laboratório.

- E agora, o que a gente faz? – pergunta meu irmão, assim que entramos no táxi.
- Não sei, Afonso. Telefonei para o advogado. Ele diz que a decisão deve ser revertida, a ação vai continuar... Talvez a gente pudesse pedir dinheiro emprestado para a Tia Judite.
- Que absurdo!
- Ela já ofereceu várias vezes.
- Não quero! – grita Afonso, furioso. – O motorista olha para trás. Era só o que me faltava: outra briga...
Me calo, com medo.

Tia Judite mora num apartamento luxuoso de um dos melhores bairros da cidade - longe das favelas e da miséria, que não pára de aumentar. Ficou viúva há dez anos. Cozinha maravilhosamente.
Mas Afonso mal consegue comer três colheradas da comida que ela preparou com tanto cuidado – sem sal, temperos especiais... “Estou muito cansado, titia”, diz. “Posso dormir um pouco? Depois, eu e a Glória temos de ir ao neurologista.”
- Fique à vontade, meu querido – diz ela. – Sabe aquele quarto onde você ficava, quando pequeno? Deixei preparado para você.
Quando Afonso sai da sala, ela olha para mim. Está esperando que eu fale. Constrangida, conto que meu irmão vem piorando.
- Eu sei, minha filha – ela me interrompe. – Você já me contou tudo isso. O rim, os problemas neurológicos, a irritabilidade... Nem é isso que me preocupa.
Curva-se do outro lado da mesa:
- Ele está envelhecendo, não é?
Estremeço: Tia Judite é uma mulher bem informada. Deve ter lido algo sobre o assunto.
A imprensa adora explorar essa história. Afinal, o governo só foi proibir a clonagem artificial há dez anos. Existem alguns milhares de pessoas como Afonso por aí. São de vários “modelos”. Todos ainda jovens. Todos sofrendo, em alguma medida, da síndrome de envelhecimento precoce. Afonso já tem arteriosclerose e diabete senil. Mas nem é preciso fazer exames médicos para saber que está envelhecendo.
- Está sim, titia. – respondo, simplesmente.
- Quanto os médicos acham que ele vai durar?
Ela não tem papas na língua. Antes de se aposentar, era executiva. Sabe colher o máximo de informações para tomar decisões rápidas.
- Varia. Alguns dizem que, com cuidados adequados, ele ainda pode durar uns dez anos. Outros acham que é muita coisa junta - que o rim, ou algum problema cardíaco, vão matar o Afonso em pouco tempo.
- Ele também pode ficar senil – raciocina Tia Judite. – Ou inválido, atirado numa cadeira de rodas. – Muda inesperadamente de assunto: - Que idade você tem, mesmo?
- Trinta e um.
- E vai continuar vivendo em função dele? O resto da vida?
Fico vermelha. Não respondo.
- Glória, o que está fazendo por seu irmão é muito bonito. Mas não pode continuar desse jeito. Você está desperdiçando a juventude. Não sai, não namora, não conhece outros rapazes... Você não quer ter uma carreira? Filhos, uma família?
- Nem sempre foi assim, titia. Quando papai e mamãe eram vivos...
- Antes de seu pai e sua mãe morrerem no acidente, você já se dedicava demais a seu irmão. Chegou a espantar aquele seu namorado – como era o nome dele, mesmo?
Não respondo.
- Depois que eles morreram, então, até o emprego abandonou. Mas nada disso é necessário, Glória. Você está exagerando. Eu tenho dinheiro, e nem sei onde gastar. Podemos contratar uma enfermeira. Assim você pode sair, trabalhar...
Balanço a cabeça:
- Não, tia Judite. Isso não. Eu conheço o Afonso. Ele jamais aceitaria outra pessoa. Além disso, ia se sentir abandonado. Depois que papai e mamãe morreram, sou a única pessoa que ele tem. Desde pequeno, sempre teve dificuldades para fazer amigos.
- Coitado, não tinha saúde... – suspira ela.
- Não era só a saúde. É difícil para uma criança ser diferente. O único lugar onde teve amizades foi no grupo de teatro.
- Que pena ele desistir!
- Tinha muito talento – digo – Pelo menos, era o que todos diziam. Mas não teve mais saúde para continuar no grupo. Hoje em dia, vive isolado em casa, ou indo de hospital em hospital. Se eu contratar uma pessoa estranha para cuidar dele, vai se sentir abandonado. Pode entrar em depressão – e isso seria péssimo para ele.
Ficamos em silêncio. Lá longe, soa o trovão. O aguaceiro vai começar agora. Tia Judite está quieta, mas não parece convencida. Deixo meus pensamentos vaguearem, até desabafar em voz alta:
- Por que meus pais fizeram isso, afinal?
Tia Judite responde sem hesitar. Talvez já estivesse esperando essa pergunta há anos:
- É muito fácil condenar seus pais, hoje em dia. Você não compreende o clima daquela época. Eu mesmo apoiei a decisão deles. – Gira no dedo a aliança de viúva: - Você era muito pequena, não se lembra.
“Os cientistas estavam ansiosos para popularizar a clonagem. Popularizar e vender, é claro. Dinheiro fácil para as pesquisas deles. Aí, essa multinacional farmacêutica comprou a idéia, e lançou a idéia na mídia.
“Se você visse as reportagens que a gente lia, na época... Diziam que a clonagem ia resolver, por exemplo, todos os problemas dos casais sem filhos. Era a solução perfeita. Nada de se desgastar com bebês de proveta.
“Para os pais que quisessem garantir um filho com gens superiores, a solução seria a clonagem por encomenda. Os protótipos dessa clonagem seriam pessoas de saúde perfeita, inteligência acima da média, aparência maravilhosa. O que mais um pai pode querer para o seu filho? Além do mais, se por um azar  tivessem algum problema de saúde, quando adultos teriam acesso mais fácil a transplantes.
Dou uma risada irônica, pensando na conversa com o médico hoje de manhã.
- Seus pais estavam loucos por mais um filho. Sua mãe não tinha mais óvulos. Não fizeram isso por mal...
Poderiam ter ficado só comigo – penso. Assim, eu não estaria nessa encrenca.
Mas não digo nada. A chuva começa a cair lá fora, violentamente. Tia Judite pega a minha mão:
- Agora vamos falar a sério, minha querida. Você está precisando de dinheiro. Não está?

Uma hora mais tarde, quando saio do apartamento da minha tia, nossos problemas financeiros estão resolvidos – pelo menos, por alguns meses. Mas Afonso não precisa saber.
Na clínica, enquanto meu irmão faz a terapia ocupacional, o neurologista me mostra o resultado dos novos exames. Não é nada definitivo. Mas a irritabilidade e os tremores constantes podem ser os primeiros sintomas da demência senil. Afonso deve ficar em observação.

Geraldo Prata – dizem – além de outras inúmeras qualidades, é um cavalheiro. Mandou uma limusine nos buscar, na porta da clínica.
Dou graças a Deus. A limusine, com o compartimento isolado para os passageiros, elimina qualquer possibilidade de briga com o motorista – um esporte ao qual Afonso vem se dedicando com afinco, ultimamente. Além disso, o conforto desse imenso carro é bem-vindo: da cidade até a casa de Geraldo, num subúrbio elegante, temos pelo menos uma hora de viagem.
- Veja só, Glória – comenta Afonso, animado. – Esse lugar tem até televisão...
- Por favor, Afonso, não ligue. Estou morrendo de dor de cabeça.
- E um bar. Uísque. Gelo.
- Nem chegue perto disso! Está louco?
Ele se deixa cair nas almofadas do carro, desanimado:
- Por que nunca posso beber?
- Você é adulto, Afonso. Sabe muito bem porque não.
- E quando eu for sair com o pessoal do grupo? Não vou nem fumar um baseado?
Suspiro:
- Faça o que você quiser, tá? Só não esqueça que quem paga os pratos quebrados, depois, sou eu.
De vez em quando Afonso se rebela, faz coisas sem me avisar. Quantas vezes acordei no meio da noite, e ele não estava no quarto? Telefonava para todos os seus amigos. Uma vez, cheguei até a chamar a polícia.
Ele gosta de beber, mesmo sabendo que a bebida é incompatível com seus remédios. Há dois anos, chegou a arrumar uma namorada – uma menina completamente desmiolada, que não entendia a doença do meu irmão, e achava lindo sair com alguém tão exótico.
Como eu odiava aquela vagabunda. Ainda bem que sumiu.
Afonso está pensativo:
- Esse sujeito... o Geraldo Prata...
- Que tem?
- Ele é muito parecido comigo? Hoje em dia?
- Ele é mais velho que você.
Afonso fica calado por alguns minutos. Depois, de repente, dá uma risada:
- Espero que ele não fique decepcionado comigo. Pelo menos, estou bem melhor do que o Geraldinho.
- Geraldinho? Que história é essa, Afonso?
- Lembra na segunda-feira retrasada? Aquele dia em que você foi ao escritório do advogado, no centro?
- Lembro.
- Como você estava demorando muito na sala dele, resolvi dar uma volta pela rua.
- Afonso! Eu te proibi de fazer isso!
Ele me olha com aqueles seus estranhos olhos verdes:
- Pois é, maninha. Mas nem tudo que você diz eu faço. Algumas vezes tomo as decisões sozinho, sabe? Às vezes eu tenho algumas vontades... faço coisas... tenho idéias... que você não pode controlar.
Desconcertada, olho para o chão do carro. Ele continua:
- Bem, fui dar uma volta. Claro, o centro da cidade é sujo, contaminado, perigoso – tudo aquilo que você diz. Mas é divertido, também.
- Francamente...
- Eu estava andando, quando de repente vi uma aglomeração em torno de um sujeito. Um flautista. Ele tocava muito bem, apesar de aleijado.
- Aleijado?
- Tetraplégico.
- Espero que você tenha apreciado o concerto.
- Não parei para ouvir a música. Parei por causa da placa.
- Que placa?
- A placa no pescoço dele. Dizia assim: “Eu sou uma cópia. Geraldinho da Paraíba, tenho vinte e cinco anos, sou clone do Geraldo Prata”.
Fico em silêncio. Não sei o que dizer. Afonso continua:
- Por isso tinha tanto talento musical. Puxou o pai... ou seria irmão? Como é que a gente diz? Bem, seja como for, o sujeito parecia ter uns setenta anos. Era todo torto.
- Como você sabe que esse sujeito era mesmo clone do Geraldo Prata? Ele pode ter inventado.
- Eu sei – replica meu irmão – porque quando ele parou de tocar, olhou para mim e perguntou se eu também era. Um clone sempre reconhece o outro. Não interessa se o sujeito bateu a cara num poste, fez operação plástica, ficou desfigurado...
Fico quieta, digerindo a informação. Será possível?
- Fiquei conversando com ele. Foi muito engraçado. Somos duas versões diferentes do mesmo cara – uma completamente estragada, outra começando a estragar.
Olho para a sua perna: o tremor parece incontrolável.
- Ele é da sexta fornada.
- Não é possível! Eles chegaram à sexta? Eu tinha ouvido falar até da quinta...
- Sexta. O Geraldinho era a cópia da cópia da cópia da cópia da cópia. Não é divertido? Uma espécie de xerox apagado. Foi aí que eles resolveram parar. Os bebês já nasciam com problemas graves. Naturalmente, esses clones também eram mais baratinhos... Os pais do Geraldinho eram pessoas simples. Gastaram todo dinheiro tratando do filho, até ele ter de ir esmolar nas ruas.
Antes que eu possa me controlar, um som parecido com o de um soluço sai de minha garganta. Afonso me olha, surpreso:
- Ei, que é isso? Está deprimida? Eu  não fiquei deprimido – Continuo muda, e ele me puxa para si, carinhoso: - O que é isso, maninha? Você não foi sempre durona? Forte? – Me aperta contra o seu corpo, acaricia meus cabelos e sussurra no meu ouvido: - É tudo um problema de grana. Grana. A gente vai continuar brigando, até ganhar uma puta grana desses caras.
- Isso – respondo, também aos cochichos. – Vamos ganhar uma puta grana. Não essa porcaria de pensão que eles pagam para a gente.
Ficamos em silêncio, abraçados. De repente, meu irmão pergunta:
- Mas e o Geraldinho, hem? O que vai acontecer com ele?

A tempestade já parou quando chegamos à casa de Geraldo Prata. Quase não há mais nuvens no céu, e embora já tenha escurecido, o céu está limpo e estrelado. A casa é térrea, rodeada por palmeiras. Ao lado, fica uma piscina toda azul e iluminada.
- Depois que a gente ganhar o processo – diz Afonso – vamos morar num lugar desses. - Parece animado. Quase alegre.
- Seu Geraldo está esperando na biblioteca – avisa a mulher que vem abrir a porta. Percorremos uma série de salas luxuosas, decoradas com um bom-gosto minimalista, mas visivelmente caro.
Antes de chegar à biblioteca, passamos por um pequeno estúdio de gravação. Geraldo é um  músico famoso, respeitado pela crítica e conhecido no país inteiro. Na biblioteca, um dos seus últimos CDs está tocando baixo. Ele já está nos esperando. De pé, bebe um uísque com gelo.
Vira-se para nós, e levo um choque.
Meu irmão está à minha frente: um Afonso mais corpulento e saudável, com uma aura de satisfação que nunca verei no seu rosto. Um homem bonito: meu irmão sempre foi bonito. Mais velho do que ele jamais será.
- Bom que vocês chegaram – diz ele.
Charmoso, encantador, oferece uma bebida. Fica desolado ao saber que Afonso não pode beber. Comenta a mudança do tempo: as grandes janelas da sua biblioteca estão abertas, e um ar puro, com perfume de terra molhada, circula pela sala. Depois quer saber da nossa vida: aonde moramos? O que fazemos? Como está a saúde de Afonso? Quem paga pelo seu tratamento médico?
Constrangida, vou respondendo. Meu irmão não diz nada: parece distraído, observando os quadros da biblioteca. Vai até uma cômoda, examina gravemente uma estatueta. Não presta atenção à conversa.
Geraldo Prata fica desolado ao saber que nossos pais morreram há três anos, num acidente:
- Deve ser muito duro para você. Quer dizer... tanta responsabilidade. Ele deve dar muito trabalho.
- Não é trabalho. Ele é meu irmão.
Ele sorri com simpatia:
- Sim. Claro. Também tenho irmãos... – Desvia os olhos, ajeita um cinzeiro à sua frente. Parece embaraçado: - Você deve estar se perguntando porque os convidei para vir aqui.
- É – reconheço, em voz neutra. – A gente fica curiosa.
Ele brinca um pouco mais com o cinzeiro. Por fim, desembucha:
- Já conversei com centenas de pessoas... meus clones, enfim. Acho que elas merecem ouvir uma explicação.
Não digo nada. Se ele pensa que eu vou tornar as coisas mais fáceis para ele, está enganado.
- Veja bem, eu mesmo não me considero culpado. Entrei nessa história por idealismo. Claro – pigarreia – também houve vantagens materiais. Mas, para mim, o principal atrativo era outro. Você sabe, sempre fui apaixonado pela ciência. Li tudo sobre a clonagem. Achava um assunto fascinante. Acompanhei as primeiras experiências. Vi os bebês. Pareciam perfeitos.
“E então o laboratório me fez a proposta. Dez bebês. Apenas dez bebês... Confesso que fiquei envaidecido com a idéia. É disso que eu me arrependo até hoje – dessa vaidade estúpida... Embora de certa forma, Glória, eu já tenha sido castigado. É horrível pensar que ajudei a criar essa situação.
“Aceitei a proposta. Parecia tão inofensiva... Não sei se você sabe, mas eles nem sequer venderam os clones da... primeira geração. Foram implantados em mães voluntárias, selecionadas em clínicas de fertilização. Gente que esperava há anos por um filho. Eu achei que estava ajudando estas pessoas.
“E depois... Honestamente, naquele momento eu estava numa situação financeira difícil. Tinha apostado todo meu dinheiro num projeto que não deu certo. E precisava de fundos para o meu próximo disco, uma peça inteiramente experimental...
- Quanto eles pagaram?
A voz do meu irmão vem lá do fundo da sala. Ele nem sequer se vira para Geraldo; continua examinando a estatueta.
Geraldo olha para o chão. Menciona uma quantia. Meu irmão – sempre de costas para ele – aprova, gravemente:
- Uma bela grana, na época.
O músico apressa-se em continuar:
- Juro, não foi só pelo dinheiro. Eu achava que estava ajudando a ciência. Fui muito ingênuo. É a velha história: devia ter lido o contrato com mais atenção. As famosas letras miúdas. Nem consultei um advogado... Aquele contrato de fato limitava a quantidade de clones diretamente copiados do meu DNA. Mas não proibia o laboratório de fazer...
- A cópia da cópia – diz meu irmão, com voz espectral, do outro lado da sala.
- Exatamente.
Há um momento de silêncio. Só o barulho dos grilos pode ser ouvido, lá no jardim. Me remexo na cadeira, e faço uma pergunta:
- Sabe de uma coisa, Geraldo? Que eles tivessem feito a cópia da cópia, eu até entendo. Faz parte da lógica do mercado. Mas e a cópia da cópia da cópia? E a cópia da cópia da cópia da cópia? Eles não pensaram nos problemas que iam causar? Na perda do DNA mitocondrial? Por que continuar a produzir gerações e mais gerações de clones, que ficariam cada vez mais enfraquecidos? É isso que eu não entendo.
- Era um problema estratégico. Uma vez, um dos executivos do Departamento de Marketing deles me explicou a questão.– diz Geraldo. Pigarreia: - Era tudo uma questão de faixas de preço.
- O quê?
- Como você diz, eles tinham consciência de que as gerações de clone ficariam cada vez mais fracas. Por isso mesmo, seriam mais baratas, entende? Quando você compra um artigo copiado, inferior, paga menos. Assim eles atingiriam mais gente. Queriam popularizar o produto. Ganhar em escala. O especialista me disse que chegariam até a classe D.
- E chegaram. – diz Afonso. – Veja o caso do Geraldinho.
Sem que percebêssemos, ele atravessou a sala, e agora está postado em frente à escrivaninha de Geraldo, de pé, com as mãos apoiadas nela.
- Quem é o Geraldinho? – pergunta nosso anfitrião.
- Um clone seu. Sexta fornada. A cópia da cópia da cópia da cópia da cópia.
- Ah – diz o músico, vagamente embaraçado. – Preciso trazer ele aqui também, algum dia. – Reapruma-se na cadeira. – Aos poucos, venho conversando com todos os meus clones. Desde a primeira geração. Quero que me conheçam. Quero saber quem são essas pessoas, conhecer seus dramas, ajudar, na medida do possível... Testemunhei em todos os julgamentos a favor dos queixosos. Em vários casos, conseguimos indenização. Tenho inclusive o projeto de uma fundação para ajudar essas pessoas. E por outro lado – seu rosto adquire um ar grave – acho que elas têm direito de me conhecer. É por isso que eu chamei você hoje aqui, Afonso. Para pedir desculpas – a você e a sua irmã.
Afonso não tira os olhos de Geraldo. Agacha-se à frente da escrivaninha, apoia os cotovelos em sua superfície. Dá uma risadinha:
- Desculpas, Geraldo?
- Desculpas. – o outro responde, gravemente.
- Você pede desculpas, eu aceito, e fica tudo por isso mesmo?
Geraldo Prata desvia os olhos, embaraçado. Imagino que ele esteja acostumado a clones mais dóceis que meu irmão...
- Não, Afonso – responde. – Eu não acho que fique tudo certo. Estou só fazendo uma tentativa....
O resto da frase fica no ar. Meu irmão está rindo. Ri alto, até ficar com lágrimas nos olhos. Finalmente, consegue falar, com dificuldade:
- Olha só isso, Glória! Ele está pedindo desculpas! Mas, Geraldo, desculpas pra quê? Deus não pede desculpas para ninguém. Ou pede? – Vira-se para mim, num movimento rápido: - Já ouviu falar que Deus pedisse desculpas para alguém, maninha?
- Não – respondo, com voz neutra. De cabeça baixa, com o rabo do olho, vou espiando a reação de Geraldo. O homem está nervoso. Vou deixá-lo sofrer um pouco mais.
– NÃO! Está vendo, Geraldo? Você  é Deus. Você me criou à Sua imagem e semelhança. Você é o molde, eu sou a cópia. Igualzinho à Bíblia, lembra? “No começo, era o Verbo”. “No começo, era o Geraldo”.
Gotas de suor começam a aparecer no rosto do homem.
- Não é nada disso, Afonso – gagueja. - Nunca tive essa pretensão...
- Não fique envergonhado! Qual é o problema? Eu também faria algumas cópias minhas, se eu pudesse. Pena que já existam muitas no mercado... Não é, Glória?
- É – confirmo.
- Mas sabe o que eu quero mesmo, Geraldo? – diz Afonso, dando um súbito murro na mesa. - Quero que o Geraldinho venha aqui. Logo. Quer o endereço dele? Eu peguei. É numa favela. Mande esse carro bonito aí na porta buscar ele. Agora.
Ele está vermelho, seu corpo inteiro treme. Olho em volta. Não há ninguém: só nós três.
- Por quê? – pergunta o músico.
- Para que você possa ver ele, Geraldo. Ver o resultado da sua brincadeira de Deus. Imagine, Geraldo, um boneco numa vitrine, todo limpo, bonito, de roupinha nova... Esse boneco é você. Agora imagine esse boneco depois que uma criança louca brincou com ele. Amassado. Rasgado. O pescoço torto, os membros fora de prumo, um olho vidrado... Esse é o Geraldinho, Geraldo. A sua cópia. Um ser criado à sua imagem e semelhança. Sabe por que? Porque um dia você acordou e resolveu brincar de Deus! É por isso que o Geraldinho existe.
O músico, de cabeça baixa, diz:
- Eu não quis brincar de Deus, Afonso.
- Como não, Geraldo? Você quis sim. Mas existe uma diferença importante. Deus sobrevive às suas criaturas. Você não vai sobreviver.
- Não vou por que?
-  Porque nós vamos te matar. Nós, os clones.
Assustada, dou um grito. Pulo à frente do meu irmão. Afonso sorri:
- Calma, Glória. Não vai ser aqui. Nem agora. Essa casa está cheia de gente, e eu não quero ir pra cadeia. Mas vai acabar acontecendo, Geraldo. Mais cedo ou mais tarde. Não se iluda. Aqui nessa casa, no seu camarim, numa praia deserta... Mais cedo ou mais tarde, algum de nós vai te matar. Ou você pensa que está comprando a nossa lealdade, com toda essa farsa de limusine, uísque, essa merda toda?
- Afonso!
- Eu, por exemplo, não tenho muito tempo à frente, mas posso até conseguir. Sou habilidoso. Persistente. Nem sempre a Glória consegue me vigiar. Bem que ela tenta....
“E se não for eu – se eu não tiver tempo – vai ser outro. Quantos desses clones bonzinhos que você recebe aqui não gostariam de te assassinar, hem? Quantos? Mesmo cópias têm vontade própria. Por mais que você seja generoso. Por mais que os leve pra cama, às vezes.”
O músico levanta a cabeça, como se tivesse levado uma chicotada. Afonso ri baixinho:
 - Levou, não foi? Eu sabia. Era muita tentação, você não pôde resistir.
Geraldo se deixa cair numa cadeira. Cobre o rosto com as mãos. Afonso prossegue, imperturbável:
- Qualquer dia, um deles vai te matar. Quem tiver mais tempo, quem for mais esperto, ou mais forte... Cuidado! Nem todos estão fracos como eu. É só uma questão de tempo, Geraldo. Mais cedo ou mais tarde, uma das suas criaturas vai te assassinar. Por uma questão de justiça poética, eu preferia que fosse o Geraldinho. Mas acho que não vai dar.
O artista está quieto, cabisbaixo. Afonso afasta-se e olha para o homem como se fosse tirar uma fotografia: minuciosamente, de todos os ângulos. Depois, volta-se para mim e diz:
- Vamos embora, Glória. Esse lugar está fedendo.

A viagem de volta é longa e silenciosa. Chegamos em casa cansados: foi um longo dia. Afonso recusa o jantar. Só então pergunto:
- Você estava falando sério?
- Sobre o Geraldo? – Levanta-se, vai até o armário da sala e pega uma garrafa. Não me sinto com forças para protestar. Ele enche um copo pequeno, senta em frente a mim e só então responde: - Se eu te disser que estava, você vai pegar no meu pé. Se disser que era brincadeira, não vai acreditar. Então, melhor nem dizer nada.
Bebe o conteúdo do copo de  um gole só, coloca a mão no meu ombro:
- Vamos pra cama.
Com um suspiro, sigo para o meu quarto. E ele vai para o seu, lentamente.
Me dispo lentamente, apago as luzes e deslizo para baixo das cobertas. E penso no que Tia Judite me disse hoje.
O que me preocupa não são os anos que faltam até que meu irmão afunde. O que me preocupa é o que virá depois – os anos sem Afonso. Nunca me imaginei sem meu irmão. Toda minha vida foi determinada por ele. Depois que ele se for, não terei o que fazer.
Hoje em dia, já não me restam dúvidas.
Eu também sou uma cópia.

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