As aventuras de um alien adolescente.
ESTRANHO SER

Quando ela me encontrar no escuro
terá medo de meus olhos amarelos?
Ou gostará do brilho puro
destas escamas ao entardecer?

Poesia, de novo. Poesia ruim. É um desvio, causado talvez pela longa convivência com humanos.

Quando esta nave voltar,
cansada de vagar pelas galáxias...

Ou talvez a culpa seja dos milhões de livros que meu "pai" deixou para trás neste escritório. Parece que gostava de poesia; mas hoje não fala mais no assunto, e trabalha como "publicitário".
Como parte da minha experiência na Terra, fui visitá-lo várias vezes no apartamento onde mora. Ele insistia para que eu fosse, não sei por quê. Quando chegava lá, sempre estava com uma nova namorada e não me dava atenção nenhuma: ficava conversando com a moça sobre negócios.
As namoradas do meu "pai" mudavam, mas eram todas parecidas. Tinham formas do gênero considerado agradável nesse planeta - ou seja, redondas em algumas partes e afuniladas em outras, de acordo com certa lógica que nunca compreendi. Todas eram suas colegas de trabalho, o que significava que discutiam interminavelmente "campanhas", "marketing" e "público-alvo".
Tenho um gigantesco Banco de Dados armazenado num chip no lóbulo da minha orelha direita. Poderia facilmente consultá-lo para entender o significado desses termos cabalísticos. Mas para ser franco nunca me interessei. Minhas ordens são para armazenar informações, não para digeri-las.
Enquanto meu "pai" e suas namoradas conversavam, eu me entediava. Aliás foi numa dessas ocasiões que me apossei da minha forma humana.
Me lembro bem desse dia, há doze "anos" (ano é uma das medidas de tempo que eles usam por aqui; baseada, segundo aprendi, na rotação do seu Sol). Meus "pais" (são dois; há também um indivíduo de outro sexo, da qual falarei mais tarde) já estavam separados, ou seja, cada um morava num local diferente. Há algumas décadas, o padrão moral desse planeta mandava que os reprodutores da espécie coabitassem no mesmo espaço pela vida toda - com que finalidade, nunca entendi. Talvez para cuidar dos filhos. Eles não têm criadouros coletivos como em nosso planeta. É uma deficiência lamentável, que demonstra mais uma vez a inferioridade da sua civilização.
Seja como for, essa ridícula tradição de moradia conjunta já se abrandou. Meus "pais" se separaram, portanto, quando eu tinha quatro anos. Fui morar com o indivíduo feminino, do qual falarei mais tarde. Mas a parte masculina do casal (pesquisei com cuidado o primitivo mecanismo de reprodução dessa espécie, e mandei um relatório sobre o assunto assim que me foi possível. Por incrível que pareça, exige dois indivíduos de sexo diferente!) insistia em me ver pelo menos duas vezes por "mês" (mês é uma subdivisão do ano).
Quando entrei naquele restaurante, naquela noite, e vi o pequeno filhote do qual devia me apoderar, senti uma certa empatia com ele. Pobre garoto!
Estava sentado à mesa com o pai e uma de suas namoradas. Afinei minhas antenas para ouvir a conversa. Estar invisível, naturalmente, facilitava as coisas.
O que eles diziam:
- A Criação não sabe lidar com esse cliente....
- Precisamos de um novo relatório de recall...
- Mas a culpa é de quem definiu o target...
- A mídia também trabalhou muito mal...
Coisas assim, incompreensíveis. O pobre garoto, distraído, olhava para sua sopa - um líquido nojento que, em nosso planeta, não daríamos nem a um karlog semi-morto. Sempre me exalto quando me lembro daquela beberagem...
De vez em quando o pai interrompia seu discurso e lhe dizia, em tom autoritário, para tomar imediatamente a lavagem. Em seguida se esquecia do filho. Por fim este fez um barquinho com um palito e guardanapo, e deslanchou-o no prato de sopa. Cantarolava, se não me engano, uma musiquinha assim:

Sopinha querida...
Sopinha querida...
Vou nadar em você...

Confesso que até ali tinha certos escrúpulos de consciência em sugar o cérebro do garoto e me implantar em seu corpo. Mas aquela cena me convenceu de que estava lhe fazendo um favor.
Entrei imediatamente em ação.

A Patrícia acha que estou maluca. Diz que qualquer dia desses a tia do carinha - ou a sua mãe esquisita, que também vive trancada em casa - vai me ver com os binóculos e chamar a polícia.
Duvido. Não é crime vigiar a casa de ninguém, ainda mais de longe. Tem gente que vive disso, tá ligada? Detetives, por exemplo. Além do mais, esse pessoal é meu vizinho, e todo cidadão tem direito de olhar pela sua própria janela!
Pertenço a um grupo da Internet - os Observadores. (Eu preferia que fossem The Watchers, acho mais irado em inglês. Mas aí veio um chato qualquer - diz que é professor lá no Paraná, deve ter uns cem anos - dizendo que era... como é que se chama? colonialismo. Então ficou Observadores mesmo.)
Esse grupo é muito sério. Não somos um bando de malucos desses que ficam por aí lendo livros da Anne Rice, essas baboseiras. Trocamos informações de casos reais, observados por testemunhas confiáveis. Estamos sempre procurando novos casos, também.
"Que nem Buffy, a Caçadora de Vampiros?", perguntou Patrícia, que é minha melhor amiga mas não se liga muito nesses fenômenos.
- É por aí - disse eu, vagamente. A comparação era razoável, servia para ela entender. - Assim que esse cara mudou pra cá eu fiquei de olho. Vive trancado no quarto, só sai à noite pra dar uma voltinha no jardim, e tão encasacado que não consigo ver a cara dele. Isso em pleno verão. Não é estranho? Só sei que é um cara da nossa idade porque a empregada deles contou pra nossa empregada. Disse também que o Miguel - o nome dele é Miguel - quase nunca sai do quarto.
- Tá, mas não quer dizer que...
- Vampiros são um fenômeno real, testemunhado em vários países por observadores sérios. - disse eu, já sem muita paciência - Provavelmente resultam de mutações genéticas.
Não disse para a Pati, mas na verdade não estou certa se o moleque da casa ao lado é um vampiro. É só a hipótese mais provável.
Senão vejamos, ele nunca sai de dia. Nem vai pra escola desde que chegou no bairro, há um ano. Tem alguma coisa muito estranha aí. Mas existem outras hipóteses: por exemplo, ele pode ser uma aberração genética, um monstro malformado. E aí a família dele esconde o coitado só de vergonha. Que coisa triste.
Ah, não posso me emocionar. A gente perde a objetividade científica. De vez em quando vejo o vulto dele passando pela janela; mas como o quarto está sempre escuro, não sei que aparência tem. Fico imaginando, sei lá, calombos multicoloridos. Ou então dois caninos bem afiados. Um troço assim.
Um dia tomo coragem e vou lá, bater na porta da casa dele. Sem esquecer, é claro, o crucifixo. E uma boa dose de gás lacrimogêneo.

- É depressão mesmo, doutor?
- Acredito que sim. Os adolescentes são muito sujeitos a depressão.
- O senhor sabe o problema da mãe dele....
- Saberia, se a senhora fizesse o favor de trazê-la aqui.
- Impossível, doutor. Minha irmã está trancada no banheiro há dez anos.
- Trancada? Cem por cento trancada?
- Por isso fui morar lá. Começou quando o menino ainda era pequeno e o marido largou ela - toda aquela história que já contei pro senhor. Minha irmã passava cada vez mais tempo trancada no banheiro. Um dia eu fui lá e o menino não tinha comido nada o dia todo. Me lembro até hoje: o coitado estava sentado em frente à tevê, mastigando um tabletinho de caldo de carne. Era a única coisa que tinha pra comer em casa...
- Meu Deus.
- Por aí o senhor vê. Mas ele nem reclamava. Sempre foi um menino muito bonzinho, quieto, não dava trabalho.
- E o quê a senhora fez?
- No dia seguinte mudei pra lá.
- E a relação dele com o pai, como é?
- Eles se vêem muito pouco. Antigamente meu cunhado se encontrava com o garoto a cada quinze dias. Hoje o menino diz que não quer mais ver o pai.
- Por quê?
- Diz que não tem mais nada pra fazer lá. Ele não é muito de brigar, discutir. Qualquer coisa se tranca no quarto e fica lá, horas e horas...
- Está bem, minha senhora. Mas essa já é a segunda visita que a senhora me faz. Acho ótima sua iniciativa; mas veja bem, o que eu preciso agora é de falar pessoalmente com o seu sobrinho.
- Ih, doutor... Vai ser difícil... Ele não sai de casa.
- Então talvez eu possa visitá-lo.

Cabelos cor de fogo
Olhos verdes cor de mar
Tua boca evoca metáforas
Fora do sistema solar

O que diria meu professor de Português, se visse esses versos? Ficaria horrorizado, eu sei. Parei de ir à "escola" (local de formação dos jovens terráqueos, de onde escapam para jogar jogos eletrônicos ou fumar um vegetal malcheiroso) há um ano. Me entediava com as coisas elementares que me ensinavam ali. As aulas de Física e Matemática, por exemplo, eram de uma pobreza e falta de imaginação que fariam as criancinhas do nosso planeta bocejarem de tédio. Eu me sentia ridículo, "aprendendo" aquelas noções atrasadas e tacanhas da tal física newtoniana.
Já o Português não era tão ruim, particularmente na parte de "Literatura". (Literatura: forma de expressão artística baseada na palavra, a qual por sua vez é a unidade básica de comunicação entre os terráqueos). Achei as narrativas um tanto monótonas, mas a "poesia" era interessante. Trata-se de uma forma de arte que brinca com os sons e significados das palavras.
Salvo esses momentos, me entediava bastante na escola. Um belo dia resolvi cair fora. Não tinha mais nada a fazer ali. O fim de minha viagem estava se aproximando. E não ia aprender mais nada que interessasse aos organizadores da missão naquele lugar deprimente, cercado por uma escória de adolescentes barulhentos.
Já andara um pouco pelo mundo, fizera algumas viagens (Santos, Piracicaba, e uma vez até o Rio de Janeiro com meu pai). Não via porque continuar vagando pelas ruas, vendo e ouvindo coisas já conhecidas. Por isso resolvi ficar em casa, onde é mais repousante. E no meu quarto, onde minha "tia" (grau de parentesco entre os humanóides que nunca consegui aferir corretamente) não pode me amolar. Claro que minha tia pensa que estou repetindo a história da minha "mãe".
Mãe é o ser feminino (eles só tem dois sexos, feminino e masculino) encarregado da reprodução nesse planeta. Ou, pelo menos, da parte mais pesada da reprodução.
Minha mãe - ou a mãe da forma humana da qual me apossei - desenvolveu sintomas estranhos depois da separação. O principal deles consiste em se trancar no local da casa nomeado "banheiro". Esse local é reservado à higiene e a certas repelentes funções fisiológicas que também levei muito tempo para entender.
Não sei o que minha mãe (por comodidade, uso a nomenclatura terráquea) faz no banheiro. No começo ela só se trancava lá depois da refeição denominada "almoço". Depois foi passando cada vez mais tempo ali. E mesmo fora do banheiro, parecia abatida; mal respondia às minhas perguntas.
Se eu tivesse sentimentos humanos, teria ficado triste com aquela situação. Felizmente não tinha.
Ela também não se dedicava mais à compra, preparo e processamento de comida. Comecei a me alimentar de qualquer coisa que encontrasse na despensa, incluindo alimentos crus e indigestos que eu, na minha forma humana, tinha dificuldade em digerir. Enfim, um problema. Felizmente, nessa época, minha tia apareceu e tomou conta de tudo. Só não conseguiu tirar minha mãe do banheiro.
Minha tia vive tentando atraí-la para fora desse recinto. Diz que ela precisa ver um psiquiatra - pelo que entendi, um especialista em curar mentes perturbadas, através de remédios e conversa mole. Poções e palavras mágicas destituídas de qualquer sentido, com certeza. Não sei como isso possa ajudar uma pessoa cujo cérebro está se deteriorando.
Minha tia também fala em internar minha mãe; ou seja, levá-la para um lugar cheio de pessoas cuja substância cerebral também está virando massinha de modelar. Como minha mãe vai melhorar num lugar desses?
Sempre achei que a melhor política é deixá-la em paz no seu banheiro. E de certa forma, minha tia acabou concordando comigo. Uma vez por dia entra no banheiro, lava e arruma minha mãe, leva-lhe as refeições, conversa com ela, arruma seu cabelo. Minha mãe está bem. Mas parece que o tal psiquiatra não concorda com isso.
Outro dia fiquei sabendo que ele esteve aqui e visitou mamãe. Depois, ele e minha tia tiveram uma longa conversa.

- Muito bem, minha senhora. Concordo com sua proposta. É fora das normas, mas... posso fazer uma exceção, só dessa vez.
- Obrigada, doutor. Eu sabia que o senhor entenderia a situação! Já falei com meu cunhado. Ele concordou em pagar o tratamento.
- Ótimo. Então eu venho três vezes por semana, às quatro da tarde, conversar com sua irmã. Mas ela precisa tomar a medicação...
- Eu me encarrego disso. O senhor achou que ela está muito mal?
- Menos do que eu pensava. É muito simples, minha senhora. Sua irmã não é louca. Morar no banheiro foi uma opção consciente dela, considerando o rumo que sua vida tomara. Quando eu conseguir lhe provar que o mundo não é um lugar tão ruim, ela sai daquele banheiro.
- Ótimo, doutor! E o meu sobrinho? Será que o senhor consegue fazer ele sair do quarto?

Recebi uma visita do tal psiquiatra. Confesso que fiz juízo precipitado dele. Nem todos os especialistas em massinha cerebral são tão ruins.
Ele não me forçou a nada, só perguntou porque eu não saía mais do quarto. E ajuntou, respeitosamente:
- Com certeza você tem suas razões.
Essa abordagem me agradou bastante. Freqüentemente encontro criaturas terráqueas intrometidas e desrespeitosas, que acham que sabem o que é melhor para os outros - particularmente para os terráqueos mais jovens. Esse psiquiatra, pelo visto, não é assim.
Respondi-lhe com as evasivas habituais. Ele me ouviu com atenção; em seguida observou que minhas discordâncias com a física newtoniana não lhe pareciam razão suficiente para que me trancasse num quarto, aos dezessete anos. Insinuou que eu estava deprimido. Argumentei pela lógica:
- Eu pareço deprimido?
Ele concedeu que, de fato, eu não tinha essa aparência. A conversa prosseguiu no mesmo tom agradável; ele perguntou dos meus interesses, e fui forçado a confessar que gostava de poesia. Ele disse que nada via de errado ou imoral neste gosto. Contei-lhe então que, na escola, fui chamado de nerd e outros qualificativos deprimentes, simplesmente por mostrar minhas poesias ao professor de Português.
- Isso acontece muito com adolescentes sensíveis como você - disse ele, sorrindo.
Fiquei orgulhoso quando ele disse isso. Imagine só: meu disfarce era tão perfeito, que aquele homem me qualificara, não apenas de adolescente, mas também de "sensível"! Para ele, eu era apenas um exemplar a mais da fauna do seu consultório.
Imagine se ele me visse com a minha real aparência, invisível aos olhos humanos...
Nos despedimos cordialmente e ele prometeu voltar. Não vejo muita finalidade nisso, já que uma conversa realmente sincera é impossível com ele. Como poderia lhe contar que já completei minha missão, vi e armazenei tudo que me interessava, e agora estou apenas esperando que a nave hiperespacial venha me buscar?

Não, ele não é um monstro. Vampiro, talvez.
Preciso telefonar imediatamente para a Pati, contando o que eu vi. Ela não vai acreditar. Ontem à noite, pela primeira vez, ele acendeu a luz do quarto. Estava conversando com um senhor - pai dele, talvez? Mas a empregada diz que o pai não mora com ele... Era um senhor de óculos. Careca. Posso estar enganada, mas achei que tinha cara de médico.
Isso reforçou minha tese da aberração genética.
Só que nesse momento a luz caiu sobre meu vizinho e finalmente pude vê-lo. É um carinha comum. Anda normalmente e, a menos que seja um monstro abaixo da cintura, não há nada de esquisito nele.
Que decepção! Imediatamente corri até o computador e entrei no Observadores. Contei que tinha visto melhor meu vizinho, e que ele não tinha nenhum canino protuberante. Todo mundo me aconselhou a desistir da vigilância e ir observar outras coisas. Eu tinha me enganado, às vezes acontece.
Mas não vou seguir esses conselhos. Enquanto não ver o carinha à luz do sol, não desisto da minha observação. Afinal, ele continua sendo alguém que nunca sai de dia.
Desliguei o computador, peguei minha luneta e voltei ao meu posto na janela. O careca com cara de médico já tinha saído, e o menino tinha apagado a luz. Pensei que estivesse dormindo, ou quem sabe... possibilidade excitante... tivesse saído para morder alguns pescoços.
Em vez disso, aconteceu algo extraordinário: meu objeto de estudo saiu à janela e acenou para mim!
O cara sabe que estou aqui!
Não tive outro remédio senão acenar de volta. Em seguida, postei uma mensagem na sala de chat dos Observadores. Quero que todos saibam o que está acontecendo. Combinei até um sinal para dar, em caso de perigo. Mas não vou desistir da investigação.

O psiquiatra já voltou aqui várias vezes. Sempre começamos a conversa falando de poesia - ele me trouxe, aliás, vários livros de presente. Quando vejo, já estamos falando sobre mim.
Ele é bastante habilidoso, esse analista de massinha. Tem um jeito todo especial para arrancar confidências. Naturalmente, nunca lhe confessarei minha verdadeira identidade, nem minha missão na Terra e seu atual status. Ele não entenderia. Talvez até tentasse me trancafiar num dos seus depósitos de malucos. De forma que, depois de contar, eu seria obrigado a matá-lo.
Pois é, acabei adquirindo algumas fraquezas humanas. Por exemplo, embora esse professor seja apenas mais um espécime ridículo e lamentável da patética espécie que domina esse planeta; embora ele não vá fazer nenhuma falta ao Universo e nem mesmo a essa galáxiazinha de segunda.... eu não gostaria de matá-lo. Para usar uma expressão humana de difícil compreensão no meu planeta, me afeiçoei a ele. Tenho que confessar, aliás, que alimento sentimentos análogos em relação aos dois espécimes femininos com quem moro. É muito estranho. Jamais imaginei que a vida na Terra pudesse me impregnar com semelhantes baboseiras. Ainda bem que logo serei transferido.
Também preciso dizer que... hã... alimento alguns sentimentos estranhos em relação a outro espécime, também do sexo feminino, embora mais jovem. É a garota que mora na casa ao lado. Há tempos percebi que ela fica me espiando com um aparelho ótico primitivo. Como tenho uma engenhoca semelhante, denominada "binóculo", também me dedico a espiá-la de dia, por trás das persianas.
Como já disse, nunca entendi as arbitrárias normas estéticas que regulam a atração entre os sexos, nesse planeta. Para meu gosto, entretanto, devo dizer que considero essa garota bastante... agradável de ser contemplada. Ela tem cabelos de uma cor estranha, chamejante - o que aqui é chamado, acredito, de "ruivo". Os olhos apresentam uma coloração muito freqüente em espécies vegetais como o alface ou a abobrinha, mas rara em humanos. Não sei porque, mas considero sua forma externa bastante... satisfatória. Outro dia a vi dando risada no telefone e julguei a apresentação dos seus dentes... hã... agradável... "bonita", como eles dizem. O som da sua voz também me agrada.
Segunda-feira, tive uma experiência extraordinária com essa garota. Era à tardezinha e ela provavelmente tinha chegado da escola. Estava se preparando para tomar banho, acho.
Nesse planeta existe um estranho tabu quanto à exibição do corpo em sua integralidade. Por isso, as pessoas costumam colocar, por cima dele, peças de "tecido" chamadas "roupas". Elas nunca saem à rua sem esses apetrechos, e os utilizam até dentro de casa.
Entendo que esse é um conceito de difícil apreensão para os habitantes do meu planeta. Mas apesar da aparente futilidade e absurdo desse comportamento, ele tem pelo menos uma justificativa: os corpos humanos, fracos e disfuncionais, são sensíveis às alterações da temperatura. Por isso eles se "vestem".
Mas o que aquela garota estava fazendo era o processo contrário; estava se "despindo". Tirou todas as roupas, e então pude contemplar o seu corpo à vontade, com todos os seus apêndices e relevos... Comecei a sentir algo esquisito... nem sei como definir. Era uma estranha sensação concomitante de prazer e incômodo, da qual participavam simultaneamente minha mente e meu corpo - este último, aliás, com bastante entusiasmo. Essas sensações eram tão fortes que desejei ir à casa dela, apenas para tocar seu corpo. Não consigo entender de onde me veio uma idéia tão absurda. Não tem o menor sentido.
Quando ela finalmente saiu do quarto, demorei vários minutos para voltar à minha tranqüilidade habitual.
Decididamente, espero que minha transferência aconteça em breve. Esse é um dos planetas mais estranhos que já visitei, e talvez minha permanência aqui tenha se estendido além do tempo recomendável.

- Doutor, desculpe telefonar assim. Mas aconteceu uma coisa maravilhosa, tenho que contar ao senhor!
- Que foi?
- Hoje minha irmã saiu do banheiro e almoçou conosco! Imagine: ficou uma hora inteira na mesa, antes de voltar para lá!
- Que bom!
- Doutor, o senhor é um mágico! Sabe, vários médicos já viram minha irmã... e nunca conseguimos um resultado tão bom.
- Provavelmente porque os outros médicos a tratavam como idiota.
- Como assim?
- Nada, deixe pra lá. Vamos ver como sua irmã evolui. Se essas saídas se repetirem, podemos continuar a terapia em outro lugar... na sala, por exemplo.
- O senhor acha que ela vai se sentir melhor em outro ambiente?
- Não apenas isso, mas o chão daquele banheiro é frio pra chuchu. E pra sentar no bidê, é tão incômodo...
- Desculpe, doutor.
- Não é nada, minha senhora. O importante é que sua irmã apresente melhoras.
- E meu sobrinho? O senhor acha que um dia desses ele vai sair de casa?
- Bem...
- É verdade que o caso dele não é tão grave. Conversa, faz as refeições comigo....
- Acho que em breve o convenceremos a sair.

Parei de me comunicar com os Observadores. Eles nunca entenderiam o que está acontecendo. Não compreenderiam minha tentativa de aproximação com o cara ao lado. Estritamente pelo bem da Ciência...
Ontem, passamos a noite inteira "conversando" por gestos. Se eu entendi bem, ele gosta de poesia, tem uma mãe que passa a vida trancada no banheiro, e o pai é... o quê? Essa parte, sinceramente, não entendi. Nunca fui muito boa de mímica.

Continuo conversando três vezes por semana com o analista de massinha. A essa altura, creio que somos "amigos" - um tipo de relacionamento muito interessante cultivado aqui na Terra, mas que por alguma razão nunca consegui estabelecer com ninguém.
Ontem lhe contei porque não quero mais ver meu pai.
Não quero vê-lo porque é um mentiroso. Aos poucos, fui entendendo que tudo em sua vida era mentira. Meu pai mente desde o momento em que acorda até a hora em de dormir. Sua vida é uma farsa. Ele não é nada daquilo que aparenta.
Mas por que alguém faria isso? - perguntariam, perplexas, as pessoas do meu planeta. Por que assumir uma personalidade falsa, que não tem ligação com seu verdadeiro "eu"? Essa é uma pergunta que não sei responder. Venho estudando esse planeta há muitos anos, e nunca entendi as mentiras.
A mentira do meu pai, então, menos ainda.
De certa forma, eu já percebia que mentia. Bastava ver, de um lado, a sua ex-estante cheia de livros de poesia; do outro, a sua conversa sobre dinheiro, dinheiro, dinheiro. Posso ser um extraterrestre, mas sei que poesia e dinheiro não combinam.
Bastava ver suas namoradas, que ele enrolava durante meses e depois dispensava com um pretexto fútil qualquer.
Bastava ouvir nossas conversas, que sempre terminavam quando eu mencionava minha mãe. Não queria ouvir falar do assunto de jeito nenhum. Preferia abrir o livro de cheques e preencher qualquer quantia do que ir até nossa casa e ver o que estava acontecendo.
Tudo indicava que o homem era uma farsa. O que me aborrecia bastante, aliás, porque meu pai - com ou sem aspas - deveria ser uma das minhas principais fontes sobre a realidade terráquea. Se era um mentiroso crônico, como poderia me informar?
Um dia tomei uma decisão, puramente baseada no sexto sentido - ou no décimo-primeiro, se falarmos em termos do nosso planeta. Foi num dos habituais passeios de domingo. Ele me deixou no metrô - tudo para evitar ir até minha casa! - e foi embora no seu carro. Eu, em vez de pegar o metrô, disfarçadamente chamei um táxi e pedi que o seguisse.
O trajeto não durou muito. Ele parou o carro numa movimentada rua do centro da cidade. Àquela altura a noite já tinha caído. Meu pai encontrou-se com outro sujeito que o esperava na porta de um certo estabelecimento.
Notei imediatamente que ele estava mudado. Não que assumisse outra forma física - os humanos não são capazes disso - mas seu jeito de se movimentar mudara, tornando-se mais frenético, movimentado, volúvel. Sua voz também estava diferente. Ele fazia gestos largos e dava risadas escandalosas. Aquele não era o homem que eu conhecia.
Fiquei seguindo-o pela rua inteira, de longe, mas sem perder a pista. Meu pai encontrou vários conhecidos, conversou com eles, entrou em casas noturnas e também num estabelecimento conhecido como "sauna". Nominalmente este lugar deveria servir para que as pessoas tomassem banho e desintoxicassem o corpo, mas pelo que vi ali na porta e cercanias, serve também a outras finalidades.
Enfim, para encurtar a conversa, descobri que meu pai prefere ter relações com pessoas do seu próprio sexo. E daí? perguntariam as pessoas no meu planeta. Qual o problema disso? Francamente, essa é outra coisa que não entendo aqui nesse planeta; mas por alguma razão, esse comportamento é muito malvisto. E meu pai, que é covarde, deve ter tido medo das sanções da sociedade. Em vez de fazer aquilo que lhe agrada abertamente, preferiu construir uma vida falsa, com seu casamento que traumatizou minha mãe, suas namoradas em rodízio... Ele mente todos os dias, vive numa mentira. O único momento em que pára de mentir é quando vai passear na tal rua com seus amigos, duas ou três vezes por semana.
E pensar que pouco tempo antes ele me recomendara arranjar uma namorada, para não ser rotulado como "boiola"! (o que, se entendo bem, é uma expressão pejorativa para definir as pessoas que preferem seu próprio sexo). Ele tinha passado a vida inteira mentindo para aquele pobre garoto, depois de chateá-lo durante anos intermináveis com sua conversa sobre publicidade e tentar envenená-lo com suas sopas repugnantes.
A partir daí me recusei a ver meu pai.

- Ele não está mais passando tanto tempo no quarto, doutor. Fica mais na sala. Engraçado que, em vez de ver televisão, fica olhando para essa casa do lado...
- Hum... Engraçado, mesmo.
- Ontem até consegui conversar com ele sobre a escola.
- E...?
- Ainda não quer voltar. Mas já não está tão teimoso.
- Excelente. E sua irmã? Como passou a primeira noite no quarto?
- Muito bem, graças a Deus.

Um dia importante na minha vida, hoje. Importantíssimo. Fiz algo inédito em todos os milênios de exploração espacial promovidas pela nossa raça.
Revelei minha identidade a um terráqueo.
Não acho que precise matá-lo. O doutor da massinha já demonstrou, diversas vezes, ser confiável e discreto. Ouviu minha história com atenção. Confesso que tive um pouco de medo que me trancasse no depósito de malucos; ou pior ainda, começasse a rir de mim. Detesto quando os terráqueos riem de mim - como aqueles garotos da escola, que caçoavam da minha poesia.
Ele não fez nada disso. Me ouviu e disse:
- Então você é um alien. Um ser de outro planeta.
- Exatamente.
- Na sua forma original, você é um bicho estranho e repugnante...
- ...cheio de escamas fosforescentes. Muito esquisito.
- Mais esquisito que os tais colegas que riam de você, por que gostava de poesia?
- Bem...
- Ou que sua mãe, que morou dez anos num banheiro?
- (...)
- Ou que o seu pai, que tem namoradas de mentira pra não desconfiarem que é gay?
Aquele terráqueo conseguira me deixar sem respostas.
- Onde o senhor quer chegar, com todas essas perguntas?
- Em lugar algum. Só gostaria que você pensasse um pouco nelas.

- Pati, você não vai acreditar. O cara me mandou um e-mail.
- Que cara? O vampiro?
- Isso mesmo! Ele quer me encontrar hoje, na frente da casa dele, às sete da noite!

Mais uma sessão com o doutor. Ele me tratou com todo o respeito devido a um visitante do espaço.
- O fato de você ser um alien tem alguma coisa a ver com o abandono a escola? E é por isso que não sai mais de casa?
- Bom...
Pela primeira vez, me senti um pouco tolo contando aquelas coisas para ele.
- É que minha missão está terminada. Não tenho mais o que fazer lá fora.
- Terminada? Por que? Você acha mesmo que já tem todas as informações sobre a vida na Terra?
- Acho que sim....
- Só porque conheceu seu pai, sua mãe, e foi à escola com meia-dúzia de garotos bobocas?
- Bom...
- Você está completamente enganado. Se voltar ao seu planeta agora, vai apresentar um relatório incompleto sobre a Terra.
- O senhor acha?
- Tenho certeza. Vou lhe dar um exemplo simples. Está vendo essa garota aí da casa ao lado? A tal que você espia com os binóculos?
Senti um calor estranho no rosto. Um reação corporal até ali completamente desconhecida.
- É... hum.... sim.
- Por que você não marca um encontro com ela?
- Bom, até tenho vontade, mas... para quê?
- Pra conversar com ela. Bater um papo. Vocês também podem ir passear, tomar um sorvete e... bem, com o tempo, isso pode evoluir para outras coisas. É uma experiência muito interessante. Pode durar anos, e aí você vai ter muitas coisas para colocar em seu relatório.
- E se ela não quiser sair comigo?
- Outra experiência interessante. Chama-se "rejeição". É menos agradável, mas também dá muito material para relatórios e... sabe os livros de poesia de que você tanto gosta?
- Sim.
- Muitos deles foram escritos depois de uma experiência parecida. Tente. Você vai gostar!
- Bom.. é... talvez eu possa tentar.
- Você não pode ficar aí parado, de braços cruzados, enquanto sua nave não vem te buscar. Sabe, causa uma pésssima impressão.

Bom, já é meia-noite. Aqui estou eu, em frente à casa dele. Estou pronta. Até coloquei um pouco de alho no bolso e... por via das dúvidas, um batonzinho. Nossa! Como está frio aqui! Lá vem ele... Está sorrindo para mim...
Sabe que, para um vampiro, ele até que é bem bonitinho?

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