Uma garota normal, que possui um estranho poder...

CRIATURAS

A mulher é quase anã - fica alguns centímetros acima dessa categoria. Deve ter uns quarenta anos. Veste-se de couro preto. Exibe uns peitos gigantescos no decote do seu casaco. Pilota uma moto nova em folha, reluzente - não um desses modelos leves dos  motoboys, mas uma máquina de 500 cc. Corre feito uma alucinada.
Peraí... diminuiu a velocidade da moto. Está procurando alguma coisa. Um número, acho.
Está parando a moto. Parou. Estacionou na calçada. Está tocando a campainha do sobradinho número 26. Uma mulher vem atender, e a anã lhe entrega a encomenda: um vaso de girassóis.
A mulher do sobradinho surpreende-se com essa figura exótica;  mas sorri, agradece e vai lá dentro procurar o dinheiro da gorjeta, que a anã recebe de cara fechada. Enfia o dinheiro no decote, pula de novo na super-moto, dá a partida - não sei como consegue, com aquelas perninhas tão curtas! - e some na curva da esquina. Deixa a mulher do sobradinho perplexa, não apenas com sua estranha aparição, mas também com o cartão que acompanha os girassóis. Vira e revira o cartão, o envelope, o próprio vaso. Mas, pela cara dela, não tem remetente.
E eu aqui, do outro lado da rua, olhando pelos binóculos.

Quando papai precisou se mudar, me encarregou de achar uma nova casa ou apartamento, para ele tanto fazia. De qualquer jeito não passa muito tempo aqui; tem três empregos, coitado.
Na volta do colégio eu ia ver imóveis. Até que achei esse apartamento de três quartos, no quinto andar de um prédio bem legal. Bairro sossegado, aluguel razoável. Mas não isso que me convenceu a alugá-lo.
Eu só queria ficar perto do número 26.
Papai visitou o apartamento depois que fechei o negócio. Achou que estava tudo ótimo, ótimo. Assinou o contrato sem ler; sorte que eu já tinha lido antes, até as letrinhas miúdas. Ele devia estar pensando em outra coisa. Meu pai é um grande médico, mas não desses que ficam no consultório atendendo os pacientes. Ele é pesquisador. Morram de inveja: se um dia alguém descobrir a cura do câncer, vai ser meu pai.
Pelo menos é isso que eu digo para aquelas ignorantes do colégio, que nem entendem o que é pesquisador.

Um par de olhos é verde, o outro é azul. Uma cabeça é persa, a outra vira-lata.  Até as vozes deles, quando miam, são diferentes - o vira-lata é meio rouco. Mas tudo isso pertence a um só gato.
Um gato de duas cabeças.
Alguém tocou a campainha do número 26 e saiu correndo. Quando ela abriu a porta, encontrou essa estranha criatura na soleira. Não é de admirar que tenha dado um berro. Eu também daria. Morrendo de susto e nojo, ela tenta expulsar o gato dali. Mas o animal não se mexe.
Ela berra feito uma histérica. Quando parar, vai chamar a Faculdade de Veterinária, o zoológico, a polícia,  um troço assim.
Ah... parou. Agora parou.
Está olhando o gato. Agachou-se ao lado dele. Estendeu a mão trêmula. A mão toca uma das cabeças - a persa. Hesitante, acaba fazendo um carinho.
Quem diria, ela gosta de gatos... As duas cabeças do bicho se movem sensualmente, os quatro olhos se fecham de prazer - posso ver tudo daqui, esse binóculo é bárbaro.
Ah, achou o vaso! São cravos brancos e vermelhos, acompanhados de mais um envelope anônimo, que ela examina curiosa. Enquanto isso o gato a encara com seus quatro olhos mais curiosos ainda.
Olha lá, pegou o gato e o vaso no colo. Levou tudo pra dentro de casa. Espero que não tenha chamado a carrocinha. Nem os cientistas pra dissecar o bicho.

Depois que conto do meu pai pesquisador que vai descobrir a cura do câncer, as pessoas geralmente perguntam da minha mãe. Eu digo que os dois estão separados há muitos anos e que moro com meu pai. Isso não só é verdade como todo mundo entende.
O que não vão entender - ou vão ficar com peninha, se eu contar - é que nunca mais vi minha mãe. Papai me disse que o sonho dela era viajar pelo mundo. Parece que se entediava cuidando de mim e bancando a assistente do marido no laboratório. Papai também diz que devia ter percebido que ela estava infeliz. Um dia simplesmente se mandou, sem dizer nada para ele.
Coitado do meu pai. Que dificuldade teve pra me criar sozinho. Por exemplo, a comida dele era horrível, mas eu nunca dizia nada para não magoá-lo. Cuspia a sopa assim que virava as costas.
Quando eu tinha seis anos, felizmente  ele descobriu a comida congelada.
Mamãe mandava postais do mundo todo, dizendo que estava na Índia... na China... no Nepal... na França... Me animei bastante quando ela esteve no Chile.  O Chile é tão perto, pensei que finalmente ela viria me visitar.
Mas aí cortaram a verba do CNPq do projeto em que papai trabalhava... Ficamos sem grana por uns tempos e fomos despejados de nosso apartamento. Nesse prédio tinha um zelador que era completamente retardado, o seu Nilmário. A gente voltou lá várias vezes e o seu Nilmário sempre dizia que não tinha chegado nenhuma correspondência. Tenho certeza que o burrão jogava tudo fora. E assim perdemos contato com mamãe...
Penso bastante nisso hoje em dia. Às vezes fico com raiva dela. Às vezes não.

O gato está morando no quintal dela há quatro dias. Daqui de cima eu a vejo levar comida para o bicho. Ele come muito bem. Até agora não vi nenhum cientista dissecador de gatos.
Bom, muito bom.
Ela passa a maior parte do tempo em casa. Descobri que é tradutora. Tradutora juramentada. A professora de Inglês me disse que dá pra ganhar uma boa grana nessa profissão.
Em casa anda de shorts, ou com uns vestidos largões. Usa óculos, também. Mas quando vai sair, nem que seja só para o supermercado, tira os óculos e passa um batom. Fica bem melhor. Ela ainda é bonita, apesar de já estar velha, coitada. (Pelos meus cálculos, deve ter uns trinta e oito.)
O carro dela é antigo, a pintura da casa está descascando, mas já a segui no supermercado e descobri que se trata bem. Gosta de bons vinhos, comidas chiques tipo patê importado. Pelas coisas que compra, eu diria que cozinha  bem melhor do que papai.
De vez em quando sai à noite. Às vezes sozinha, às vezes com uma amiga. Nunca com homem, duvido que tenha namorado.
Bom, muito bom.
Mas será que ela não se sente triste, morando sozinha?
Pelo menos agora o gato faz companhia. E ele tem duas cabeças, cada uma com sete vidas... Vai durar um tempão.

Rubinho ganhou o campeonato de skate. Eu e o irmão dele torcemos feito loucos, quase ficamos roucos de gritar. Mas assim que saiu da pista, Rubinho transferiu a prancha do chão para o sovaco com aquela manobra  cool e disse para o irmão:
- Cai fora, fedelho.
Rodrigo não achou ruim: sorriu um sorriso banguela e foi andando na frente. Rubinho estava quieto, calado, nem parecia feliz. Eu estava ansiosa pra saber se ele finalmente ia conseguir o tal patrocínio, porque o sonho do Rubinho é ser skatista profissional. Eu não: quero ser zoóloga, viajar para a África e ficar amiga dos gorilas, como aquela mulher que vi na televisão.
- Nossa, Rubinho, você arrasou!
Ele continuou de cabeça baixa, olhando o chão.
- 'Tá chateado com alguma coisa?
- (...)
- Fala aí, cara, o que 'tá pegando?
- Foi você, não foi?
- Fui eu o quê?
- Você botou a aranha na perna do Marcos, quando ele estava fazendo aquela manobra.
Procuro fazer cara de inocente:
- Aranha? Que aranha?
- Não faz essa cara de inocente, pô. Todo mundo viu.
- Subiu uma aranha na perna dele, é isso?
- Subiu sim, Dona Ludmila!
Ops, sujou. Quando ele me chama de Ludmila é que a coisa está feia.
- Deve ter vindo do gramado. Tem muito mato perto da pista.
- Uma aranha enorme, com as pernas azuis!
Sou obrigada a confessar:
- Achei que assim ficava mais bonita...
- E se esse bicho morde o Marcos, hem?
- Que nada, é sussa. Ela não morde. É inofensiva.
- Mas Lu! Você não pode fazer essas coisas! Eu quero ganhar porque sou bom, não porque a minha namorada fabrica bichos nojentos e bota na perna do adversário!
- Eu não fabrico. E não são bichos, são...
- 'Tá. São criaturas,  tô ligado. Que diferença faz? Me sinto como se tivesse roubado do cara.
- Você não roubou! Você é bom de verdade!
O ônibus chega bufando. Subimos os três. Está quase vazio; Rodrigo entra correndo, passa por baixo da roleta e se instala no seu lugar preferido, lá na frente. Nós nos sentamos atrás e continuamos a discussão:
- Você prometeu que não fazia mais!
- 'Tá, desculpa.  Nunca mais faço. Juro, dessa vez é verdade.
- Olha. Eu não tenho nada contra, tá? Quando é só pra divertir o Rodrigo... como aquele cachorro verde que você fez outro dia... ou a lagartixa bípede... ou o tal do rodorotrango...
- Rodorotango. Um orangotango com rodinhas.
- ... até aí, tudo bem. Mas você não pode usar essas coisas na vida real, entende? É perigoso. Um dia as pessoas vão perceber, e nunca mais te deixam em paz.
- É. Tem razão.
- Você não pode usar as suas... criaturas... pra resolver problemas, entende?
- Claro - concordo, compenetrada. Imagino o que ele diria se soubesse das “coisas” que mandei pra vizinha da frente.
- Legal - diz ele, e pela primeira vez relaxa e sorri para mim.  Puxo a aba do seu boné, atrás. Ele dá uma olhadela disfarçada para a frente. Rodrigo está absorto,  tirando caca do nariz.
Então nos beijamos. Depois ele pergunta se não quero passar mais tarde na casa dele. A família toda vai estar no Centro Espírita...
- Hoje não - digo eu. - Tenho que estudar Matemática.
- Ah, puxa, Lu. A gente se conhece a vida toda, fica desde os treze anos, 'tá namorando um tempão...
- Agora não.
- Então quando?
Coço a cabeça. Na verdade, não sei dizer o que estou esperando.
- Primeiro tenho que resolver uma parada aí.
- Que parada?
- Depois que resolver, te conto.
Ele suspira.

No dia seguinte, quem vai entregar as flores é um garotinho. Dessa vez são tulipas vermelhas. Custaram uma fortuna, gastei toda minha mesada.
O garotinho tem uns quatro anos. É lindo, loirinho com olhos pretos. Naturalmente ela fica encantada, até perceber que o garoto é transparente. Transparência variável. Às vezes tem a densidade de um ser humano normal; outras vezes, de tão transparente, você pode ver através dele.
Francamente, estou orgulhosa dessa criatura. Queria que meu professor de Física visse o moleque! Ia ver que suas aulas sobre tensão das moléculas não foram em vão.
Ela não ficou assustada com o garotinho. Está batendo papo com ele. Daqui a pouco ele vai desaparecer totalmente. Mas duvido que ela se apavore.  Já deve estar acostumada com minhas criaturas.
Bom, muito bom.
Em menos de um mês já mandei pra ela uma anã motociclista, um pequinês falante, um papagaio de um metro e setenta, um gato de duas cabeças, um homem-gelatina e uma galinha que cantava ópera.
O garoto transparente é a chave de ouro.
Agora acho que minha mãe não vai se assustar, quando eu aparecer na sua porta.

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