É errado, eu sei. O que estou fazendo não é certo.
Mas não é roubo; no máximo, empréstimo. Devolvo
em bom estado daqui umas horinhas. Roubei - ou melhor, emprestei - por
mera curiosidade. A curiosidade é uma força positiva. Não
é?
E depois, ela não estava fazendo nada de importante. Eu vi. Eram
seis da tarde; devia estar saindo do expediente. Tinha um ar cansado.
Olhava uma vitrine, mas com o olhar vazio de quem não está
prestando atenção.
E foi então que roubei seu corpo.
A alma dela ficou sentadinha num banco da galeria. Meu corpo ficou ao
lado, com o mesmo olhar vazio que ela tinha há alguns minutos.
Cuidadosamente separados, é claro. Nada de misturas!
Já pilotando seu corpo, saí para a rua. Para onde vai uma
mulher casada - olhei a aliança - às seis e meia, depois
do fim do expediente? Pra casa, claro. Olhei a bolsa - nenhuma chave de
carro, nenhum talão de estacionamento. A mulher estava a pé.
Teria de pegar ônibus... Paciência.
O ônibus estava lotado, e só cheguei ao endereço dela
mais de uma hora depois, toda suada por causa do calor. A porta estava
trancada. Fui experimentando todas as chaves do molho até encontrar
a certa.
Apartamento classe média. Razoavelmente arranjado. Examinei cada
um dos cômodos, as fotos nas prateleiras. Evidente que não
peguei nada. Roubar um corpo - aliás emprestá-lo - não
faz de mim uma pessoa desonesta! E depois, não havia nada valioso
no apartamento.
Depois da busca, notei que eu estava suja, até cheirando mal. O
calor! O corpo que pegara algumas horas atrás na galeria cheirava
melhor. Tinha o dever de conservá-lo em bom estado.
Fui até o banheiro, liguei o chuveiro. Observei o tapete do banheiro,
em forma de melancia. Que coisa brega. Olhei todos os cosméticos,
cheirei a perfumaria... Definitivamente o gosto dela era diferente do
meu.
Pelo menos, em matéria de perfumes.
Depois de verificar a marca de dentifrício que ela usava, e reparar
em outra escova de dentes, encostada à sua, tirei a roupa para
tomar banho. Nua, examinei cada centímetro quadrado do meu corpo
- ou seja, do corpo dela. Olhei no espelho do banheiro os seios, a barriga,
as pernas, o triângulo negro entre elas. Razoável. Nada de
fechar o trânsito, mas feia não era.
Satisfeita a curiosidade, entrei no banho. Ela usava shampoo para cabelos
oleosos. Pena não ser para cabelos tintos... Os meus são
tintos. Os dela, pelo visto, são da cor natural. Que aliás
é bem sem-graça.
As bobagens que a gente pensa quando está usando o corpo dos outros.
Fui cuidadosa: depois do banho passei o rodo no banheiro e estendi a toalha
para secar. Enxuta, procurei uma camisola no armário dela.
Mas ela só usava camisetões. Burrada - pensei, enquanto
colocava um deles. Ela tinha um corpo legal, deveria mostrar mais. Principalmente
à noite. O que será que o marido dela pensava dos camisetões?
Banhada e vestida, fui procurar comida na geladeira. Descobri, aborrecida,
que estava lotada de carnes - e eu sou vegetariana. Essa agora! Acabei
me contentando com um sanduíche de queijo e pão integral.
Depois, sentei no sofá da sala - já meio surrado, e com
uma estampa xadrez horrorosa - e tentei assistir a TV. Mas acabei dormindo.
Quando acordei já era meia-noite e o marido tinha chegado da rua.
Tinha um ar alegre e cheirava a cerveja. Será que ela achava normal
o marido chegar àquelas horas?
Perguntei com ar zangado onde ele estivera.
Ele não deu grande importância à minha pergunta. "Com
uns amigos por aí", disse, com a boca cheia, pois já
abrira a geladeira e fizera um sanduíche de pernil. Pelo tom com
que falava, imaginei aquilo era rotina, e não causava grande aborrecimento
à mulher.
Ótimo. Melhor. Por que se precisasse brigar com ele, o que eu diria?
Briga de casal é complicada, envolve várias acusações,
muitas delas no passado: a semana retrasada você fez isso, faz dois
anos que estou agüentando aquilo, e no mês passado aliás...
Me faltariam argumentos.
- Desculpe, mas esqueci o escorredor de macarrão.
- Hã?
- O escorredor que você pediu, lembra? Hoje não deu pra passar
no supermercado...
- Não tem importância - disfarcei.
Depois de acabar o sanduíche de pernil, sentou-se ao meu lado,
com ar satisfeito. Perguntou como tinha sido meu dia.
- A mesma coisa de sempre - respondi, com ar ausente.
- Hoje seu chefe não ia pedir aquela apresentação?
Um marido razoavelmente atencioso - decidi - apesar das horas de chegada.
- Ele ficou doente.
- Do quê?
- Caxumba - inventei - Você sabe que caxumba é muito perigoso
em homens adultos?
- Não sabia, por que?
- Pode causar impotência - disse, me divertindo com a cara de horror
que ele fez.
Depois relaxou e afirmou, com um suspiro de alívio, que felizmente
já tivera a doença quando criança, e não ficara
com nenhuma seqüela, como já já eu ia ver... E se aproximou
de mim no sofá, sorrindo e colocando o braço em volta da
minha cintura. Sorri de volta. Não podia negar que era atraente,
mesmo cheirando a cerveja. E, afinal, o corpo era da esposa dele... Não
vi nada de errado no que aconteceu em seguida.
Depois ele ainda conversou um pouco, na cama. Contou como tinha sido seu
dia, o movimento de vendas, o telefonema da mãe que andava meio
chata. Entre dois bocejos, perguntou:
- Bem, você pagou a conta do gás?
- Claro que sim.
- Trouxe o recibo?
- Depois te mostro.
- Olha, hem? Não vai esquecer o... recibo... - disse ele, quase
adormecido. - Senão eles cortam... que nem.... da outra vez.
Antes de cair no sono, ainda encontrou forças para murmurar:
- Não se esqueça de deixar o café pronto quando sair.
E a camisa azul, também... precisa dar uma passada... eu vou usar
amanhã.
Então ela saía para o trabalho antes dele. E ainda tinha
de passar suas camisas. Folgado, o cara!
Eu estava cansadíssima -, ou melhor, o corpo dela estava. Mesmo
assim, me levantei da cama para fazer uma cuidadosa inspeção
no quarto, tomando cuidado para não acordá-lo. Mais fotos
de pessoas que não conhecia. Parentes dela - decidi. Um bebê
- sobrinho, talvez, já que o casal não tinha filhos. Alguns
livros, nenhum interessante. Uma tela bordada na parede - tinha um tricô
encaminhado na sala, também. Devia ser uma mulher prendada, dessas
que estão sempre fazendo trabalhos manuais. Aos quais, aliás,
sou totalmente alérgica. Não sei fazer nem correntinha de
crochê. Acho uma perda de tempo.
Mas estava tarde e eu precisava descansar. Voltei para a cama (lençol
estampado de flores miudinhas), me enrosquei no marido dela, e dormi o
sono mais tranqüilo da minha vida.
No dia seguinte, o despertador - com luz fosforescente, uma coisa de
fato medonha - tocou muito cedo, seis da manhã. Fazia bastante
barulho, mas percebi que o marido estava acostumado com ele. Abriu os
olhos, sorriu para mim com uma cara ainda amassada pelo sono e resmungou:
- Amor, não se esqueça da camisa azul...
E voltou a adormecer. Me vesti rapidamente com a primeira roupa que encontrei
no armário. E depois que me vi no espelho da sala, constatei que
nosso gosto em roupas também não combinava.
Preparei o café como ele tinha pedido, e deixei na garrafa térmica.
Verde com florzinhas. No vitrô da cozinha, alinhava-se uma fileira
de vasinhos com violetas.
Apesar do gosto suburbano - pensei -, não se pode negar que essa
mulher é boa dona-de-casa...
E já que era boa dona-de-casa, o marido ficaria desconfiado, se
ao acordar não encontrasse a camisa passada... Suspirando de raiva,
peguei a peça de roupa e fui até o minúsculo espaço
da lavanderia onde estavam a tábua e o ferro de passar.
Meu Deus, que serviço horrível. Eu já não
sou muito boa com tarefas domésticas, mas passar roupa, pra mim,
é Física Quântica. Suei, praguejei, virei a camisa
de um lado para o outro, amassei partes que já tinha passado...
Quando terminei, percebi, horrorizada, que deixara uma marquinha de queimado
no canto esquerdo do colarinho. Realmente pequena, mas que judiação.
A camisa era bonita, devia lhe cair bem...
- Homem não repara nessas coisas - disse em voz alta, para espantar
o remorso. - Desliguei o ferro - Deus me livre de provocar um incêndio
ali. Pendurei a camisa num lugar à mostra. E por hoje já
chegava de tarefas domésticas... Saí do apartamento e tranquei
a porta com cuidado.
A galeria só abria às dez horas. Fui tomar café-da-manhã
numa padaria, li o jornal, telefonei para o trabalho. Às dez, quando
as portas do local se abriram, entrei imediatamente, preocupada com com
o par desgarrado.
Não precisava ter me preocupado. Meu corpo continuava sentado no
banco, bem quietinho. E a alma da mulher, provavelmente exausta de vagar
pelos corredores vazios, encostara-se no seu ombro e dormia a sono solto.
Retomei meu corpo e devolvi o corpo da mulher à sua alma. A coitada
ficou um pouco perdida, mas depois que viu a bolsa intacta no seu braço
se tranqüilizou. Deve achar até hoje que teve um estranho
pesadelo.
Quanto a mim, fui trabalhar. Às quatro e meia levantei de mesa,
peguei minhas coisas e falei com o chefe:
- Então, como eu tinha avisado...
- Já sei, já sei - resmungou ele, descontente. - Pode ir.
Mas olhe, da próxima vez tente marcar outro horário. Essas
suas consultas médicas no meio da tarde são um problema.
Sorri amarelo e prometi tudo que ele quis. Saí já nervosa,
olhando o relógio. Peguei o primeiro táxi que achei. Sorte
que não havia trânsito. Meu coração batia forte.
Examinei meus cabelos, a maquiagem. Reforcei o batom.
Às cinco em ponto, como combinado, cheguei ao lugar de encontro.
Ele já estava me esperando. Lia um jornal que largou assim que
me viu. Levantou-se. Sorriu daquele jeito que sempre me deixava de pernas
bambas e coração disparado.
- Estou morrendo de saudades - sussurrou no meu ouvido, enquanto me abraçava.
- Desculpe não ter vindo semana passada, mas as coisas estão
difíceis lá em casa.
- Tudo bem, eu entendo - disse eu, sorrindo torto e me sentando logo para
não cair. Alisei o guardanapo. Sempre sorrindo, ele aproximou a
cadeira e passou a mão pela minha cintura. Baixei os olhos e fiquei
olhando a camisa azul, com a marquinha do ferro no canto esquerdo do colarinho.
Graças a Deus ele não tinha reparado.
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