Ele cisca em vários quintais, mas volta sempre ao seu poleiro.
CORAÇÃO DE GALINHA

- Cachorro, sem-vergonha, ordinário, safado...
Chovem adjetivos.
- TRAIDOR! Filho-da-puta!
(Nossa, como ela tá nervosa..)
- Mentiroso, nojento!
- Eu posso explicar.
Falei a frase errada, está na cara. Os olhos fuzilam de ódio. Ela sacode a prova do crime na mão:
- Explicar, seu desgraçado? Calcinha no bolso do casaco? Como é que se explica isso?
- Eu volto quando você estiver mais calma...
- Seu tarado! Não precisa voltar nunca mais!

Lá fora. Tarde caindo. Friozinho incômodo. Cansadíssimo, trabalhei pesado hoje. Volto pra casa e encontro uma cena dessas...
Tadinha, ficou tão nervosa... Mas vai passar. Tenho certeza que passa. Amanhã ela  está mais calma. Amanhã que dia que é? Três de abril? Aniversário da avó que criou ela. A avó morreu, mas ela sempre lembra o aniversário. Fica triste. Levo num restaurante. Aquele da maionese de camarão. Caro, mas vale a pena.
Amanhã eu volto.  Mas onde vou passar a noite?
De onde veio essa calcinha, minha Nossa Senhora da Acchiropita?
Luísa, agora me lembro. Luísa. Ela estava no interior a serviço. Fui com Luísa pro meu apartamento. Não agüentei até chegar lá em cima. Foi no elevador mesmo. Parada de emergência. Ela tirou a calcinha, eu enfiei no bolso do casaco. Pretendia devolver.
Luísa. Isso. Morena. Pele bem queimada. Não desprezo loira, mas morena... Me disse que morava sozinha. Legal a menina.
Podia ir prum hotel, mas o problema é que detesto dormir sozinho. Queria era dormir com ela, a pele macia de cetim, o cheiro de colônia no pescoço, os cabelinhos curtos fazendo cócega no meu nariz. Saudade.
Mas essa noite não vai ter. Essa noite é impossível.
Vou ligar para a Luísa.

Ficou contente, falou pra eu passar na casa dela. Queria sair mas eu disse, não, meu bem vamos ficar juntinhos aí mesmo, no seu apartamento. Mais intimidade, sabe.
Luísa. Caiu da bicicleta com sete anos, cicatriz feia no joelho, não usa minissaia. Estava noiva até ano passado mas rompeu, o namorado era ciumento, não dava liberdade. Está por aí, free-lanceer. Não quer nada sério. Não se importa de eu ser casado. Trabalha numa agência de publicidade, tem um piercing e uma irmã nos Estados Unidos, que vai visitar no fim do ano. A irmã, não o piercing.
Luísa. A dona da calcinha. É justo que me dê abrigo. Afinal, a culpa foi dela.

Espero que essa briga acabe logo. O inverno está chegando. Inverno sem ela é impossível. Daqui a pouco, Dia dos Namorados. Preciso caprichar. Dar um puta presente. Mostrar que. Enfim.
Ela é carente, tadinha. Eu entendo. Infância difícil. A mãe trabalhava em outra cidade, mandava dinheiro, difícil aparecer. O pai se mandou. A avó era boazinha mas não era mãe. Na escola as outras meninas perguntavam, e aí, cadê seu pai? Ela inventava. O pai trabalhando na Dinamarca. Um dia se atrapalhou, em vez de Dinamarca saiu Suécia. Não é tudo a mesma coisa? Países nórdicos, ora. Mas as outras caçoaram dela, chamaram de mentirosa, infernizaram.
Não sei de onde tiraram essa idéia de que criança é inocente, boazinha. São umas pestes.
Tadinha. Por isso é tão insegura.

Luísa. O porteiro diz que acabou de chegar, com a filha. Filha? Epa, que história é essa?
No elevador ruminando, ela não me disse que tinha uma filha. Com criança no pedaço não dá pra rolar, fico constrangido.
- Oi, gracinha.
Jesus do Céu! Essa não é a Luísa. A Luísa era morena, essa aqui é loira... Mas peraí. Eu conheço essa mulher.
- Vai ficar aí parado? Entra...
- O porteiro disse que você estava com sua filha... Vou atrapalhar?
- Não, o pai dela veio buscar pro fim-de-semana. Já está saindo.
Mais essa, agora. Um ex. Ela me faz entrar na sala. Apartamento minúsculo. Sofazinho amarelo de dois lugares. Retratos da família na parede. Essa não é a mesma mulher da outra noite. A mulher da outra noite, a da calcinha, era...
- Luzia!
- Quem é a Luzia? - ela franze a sobrancelha.
- Ninguém. Quer dizer, ahn... minha sogra.
- Você é casado?
Oh, meu Deus. Agora entendi. Essa aqui é a Luísa, certo. Luzia é a da bicicleta. Da calcinha. Do elevador.  Essa aqui nem sabe que eu sou...
- Separado, não te disse? Luzia é minha ex-sogra. Uma megera, aliás (é preciso ser criativo).
- Você disse que era solteiro.
- A gente morava junto. Sem papel. Ficamos pouco tempo...
- Hum - ela está me olhando suspeitosa.
- Culpa da sogra, da Dona Luzia. Acabou com o casamento. Enfim, com o...
- Vou ver se mala da Paulinha está pronta - ela diz, carrancuda.
Luísa. Agora me lembro. Não vejo há três meses. É dentista. A gente se conheceu quando perdi aquela obturação. A do molar esquerdo. Bonita, mesmo que loira. Separada. O marido arranjou outra. Ela quase pirou. Só não se matou por causa da filha. Faz terapia e tai-chi-chuan. Na infância morou numa cidade do interior. Botucatu, acho. Não, era Bauru.
- Esse é o Cássio - ela passa o braço em volta da minha cintura, visivelmente satisfeita, me apresentando ao ex - Cássio, esse é o Roberto, pai da  Paulinha.
- Muito prazer. 
O cara me olha de cara feia. Troncudo. Forte. O que ela viu nesse babaca? Nossa, pensou em suicídio por causa dele? Tenha a santa paciência... Não tinha nada melhor lá em Bauru?
- Já estou indo - ele resmunga.
Ou era Botucatu?
A menina choraminga que quer levar o videogame. Magrinha, amarela. O pai sai batendo a porta.
Agora é preciso ser rápido. Não dar chance. Ela está desconfiada. Começo a beijar a criatura, agora me lembro, ela é ótima de cama mais beija mal. Por incrível que pareça. Acontece. Com um curso intensivo, talvez melhore. Sou especialista. Modéstia à parte. Todas elas dizem. 
- Cai fora.
- O quê?
- Cai fora, seu babaca. Vai embora.
- Mas que foi que eu fiz?
- Você não me contou que era casado!
- Mas eu não sou, eu não...
- Olha a aliança no seu dedo, imbecil!
Puta merda, a mulher tem razão. Erro mais elementar. Esqueci de tirar a aliança! Sabe como é, estou perturbado, briguei com ela...
- Fora daqui.
- Você só me usou pra fazer ciúme no teu ex, não é? Luzia. Quer dizer, Luísa.
- Se você não for embora eu faço um escândalo.
- Calma. Já estou indo.
- Rápido.
- Me sinto usado.
- Larga de ser cara-de-pau...
Na rua de novo. Quase nove da noite. Cansado. Depauperado. Duas broncas seguidas. O corpo dói. Meu problema é mulher, reconheço.  Às vezes fico confuso. Troco as bolas. Acho que estou perdendo o controle. Calcinha no casaco. Aliança no dedo. As coisas vão mal.
Onde era mesmo aquele barzinho? Onde eu peguei aquela gata, dois anos atrás?

Essa eu me lembro bem. Madalena. Nome de pecadora, cara de anjo. Sorria muito, falava pouco. Não parecia muito brilhante, até que a gente foi pro motel.
Nossa Senhora. Aquilo é inteligência, né? Só pode ser. Não tem a inteligência emocional? Então. A Madalena tinha inteligência sexual. Melhor ainda.
Depois a gente conversou. Era arquiteta... ou engenheira, não me lembro bem. Morava com uma amiga. Deu uma risadinha e confessou que não era só amiga. Sabe como é. Ela estava se decidindo. Achava que era bi. A amiga era designer. E essa aí, por acaso  também curtia homem? - perguntei.
Às vezes.
Subi pelas  paredes, comecei a fazer fantasias. Perguntei se a tal amiga não toparia sair com a gente, dia desses.... Ela deu mais uma risada. Fiquei enlouquecido. Anotei o telefone num papelzinho. E não é que perdi o maldito papel? Fiquei horas procurando no carro, no paletó, até no sapato olhei... E nada. Só me restava torcer pra que a Madalena não tivesse me esquecido.
Um mês depois ela ligou, contando que tinha terminado com a tal amiga. Se decidira, seu negócio era homem.
- Ah, tá, legal.
Perdi o tesão, inventei uma desculpa qualquer pra não sair com ela. 
Mas enfim. Se encontrar ela aqui, posso mudar de idéia. Tudo por uma cama quente.
Eu sempre lembro dos rostos. Os nomes é que às vezes me deixam confuso. Que nem essa história de Luísa, Luzia... Às vezes também troco as histórias, outro dia perguntei pra uma menina lá do trabalho se ela continuava velejando. Velejando? - me perguntou, intrigada, e só aí saquei que tinha confundido ela com outra. Essa aí não velejava, remava. Uma bosta, às vezes a memória falha. 
Mulher adora homem atencioso. Me treinei pra lembrar das histórias delas. Uma época  tinha até arquivo no computador. Um monte de fichas. Mas acabei jogando fora, muita sujeira. Ela era bem capaz de achar.
Abro a porta, o bar é do gênero escurinho. Ainda é cedo. Mas acho que dei sorte.

Laís. Branquinha de cabelo preto bem crespo. Olho verde. Magrinha, diz que é modelo. Estuda no Mackenzie. Direito. Estava esperando umas amigas da faculdade. Chegaram meia hora depois. Tudo feia. Mas eram compreensivas, se dispersaram quando nos viram juntos.
- Laís, no que você pensa antes de dormir?
- Antes de dormir, como? - ela me olha por cima do refrigerante light.
- Sei lá, você não pensa em nada antes de dormir? Para relaxar?
Risadinha nervosa:
- Fantasia erótica, é isso?
É fogo essa mulherada, só pensa em sexo. Não é nada disso. É que eu antes de dormir sempre penso em alguma coisa relaxante, gostosa. Por exemplo, que estou boiando numa piscina de água morna. Ou que sou um gato numa almofada bem macia. Ou que estou flutuando nas nuvens... Ela me conta essas histórias bem baixinho até eu dormir. Eu durmo com a voz dela no ouvido.
- Não exatamente.
Claro que posso dormir sem a voz dela. Mas não é a mesma coisa.

A Laís vai fazer uma propaganda de chiclete. Também vai operar os seios, não acho muito pequenos? - pergunta, horas depois, quando já estamos na sua cama.
- Magina, são lindos - estou cansado e quero dormir. A Laís pode ser bonita, mas é péssima de cama. Chata. E não pára de falar:
- É, não são ruins, mas agora a moda é ter grande. Bem grande mesmo. Quem não tem fica por fora. Minha mãe está brigando com o meu pai pra arranjar dinheiro pra operação.
- Eles brigam muito, é?
- São separados.
- Que pena - digo eu, bocejando.
- Lá na agência tem uma  menina que operou, 'cê precisa ver, tá pegando muito mais trabalho que eu. Eu sempre tive sonho de operar os peitos. Desde pequena. Quero ficar que nem aquela menina que faz o comercial...
No meio da frase, caio no sono. Em vez de gatos, almofadas, ou nuvens, peitos. Milhões de peitos. Silicone. Decotes. Modelos da Playboy. Outdoors com peitos, peitos, muitos peitos.
- Cássio!
- Hã? Hum? Que foi?
- Acorda, já são sete horas!
- Mas... não é meio cedo, Luana?
- Laís!
- Ah, desculpa, Laís. Luana é o nome da minha chefe... Confundi...
- Minha mãe daqui a pouco acorda. Ela não vai gostar de te ver aqui! Sei lá, nem te conhece...
- Você mora com a sua mãe?
- E onde eu ia morar, porra? Escuta, lindinho, foi ótimo, mas é melhor  você pegar suas coisas e sair sem fazer barulho, tá? Mamãe sempre levanta de mau-humor. E eu tenho que ir pra faculdade. Me deixa seu telefone.

Oito horas da manhã.
Com certeza a essa altura ela já está mais calma. Pensou. Refletiu. No  fundo ela me ama. A gente vai conversar numa boa, se entender...
E depois eu tinha que passar por aqui. Tomar um banho rápido. A tal da Laís nem me deixou tomar uma ducha. Hospitalidade zero. Horrível de cama. Se essa garota me liga, mando pastar.
Ô merda. Ela já foi embora. O carro nem está na garagem... Em cima da mesa da cozinha, um bilhete:
"Quando voltar não quero mais ver tuas coisas. Nem você."
Brava ainda, a fofinha. No quarto a cama já foi arrumada. O cheiro fresco de shampoo no chuveiro. Uma calcinha amarela pra secar. Lar, doce lar. 'Magina que eu vou embora daqui.
Ela acha que amarelo lhe dá sorte. Estava usando um vestido amarelo quando passou na entrevista do emprego. Um laço de fita amarelo no nosso casamento. Uma saia amarela no dia do vestibular. Um sapato amarelo quando saiu o resultado, e ela e a vozinha choraram de felicidade.
Que besteira, Cássio, pára com isso, onde já se viu, tá com vazamento?
Tomara que ela volte logo.
Tomara que volte menos brava.
Porque das histórias dela, eu nunca esqueço.

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