Sexo, mentiras e bancas examinadoras

COM LOUVOR

Todo dia ele me mandava poemas eróticas por e-mail. Poemas horríveis, aliás. Fixou-se em dois pontos do meu corpo: peitos e coxas. Falava tanto de meus peitos e coxas que fiquei esperando, para breve, asas e sobrecoxas.

A qualquer outro, eu responderia com um caminhão de ironias. Mas ironia é artigo perigoso na universidade. O sujeito era importante. Tituladíssimo. Dali a alguns meses, estaria na minha banca examinadora. E eu lá, preparando minha tese sobre poesia galega do século 12. Aprender o raio da língua, puxar o saco do orientador, correr atrás de obscuros trovadores galegos que já viraram poeira há novecentos anos... Tudo isso deveria me manter ocupadíssima, mas a verdade é que, nos intervalos, curtia os e-mails do sujeito.

Não que sentisse atração por ele, credo! Tipo pegajoso. Tinha idade pra ser meu pai, mas exigia ser chamado de você. Nem forçando muito o Édipo: era pedante, feio e careca, com alguns patéticos fios restantes, que penteava cuidadosamente. Sem falar da língua presa. O encontrava ocasionalmente nos corredores. Se houvesse gente nas proximidades limitava-se a umas piscadas; senão, vinha botando a mão na minha cintura. Me lembro até hoje da verruga na asa esquerda do seu nariz. E que colônia infame, meu Deus!

Sei que devia, sei lá, denunciá-lo. Abuso de poder, assédio sexual... mas não sou feminista, nem politicamente correta. Continuei respondendo às suas investidas com um sorriso neutro e muita diplomacia. No fundo, o que me impedia de fazer escândalo não era tanto a covardia, e sim o tédio. Aqueles e-mails eram a única coisa que quebrava a monotonia das tardes mergulhadas na lírica galaica, e nas Cantigas de Santa Maria. Conhecem? Não? Foram escritas por um rei. Em galego. Bom, deixa pra lá. Eu tinha que pagar aluguel, conta de luz, TV a cabo, essas coisas. O mestrado era minha única saída. Os galegos podiam me salvar. Mas me matavam de tédio, também.

As poesias do língua-presa me impediam de enlouquecer. Eram medonhas, mas e daí? Vamos prender todo mundo que escreve poesia ruim? Não sobraria um no Departamento de Letras.

Os dias foram passando e finalmente chegou a defesa da tese. Como eu previa, o Bocage do Butantã estava na banca examinadora. Enquanto eu estava lá em cima, falando, respondendo às perguntas da banca, tudo correu bem. O pior foi quando um colega do Bocage resolveu exibir sabedoria, lançando-se num extenso discurso sobre diassistemas e variedades lingüísticas. Sentada, olhando fixamente o homem e tentando afixar no rosto uma expressão de deleite intelectual, comecei a imaginar meu futuro: as aulas com os graduandos iletrados. As reuniões. O doutorado. A fofoca de corredor. As intrigas acadêmicas... e assim para sempre, até a aposentadoria. Eu queria dar o fora dali enquanto era tempo - antes de ser aprovada, sacramentada, ungida pela instituição. Não podia, é claro. Mas a idéia parecia tão tentadora! Sair correndo, mudar de vida, virar outra pessoa... Era Ana Paula, agora é Natasha.

No desespero de combater aquelas idéias, apelei para uma recordação: os e-mails eróticos do professor. As coxas, os peitos, o verso branco e manco. Funcionou. Continuei pregada em minha cadeira, fiz o que se esperava de mim, e terminei aprovada com nota máxima. Enquanto todos iam saindo da sala - banca, orientador, amigos, parentes, colegas, em busca do bar onde íamos comemorar – fiquei para trás, e esperei até que só restássemos na sala duas pessoas: eu e o Bocage. Que arrumava seus papéis muito sério. Cheguei para ele, plena de luxúria, excitada por duas horas de erotismo ruim, e disse:
- Quero ir pro motel com o senhor. Digo, com você.
Papéis caídos no chão, boca entreaberta, cara de horror:
- O quê?
- Quero que me coma. Várias vezes. De todos aqueles jeitos que falava nos e-mails.
- Como?
- Já! Agora mesmo!
Fugiu horrorizado pelo corredor, largando os papéis, tropeçando nas pessoas. Até hoje, nas reuniões da Congregação, não tem coragem de me olhar.  Tadinho. Mas eu guardo seus e-mails.

Em dez anos de Universidade, foi a coisa mais divertida que me aconteceu.

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