Mais vale uma gordinha no chão do que uma magra a voar

A TRISTE HISTÓRIA DE COCADA QUERIDA

Desiléia, filha única de Cocada Querida, voou pela primeira vez aos doze anos.
Era um dia de maio em Águas da Prata, bem antes da estação turística. Cocada Querida acabara de abrir sua barraquinha de doces e estava preguiçosamente encostada ao balcão, pensando no bolo de milho que faria à tarde. A filha - ainda uma criança, na idéia da mãe - cochichava e ria com as amiguinhas, sentada num banco do Bosque, a poucos metros dali. Um grupo de rapazes passou do outro lado da praça. Cocada, que não dormira bem naquela noite, cochilou por alguns minutos.
Acordou com uma gritaria. Olhou para o lado das meninas: Desiléia não estava mais lá. As outras garotas apontavam alguma coisa no céu. Cocada seguiu a direção do seu olhar: lá no alto, bem alto, com o vestido enfunado pelo vento, voava sua filha. Só a reconheceu pela cor do vestido.
“De repente, sem mais nem menos, ela começou a sair do chão. A gente nem 'tava prestando atenção...” contou uma das pirralhas. Aos prantos, morta de medo, a pobre Cocada corria pela praça, chamando Desiléia. Começou a juntar gente, olhando assombrada para o céu onde planava a menina.
Depois de alguns minutos - que pareceram infindáveis à mãe - Desiléia foi descendo bem devagarzinho, com um sorriso de beatitude no rosto. Pousou com  perícia, e veio dizer a Cocada que voar era muito legal.

Cocada Querida tinha nome, é claro. Mas a essa altura ela mesma já o esquecera; que dirá os outros...
Desde os catorze anos estava atrás daquele balcão, fazendo os melhores doces da Prata: dadinhos de leite, goiabada, bananada, rapadura com gengibre, cajuzinhos, tronquinhos e a inesquecível cocada que lhe dava o apelido.
Meiga e tão doce quanto as delícias que fabricava, Cocada era popular na cidade. As pessoas só lamentavam que o safado do marido tivesse se mandado pra Belo Horizonte, com desculpa de trabalhar; e nunca mais deu notícias. A doceira ficou sozinha, com Desiléia para criar.
Até ali as coisas vinham correndo bem, a menina era bonita e educadinha. Mas agora surgia aquele problema...
Cocada levou Desiléia ao médico, que não achou nada de errado nela. Levou à benzedeira, que disse preces e lavou a garota com um banho de ervas. Levou à Igreja do Evangelho Retangular, onde o pastor garantiu que sua filha estava com o Maligno no corpo. Desiléia, sem reclamar, submeteu-se a inumeráveis exorcismos. Os irmãos oraram por ela. Cocada Querida, com sacrifício, fez contribuições substanciais ao templo. Mas que nada: bastava  se distrair, e a filha levantava vôo novamente.
Ninguém pode imaginar o que representavam esses vôos para a martirizada mãe. Ou melhor, pode. Você aí que tem filhos: imagine seu rebento, o depositário de suas mais caras esperanças, levantando vôo feito sabiá desgovernado! E você lá embaixo, na agonia, esperando o pestinha a qualquer momento cair e quebrar o pescoço... Não é fácil.
E não adiantava dar bronca na menina: ela jurava à mãe que voava sem querer. “Fico distraída, e quando vejo estou lá no alto, mãe...”  Mas pela sua carinha de safada, Cocada Querida via  que Desiléia gostava da brincadeira. Lá de cima - contava - via tudo bem pequenino, as casas, as estradas, as pessoas... Subindo um pouquinho mais alto avistava Poços de Caldas, e dependendo do tempo, até Campinas.
Essas confissões provocavam calafrios na mãe.

Meses depois do primeiro vôo de Desiléia, Cocada Querida inventou um novo doce.  Batizou-o de “uvinha” - uma baga de uva itália envolvida em doce de leite por fora e caramelo por dentro.
O sucesso foi imediato. Já então a estação havia chegado e Águas da Prata recebia seu modesto quinhão de turistas. Todos compravam o as uvinhas, e provavam a delícia com os olhos fechados de êxtase.
Quem mais gostou foi Desiléia. Comia saquinhos inteiros, a ponto da mãe ficar preocupada:
- Desse jeito levo prejuízo...
Mas Desiléia não parava de comer. A uvinha se tornara uma paixão para a menina. E enquanto estava devorando doces, Desiléia pelo menos não voava. Já era uma vantagem.
Num certo entardecer bem frio, a mãe notou que a menina - encostada na barraca, degustando o doce - tinha mudado. Não era mais tão magrinha. Ganhara seios, os quadris se alargavam, tinha formas mais redondas.
Um rapaz passou do lado oposto da praça e olhou para ela. Desiléia suspendeu a comilança e seguiu o moço com os olhos, a uvinha esquecida.

Depois das uvinhas, veio a doçura de abóbora - uma trouxinha de doce de abóbora envolta  em rica capa de cocada branca. Uma variação do doce vinha em barrinhas. Cocada Querida em seguida patenteou a trufa de marmelo e a bala puxa-puxa de maracujá, delícias sofisticadas destinadas aos turistas. O passo seguinte foi o bolo de milho perfumado ao hortelã.
A barraca de Cocada vivia cheia, os turistas faziam fila para comer suas guloseimas. As outras barraqueiras, despeitadas, tentavam copiar. Mas ninguém conseguia o ponto exato dos seus doces. Até no ramo dos sorvetes ela entrou, com dois sabores: cocada queimada e goiabada cascão. Para cúmulo ainda servia, nos finais de semana, uma maravilhosa batida de pitanga. Receita secreta.
Mas a maior freguesa de seus doces continuou sendo a própria filha, Desiléia. Ninguém sabia, mas Cocada inventava todos aqueles manjares com a cabeça nela. Tentava adivinhar o que mais a agradaria - as combinações de doce e azedo, como na bala de maracujá; ou os pedaços de coco suculento, como na doçura de abóbora...
Agora já não reclamava, quando a filha se encostava ávida no balcão, procurando doce. Sorria, e lhe adiantava um prato cheio das suas guloseimas preferidas. Para uma mãe, não existe prazer maior que ver a cria se fartando...
Bem que uma amiga avisou:
- Cocada, você precisa tomar cuidado com a Desiléia. Ela está engordando muito...
- Ora essa, é saúde.
- Não é não, Cocada. A Larissa me contou que você lhe deu um monte de roupa novinha. Porque não entra mais na Desiléia...
- Eu compro umas novas - sorriu Cocada, tranqüila. E de fato não seria problema; a barraca estava dando bastante lucro.
As novas roupas logo tiveram que ser dadas também. Desiléia engordava a olhos vistos. Em breve já andava com certa dificuldade. Ocupava cada vez mais espaço no banco da praça. O rostinho bonito, cor de café-com-leite com meigos olhos castanhos, foi cercando-se de um colar de gordura.
E a mãe, tranqüila. Feliz.
Pois Desiléia, gorda feito uma pipa, nunca mais levantou vôo.  Também, pudera! Se mal agüentava andar.

Os anos foram passando. Cocada envelhecia, mas seu rosto escuro continuava sem rugas, o corpo magro cheio de energia, o sorriso doce inalterado.
As amigas de Desiléia foram sumindo. Umas casaram e tiveram de cuidar dos filhos e do marido; outras só dos filhos, porque marido não tinham. Outras ainda foram pra São Paulo ou Campinas, estudar ou trabalhar. E algumas - coisa triste de se dizer - caíram na tentação da vida fácil. À noite, muito pintadas, podiam ser vistas nos bares dos caminhoneiros, tomando cerveja e dando risada.
Só Desiléia não saiu da praça. Chegava de manhã com a mãe, arquejando, e deixava cair seus mais de cem quilos no banco de pedra. Passava o dia ali, olhando o movimento, conversando com um ou outro conhecido. A cada meia hora Cocada lhe trazia um pratinho de doces; na hora do almoço, feijão com farinha e bisteca de porco bem gorda, que a moça devorava.
Desiléia tinha pena de ver a mãe trabalhando sozinha. Tentou entrar na barraca para ajudá-la, mas não passava na entrada.
- Não se preocupe, minha filha - disse Cocada. - Com o tempo, se Deus quiser e Nossa Senhora ajudar, eu aumento essa barraquinha.
À noite Cocada arrumava suas coisas, trancava a barraca e levava Desiléia para casa. Sentia-se feliz. Via as mães abandonadas pelas filhas, queixando-se  de não receber uma visita, um telefonema que fosse. Casavam-se, iam embora, e esqueciam quem as criara. Já Cocada tinha uma filha de ouro, que jamais a abandonaria.
Também, graças a Deus, nunca mais voara.

Mas um dia essa felicidade se acabou.

Roneywald, filho do seu Antônio, fugira de casa bem mocinho. Em vez de estudar, arranjou carona num caminhão e andou correndo mundo. Diziam que até nos Estados Unidos estivera, trabalhando de faxineiro. Voltou dez anos depois, com fama de rico.
Disse que viera ficaria só duas semanas. Mas as duas semanas se transformaram em três, e depois em cinco, e depois em dois meses. O rapaz, em vez de voltar pra Novaiorque, continuava dando voltas na cidade, bem vestido, com um carro último tipo.
Só quando entrou o verão, Cocada Querida percebeu que ele andava atrás de Desiléia.
É claro que  já tinha visto os dois sentados no banco, conversando muito juntos (Roneywald espremido pra caber no exíguo espaço deixado pela moça). Mas pensou que o rapaz estivesse apenas sendo gentil, com pena de Desiléia.
Um dia, entretanto, ao sair da toalete do Bosque, foi forçada a se render às evidências: pegou os dois se beijando. Cocada Querida pensou que fosse morrer do coração.
Na verdade, há semanas a Prata ria à custa de Roneywald, que se apaixonara pela Orca Assassina (como Desiléia era conhecida), mesmo com tantas moças bonitas querendo “ficar” com ele, como se diz hoje em dia. Só a mãe não percebera a história. Quando deu conta, os dois já estavam de namoro firme.
Cocada Querida não gostava de escândalos. Não disse nada, ficou quieta. Mas era evidente que as intenções do rapaz não eram boas. Ela, Cocada, não era rica, mas com muito trabalho conseguira juntar alguma coisa. Morava no que era seu e também tinha um terreninho na Fonte Platina. E aquele sujeito, quem era? Diziam que voltara rico dos Estados Unidos. Mas se fosse tão rico precisaria ficar aboletado na casa dos pais? Não senhor, ali havia coisa. Com certeza o rapaz planejava viver à custa do suor do rosto dela, Cocada...
Situação terrível. Cocada Querida não tinha se preparado para uma encrenca daquelas.
Dias depois, quando foi levar o pratinho de doces para a filha, no meio da manhã, a menina - que esperava o namorado - lançou um olhar distraído às guloseimas e disse:
- Agora não, mãe, obrigada.
Em dez anos, era a primeira vez que recusava comida da mãe.
Cocada manteve a calma nos dias subseqüentes, enquanto as recusas iam se acumulando. Agora Desiléia comia apenas três vezes por dia, e já não parecia ansiosa pelos doces.
A mãe só se apavorou duas semanas depois.
Era uma tarde quente de verão. Como sempre, Desiléia esperava pelo namorado. Na esquina, ouviu-se o ronco bem-regulado de seu motor. A moça levantou-se do banco sozinha, com surpreendente  agilidade, e foi andando ao encontro de Roneywald.
E foi então que a mãe viu.
O vestido de Desiléia estava largo. O corpo de Desiléia havia perdido sua monumentabilidade. Os passos de Desiléia já não eram tão trôpegos.
Desiléia estava emagrecendo.
Cocada precisava fazer algo. Rápido.

No dia seguinte, Seu Edivaldo, o carpinteiro da cidade, munido de uma autorização especial da Prefeitura, veio reformar a barraca de Cocada.  As outras barraqueiras mordiam os lábios de inveja. Em poucas horas ele dobrou o espaço da barraca.
- E não se esqueça, hem, seu Edivaldo? Aumente a entrada que é pra minha Desiléia passar...
- Pode deixar, dona Cocada.
Cocada aproximou-se da filha, que do banco de pedra observava perplexa a movimentação. Deu-lhe um beijo carinhoso na testa:
- Agora você pode ajudar a mamãe.
- Mas... Como é que eu vou...
Cocada deixou a filha sem resposta. Virou as costas e foi cuidar da freguesia. No dia seguinte Desiléia já estava atrás do balcão, atendendo os clientes enquanto a mãe enrolava sossegadamente os doces na pia. Um alívio, uma verdadeira bênção para Cocada! como ela mesmo declarava, sorrindo para os curiosos que vieram xeretar a novidade.
Só quem não gostou da história foi Roneywald. Agora era obrigado a passar os dias encostado no balcão, conversando com a namorada apenas nas poucas interrupções do movimento de fregueses. Mas naquele verão, Águas da Prata estava cheia de turistas, e a barraca de Cocada Querida era a mais procurada do Bosque.
No terceiro dia, quando Cocada estava fechando a barraca, teve uma surpresa. Desiléia emagrecera tanto, que não precisava mais se espremer pela abertura da barraca. Passou com desenvoltura para fora e saiu andando, esquecida da mãe.
- Onde você vai, filha? - perguntou Cocada.
- Ali do outro lado da praça... - respondeu a moça, reticente.
Roneywald a aguardava, sorrindo. Desiléia só voltou para casa altas horas da noite, no carro do namorado.
No dia seguinte, na hora de fechar a barraca, Cocada se antecipou à filha. Saiu e foi trancando a porta, deixando a menina lá dentro.
- O que é isso, mãe? - protestou Desiléia, do lado de dentro.
- Então, minha filha - explicou Cocada Querida muito calma, como era do seu feitio. - Já deixei um colchonete embaixo da pia, viu? pra você não ter de andar até em casa. (A casa das duas ficava a um quarteirão). Amanhã de manhã lhe trago o café.
- Mas eu nem jantei! - protestou a moça. Parecia zangada.
- Deixei bolo de milho e hortelã. Tem bastante doce de leite, também.
- Eu quero comida salgada! - gritou Desiléia, lá de dentro.
- Amanhã te trago um pratinho de bisteca.
E com essa Desiléia se foi. Já em casa, satisfeita, ligou a televisão para ver a novela das oito.
A zanga da filha logo passaria. Ela veria que era tudo para o seu bem. Largaria aquele indesejável. Voltaria a comer os doces da mamãe. E se Deus ajudasse, em breve Cocada Querida ampliaria novamente a barraca.
Dormiu tranqüilamente, como não fazia há tempos. No dia seguinte acordou cedo, tomou café com rosquinha e guardou uma boa porção para Desiléia na garrafa térmica - além de uma bistequinha para fritar. Depois, trancou a casa e foi trabalhar. Era domingo, o dia mais movimentado no Bosque.
Quando ia se aproximando de sua barraca, notou um ajuntamento, comentários... Mas onde estava a barraca? Assustada, Cocada Querida correu para lá, quase derrubando no caminho o farnel.
Onde antes estivera sua barraca, havia apenas um amontoado de tábuas viradas para fora, como se uma força centrífuga as tivesse estourado. O furacão espalhara pelo chão latas de leite condensado, açúcar, pratinhos descartáveis, chocolate em pó...
De Desiléia, filha de Cocada, só restara um pedacinho do vestido verde, preso num prego.
No meio-fio estava o carro do sedutor - aberto e vazio, com o alarme à toda.
- Ai, meu Deus do céu! - gritou a mãe, desesperada, perdendo a compostura pela primeira vez na vida. - Roubaram minha filha! Desiléia! Ai meu Jesus Cristinho!
Mas quando as barraqueiras já se apressavam a acudi-la, alguém gritou:
- Olha lá! Lá em cima!
Todos ergueram as cabeças para o céu.
Lá no azul infinito, longe da barraca, dos doces, de Cocada, da Prata, pairava Desiléia, com o vestido verde enfunado de vento, imensa e gloriosa. Alguém mais tarde jurou que ela sorriu e acenou para a mãe. Na outra mão, segurava seu amado Roneywald, que também sorria - segundo testemunhou, mais tarde, esse pratense de vista aguda.
Que também seria, aliás, o último a ver o casal de namorados.
Nunca mais Roneywald apareceu por ali. Nem Desiléia, é claro. Cocada reconstruiu sua barraca, e ainda hoje, bem velhinha, passa as tardes olhando para cima, esperando a filha passar pelo céu com seu vestido verde.
Mas ela nunca mais voltou. E Cocada Querida, resignada, continua a fazer doces.

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