Não, eu não tive
culpa. Juro que não tive. Não foi minha culpa se ele me
encheu de porrada, quebrou o apartamento inteirinho, me xingou de tudo
quanto é nome e depois me deu mais porrada pra completar. Se estou
com o olho roxo e um dente quebrado, dessa vez não foi minha culpa.
Sabe, ele tem um gênio horrível. Não é má
pessoa, mas tem gênio ruim. E eu faço tudo pra agradar esse
homem! Ontem, por exemplo, ele chegou e a comida já estava pronta.
Porque se tem uma coisa que irrite ele, é esperar pelo jantar.
Fui tirando o casaco dele e perguntei: "Como foi seu dia?" Ele
respondeu: "Muito bom, graças a Deus." Agora você
veja: como é que uma pessoa diz que teve um dia bom, agradece a
Deus, até sorri, e uma hora depois dá um murro na minha
cara? Dá pra entender? Mas ele é mesmo imprevisível.
Sempre tive um fraco por homens imprevisíveis... Azar meu. Minha
prima outro dia me disse que eu gosto de machão, mas aí
também já não concordo.
Bom, continuando. Tirei o casaco dele. Agora, eu acho que é muito
importante pro relacionamento do casal um se interessar pelo trabalho
do outro. Aí já perguntei: e o chefe, não implicou
com você? Não, hoje ele até estava calmo. E aquela
sua colega perua? Ele me olhou como se não entendesse. Aquela,
que rouba suas idéias! Ah, disse ele, sem muito interesse. Foi
viajar.
Perguntei se primeiro ele queria tomar banho ou se preferia jantar. Se
preferisse comer estava tudo pronto, era só servir. Também
se quisesse tomar banho a empregada já tinha trocado as toalhas.
Preferia jantar ou tomar banho? Ele me olhou como se não entendesse
e eu repeti, jantar ou banho? Ele disse que não sabia, ia ver um
pouco de televisão.
Sentou e ligou a TV, ficou vendo o noticiário econômico.
Estavam dando as cotações do dólar. Eu comentei com
ele que o apresentador era bonitão. Ele então me lançou
um olhar torto e me disse pra calar a boca. Sei lá, talvez tenha
ficado com ciúmes.
Esperei o apresentador acabar e perguntei de novo se ele queria tomar
banho ou jantar.
"Tá bom, vamos jantar", ele disse, e percebi que já
estava meio atravessado. Vai ver foi a cotação do dólar.
Hoje em dia a gente vê noticiário e fica de cabelo em pé,
é só notícia ruim, não tem bom-humor que agüente.
De qualquer maneira fui buscar a comida, e ele até sorriu quando
botei na mesa o viradinho.
Durante o jantar vi que ele franzia a testa. Perguntei se tinha posto
sal demais no viradinho. Ele disse "não, não"
já naquele tom de voz impaciente. Fechei a boca e fiquei olhando
ele disfarçadamente. De vez em quando franzia a testa e ficava
com aquele olhar distante. Comecei a me perguntar se ele não tinha
tido mesmo problemas no trabalho, com a perua da colega, ou algum relatório
- essas coisas de executivo que eu não entendo nada, minha área
é outra.
Ou quem sabe um problema de saúde.
- Foi no médico? - perguntei, de repente.
Ele me olhou como se não entendesse nada:
- Médico pra quê?
- Pra sua dor de cabeça.
- Já passou, não tenho mais - disse ele.
- Mas você esfregou o olho agora mesmo...
- Estou cansado.
- Quer deitar depois do jantar?
Eu sei no que ele pensou. Vi o olhar torto que me deu. Mas pelo amor de
Deus! Que tipo de animal ele acha que eu sou? Acha que vou sugerir sexo
quando ele está com dor de cabeça?
- EU NÃO ESTOU COM DOR DE CABEÇA! TÁ BOM?
Isso ele disse berrando. E ainda deu um murro na mesa. É o que
eu falo: o gênio desse homem é horrível. Aí
eu calei a boca e esperei ele terminar. Tirei os pratos.
- Quer sobremesa?
- Não, obrigado.
- Mas é aquele pudim de leite que você adora.
- Não, obrigado.
- Mas tem calda de caramelo.
- Não quero.
- É aquela calda de caramelo que você gosta.
- NÃO QUERO A PORRA DO PUDIM!
Deus do céu. A coisa estava feia. Com certeza ele tinha tido um
dia péssimo. Não adiantava disfarçar! No mínimo
andaram falando de novo em cortes de pessoal. Não sei pra que esquentar
tanto, ficar tão nervoso. A vida não é só
dinheiro. Tem outras coisas importantes. No fundo eu acho que o problema
dele é esse: muito apego às coisas materiais. O espiritual,
zero.
- Tá bom, tá bom, não precisa ficar nervoso.
Mas eu tinha feito aquele pudim com tanto carinho.
- Então quer seu licorzinho?
- Que licorzinho?
- Aquele que você comprou na loja de importados, semana passada...
- Aquilo não é licor. É vinho do porto.
- Whatever.
Vai querer?
- Não quero nada doce.
Hum. Já tinha entendido. Foi a calça que não entrou
nele, hoje de manhã.
Não falei mais nada.
Tirei a mesa. Bati as migalhas na pia, com cuidado para não sujar
o assoalho. Coloquei os pratos pra lavar. Tomara que a empregada não
chegasse muito tarde no dia seguinte...
Quando fui sentar na sala, ele já tinha ligado a televisão.
Estava assistindo aquele seriado de seres alienígenas, detetives
do FBI. Troço chato pra burro, não sei como ele agüenta.
Mas tem que assistir senão surta. E ai de você se falar com
ele durante o programa.
Esperei os comerciais.
- Amorzinho...
- Hum.
- Queria te dizer uma coisa.
- Fala.
Mas nem tirava os olhos da televisão.
- Você não precisa se preocupar.
- Se preocupar com quê?
- Bom... sabe... com a sua linha...
- Linha? Que linha?
- A cintura, amor.
- Como?
- A calça, meu bem. A calça que não entrou em você
hoje de manhã.
Dessa vez ele tirou os olhos da TV. Estava furioso.
- Tá me chamando de gordo, é isso?
- Não, amor. Muito pelo contrário. Eu ia dizer pra você...
- Não acredito que você tem a cara de pau de interromper
meu programa favorito pra me chamar de gordo!
Meu Deus, que gênio horrível esse homem tem! Tentei consertar:
- Pelo contrário! Eu ia dizer que aquela calça não
entrou porque foi lavar e encolheu!
- Você quer me fazer um favor? Não, mas você quer me
fazer um grande favor? Quer fechar essa matraca e me deixar ver o programa?
- Mas agora é só comercial...
- Comercial nada, olha lá, já voltou! E só passa
uma vez por semana! Mais uma palavra e eu juro por Deus que te encho de
porrada!
Foi assim mesmo que ele disse. Mais tarde eu contei pro delegado. "Então
pelo menos ele avisou", disse o troglodita, com uma risadinha. Muito
engraçado.
Claro que eu fiquei com medo quando ele falou. Às vezes ele fica
meio violento. Fui lá pro quarto e pensei em telefonar pra minha
mãe. Mas já sabia que ela ia me aconselhar, pela milésima
vez, a largar ele. E isso eu não quero.
Depois de meia hora voltei pra sala e ele continuava de olho grudado na
televisão. O seriado dos aliens já tinha acabado. Ele estava
assistindo o Ratinho. E dando risada. Pra você ver: o cara no fundo
é um grosso. Gosta do Ratinho.
- Posso falar?
Ele levantou os olhos, impaciente.
- O que você quer?
- Você precisa me dar suas roupas pra eu levar pra costureira...
É só juntar as que estão rasgadas, sem botão...
- Agora não vou fazer isso.
- Mas desse jeito você fica sem uma roupa decente.
- Agora estou muito cansado.
Disse isso com voz triste, eu até fiquei com pena. Não é
brincadeira o que esse homem se mata naquele escritório. E ninguém
dá valor.
- Você quer um cafezinho?
- Não. Já disse que não quero nada.
- Só um cafezinho pra animar.
- Não precisa se incomodar.
- Mas eu faço num instantinho! Boto a água pra esquentar
e já tá pronto!
- Eu não quero café.
- Daquele especial, que seu amigo mandou da fazenda!
- Não quero!
- Mas...
- Enfia esse café no cu!
Fui chorar na cozinha.
Era quase meia-noite quando ele foi deitar. Nessa altura
eu já tinha chorado todo meu reservatório. Ele deitou, virou
do lado, não fez nem um carinho em mim e dormiu roncando feito
um porco.
No meio da noite acordei com a luz acesa e ele xingando tudo quanto é
palavrão. Tinha levantado pra pegar um copo d'água e deu
uma topada feia no cantinho da cômoda. Deslocou a unha encravada.
Sentado na cama, uivava de dor, dizendo que estava cheio daquela merda
daquela unha, daquela bosta daquele quarto pequeno daquele apartamento
escroto e daquele emprego mais escroto ainda que fazia ele usar aquela
porra daqueles sapatos apertados.
Perguntei se ele queria ir no Pronto-Socorro. Ele não respondeu.
Perguntei se queria gelo. Ele me olhou como se estivesse com ódio
de mim. Eu não sabia mais o que dizer. Ele continuava gemendo alto
de dor. Os vizinhos iam ouvir.
E foi aí que eu cometi meu grande erro.
Perguntei se ele queria um café.
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