De todas as coisas
estranhas do amor, nenhuma é tão estranha como os acasos
que o governam. Como surge o amor? Como achá-lo? Algumas pessoas
vão até o fim do mundo para encontrar sua alma gêmea.
Outras ficam em casa e se apaixonam pelo vizinho. O amor pode escolher
suas vítimas numa feira livre ou numa festa, num avião ou
num pau-de-arara. O amor não tem horários. O amor, como
as baratas, surge dos mais estranhos lugares.
Nesse contexto, não há nada de exótico na história
de Luís Sérgio -- o rapaz que foi buscar o amor num coffe-shop,
junto com dois pãezinhos de queijo, por favor. Ao passar o dinheiro,
Luís Sérgio ergueu os olhos para a moça da lanchonete
e se apaixonou por ela. Amor à primeira vista. Acontece.
Foi um acidente. Sei lá.
Luís Sérgio ficou parado na frente do balcão por
vários minutos, olhando para a caixa com um olhar perdido. Até
que ela, caixa, finalmente lhe voltou o troco com a sua mãozinha
de unhas pontudas, cuidadosamente pintadas.
Para que fique tudo bem claro: estamos falando de um rapaz comum, prático,
sem nenhuma inclinação metafísica ou romântica.
E, no entanto, lá estava Luís Sérgio, em frente à
caixa, convencido de que uma estranha conjugação dos astros
o levara ao encontro da mulher da sua vida.
Eram dez horas de uma manhã de sábado. Ele tinha encontro
marcado com alguns colegas, mas nunca chegou ao local onde o esperavam.
Sentou-se numa das mesas do coffee-shop e pediu um café
-- vários cafés, um atrás do outro, durante muitas
horas. Os pães de queijo ele não comeu; ficaram esquecidos
à sua frente. Não foi buscar um jornal, não fingiu
almoçar, não fez nenhuma manobra para disfarçar o
seu estado. Passou o dia de sábado naquela mesa, devorando com
os olhos o seu novo amor.
E havia muito o que devorar. A moça devia pesar qualquer coisa
entre os 120 e 140 quilos. Era colossal, e alguém menos apaixonado
por ela poderia se perguntar como cabia atrás da caixa, em que
tipo de cadeira se sentaria, e outros detalhes afins. Mas quem ama não
pergunta, e portanto, o rapaz não se fez esse tipo de indagação.
Com o balcão à sua frente, tudo o que Luís Sérgio
podia ver da amada era o rosto e a parte superior do seu, digamos, corpo.
Ela parecia muito jovem. O rosto era tranquilo e plácido, cercado
por uma suave moldura de banha. Estava vestida com uma blusa preta de
mangas curtas. No ponto em que terminavam as mangas da blusa, começavam
dois imensos travesseiros brancos: os braços. Não se notava
o cotovelo, afogado na gordura. Os seios formidáveis que se avolumavam
debaixo da blusa só acresciam à sua imponência.
Luís Sérgio, que sempre exigira medidas perfeitas de suas
namoradas, estava fascinado por uma garota que podia esmagá-lo,
se caísse em cima dele. Mas é claro que esse perigo não
lhe passou pela cabeça. Pelo contrário -- de certa forma,
o que o atraiu naquela mulher monumental foi a gordura. Aquela moça,
embora jovem (e embora caixa), tinha o ar mais majestoso que ele já
vira em qualquer pessoa do sexo feminino. Parecia uma rainha. Seus gestos,
infinitamente lentos, ostentavam uma graça sonâmbula. Quando
se dignava a olhar para alguém -- um cliente, por exemplo -- seu
olhar era fixo e muito sério. Não sorria, e era quase impossível
fazê-la mover, não digo o pescoço, mas nem mesmo os
olhos.
A serena majestade da moça ficou evidente no momento em que ela
deixou o seu posto para ir ao banheiro. Gastou algum tempo se espremendo
através da estreita saída do caixa, mas não perdeu
a dignidade. Atravessou a sala lentamente, balançando as banhas
e atraindo olhares entre comparecidos e irônicos dos fregueses.
Enquanto eles torciam os pescoços para observar a passagem daquela
anomalia da natureza, Luís Sérgio contemplava a mais bela
das mulheres evoluindo à sua frente, com a suntuosidade de uma
alegoria de desfile carnavalesco. Não pôde evitar um suspiro.
Às seis e meia a moça olhou o relógio minúsculo
que adornava, como uma coleira, o seu pulso gordo. Começou a fazer
preparativos para se retirar.
Luís Sérgio pulou de susto. Adiantou-se imediatamente para
o balcão e pediu, com um sorriso nervoso (o coração
quase lhe saía pela boca):
-- A minha conta, por favor.
A moça lhe lançou um olhar aborrecido: aquele último
freguês estava atrasando sua saída. Luís Sérgio
percebeu que tinha começado com o pé esquerdo.
-- Dois pães de queijo, seis cafés... -- O senhor tomou
mesmo tudo isso? -- perguntou ela, olhando friamente para o recém-conquistado
admirador.
-- Tomei -- balbuciou o rapaz -- Vasculhou dolorosamente o cérebro
à procura de alguma coisa para dizer à moça, e, finalmente,
se saiu com o mais miserável dos chavões: -- Dia quente,
não?
A caixa concordou com um levíssimo balançar de cabeça,
enquanto esperava, com o seu olhar parado, que ele lhe desse o dinheiro.
Luís Sérgio pagou depressa, para não incorrer na
sua inimizade. Disse um apagado "até logo", e, não
obtendo resposta, saiu para a rua, muito infeliz.
Na calçada, entretanto, teve uma idéia brilhante: esperou
que ela saísse e, disfarçadamente, seguiu-a até o
seu ponto de ônibus. Foi assim que descobriu em que bairro ela morava.
Nos dias seguintes, Luís Sérgio pesquisou os hábitos
do seu novo amor. Descobriu que a moça não trabalhava habitualmente
durante o dia, e sim no turno da noite. Não teve dúvida:
passou a gastar no coffee-shop todas as horas depois do expediente
no banco, onde trabalhava. (Normalmente, naquele período, costumava
frequentar uma faculdade).
Nunca tinha sido tímido com mulheres; no entanto, teve problemas
para abordá-la. Claro, sempre podia cumprimentá-la ao chegar,
e dizer "até logo" ao sair. Demorou muito tempo, entretanto,
para que usasse essas oportunidades para dizer algo significativo. Depois
disso, houve uma fase em que passava as noites colado ao balcão,
conversando bobagens, e tentando extrair alguma reação favorável
da mulher-montanha.
Aos poucos, a persistência começou a dar alguns resultados.
Ao fim de duas semanas, Luís Sérgio já sabia, pela
ordem: que ela se chamava Carolina; que morava num bairro distante, com
a mãe viúva e os três irmãos; e que era pobre,
e tinha abandonado a escola há cinco anos para trabalhar. A moça,
afinal, não parecia desgostar de Luís Sérgio. Depois
da segunda semana, começou a lhe dar respostas mais compridas.
Chegava até a mostrar alguns sinais de animação,
quando ele entrava na loja.
Os outros funcionários do coffee-shop já tinham notado
a assiduidade do rapaz, e divertiam-se com ela. Com as costas viradas
para o balcão, Luís Sérgio não podia ver as
garçonetes e o rapaz da cozinha olharem para ele e trocarem risadinhas.
Nas horas mais mortas da noite, até se juntavam no balcão,
para acompanhar o progresso da corte. Carolina percebia tudo, mas não
saía de sua olímpica indiferença.
No fim da terceira semana de vigília, o rapaz já tinha perdido
uma prova importante na Faculdade. Agora, queria achar um lugar melhor
para encontrar Carolina, que ainda não aceitara seu convite para
uma saída. Quando não havia fregueses, sempre se podia conversar
tranquilamente; mas, infelizmente, o raio da loja era muito frequentada.
Luís Sérgio odiava cada um daqueles seres insensíveis
que distraíam a atenção da sua amada, roubando-o
de alguns segundos daquele delicioso e agonizante convívio.
Agonizante, sim, porque Carolina, embora consentisse em conversar com
ele, ainda não estava conquistada. Longe disso. Às vezes,
deixava a conversa cair em longos abismos de silêncio; e nestes
momentos, qualquer um teria pena de Luís Sérgio. Ele, que
nunca tivera dificuldade com mulheres, comia o pão que o diabo
amassou com Carolina. Ficava encostado no caixa, fazendo malabarismos
mentais para retomar o diálogo. Às vezes, quando achava
alguma coisa para dizer, um cliente vinha pagar suas contas. Luís
Sérgio lançava-lhe olhares furiosos.
-- Você está me atrapalhando. Desse jeito, vou perder o emprego
por sua causa -- acusou Carolina, severamente, num desses momentos.
O rapaz empalideceu, só de pensar naquela possibilidade. Encolheu-se
num cantinho e passou o resto da noite sorrindo para os clientes, com
uma amabilidade amedrontada.
Naquela noite, quando acabou o turno de Carolina, recolheu-se à
sua casa -- que ficava a alguns quarteirões -- muito pensativo.
Estava planejando uma forma de passar mais tempo com a moça. Tinha
certeza que com o tempo, e muita persistência, conseguiria conquistá-la.
Podia jurar que não lhe desagradava totalmente.
Mas como faria, para ter mais tempo a sós com Carolina? Uma idéia
desesperada lhe ocorreu: oferecer-lhe carona até sua casa. Podia
inventar que morava no mesmo bairro.
A mãe veio lhe abrir a porta, aborrecida:
-- Atrasado de novo, Luís Sérgio! Que é que deu em
você ultimamente? Todo dia chega aqui duas horas depois do fim da
aula!
Luís Sérgio era o seu filho preferido.
-- Onde você tem andado? Arrumou alguma namorada nova?
-- A senhora anda muito xereta, hein? -- resmungou ele.
-- Pode contar pra mamãe -- insistiu ela, toda alcoviteira. --
Quando é que você traz ela aqui?
-- Calma, Dona Ofélia! Calma! -- gritou o rapaz, subindo as escadas
para o seu quarto.
No dia seguinte,
quando o relógio marcou o fim do turno de Carolina, o rapaz, desencostando-se
do balcão, perguntou:
-- Amanhã, você quer que eu te dê uma carona? -- A
moça olhou-o, desconfiada:
-- Carona até onde?
-- Até sua casa, ué -- respondeu Luís Sérgio,
com um riso nervoso. -- Não sabe que nós somos vizinhos?
-- Vizinhos? -- disse a moça, olhando-o com um olhar suspeitoso.
-- Pois é. Eu também moro no seu bairro.
-- Mas então, porque vem tomar café aqui?
-- Eu trabalho perto. E depois do expediente -- disse, ousado -- venho
ver você.
A moça, baixando os olhos, deu-lhe algo que podia passar por um
sorriso.
-- Mas então -- perguntou, quase coquete -- porque você nunca
me ofereceu carona?
-- Meu carro estava emprestado para um primo -- respondeu Luís
Sérgio. As melhores mentiras são aquelas que vêm de
improviso.
Depois de uma longa argumentação com a mãe, Luís
Sérgio, convenceu-a a emprestar-lhe o carro todos os fins de tarde.
Depois que o coffee-shop fechava, o carrinho azul de Dona Ofélia
fazia uma longa viagem até o subúrbio, carregado com um
considerável peso extra. Carolina enfrentava as dificuldades de
entrar e sair de um carro tão pequeno com o seu aplomb natural.
Luís Sérgio ajudava-a, cavalheirescamente. Aos poucos, desenvolveu
uma técnica para enfiar a mulher dos seus sonhos no exíguo
Fiat da mãe. Era assim: primeiro, abria a porta na abertura máxima;
empurrava para trás o assento; depois, observava Carolina sentar
lateralmente, com as pernas de fora. Nesse momento, as molas do assento
gemiam, e o Fiat afundava visivelmente. A etapa seguinte era a colocação
das pernas elefantinas. Nem sempre era fácil. Às vezes,
era preciso ajudar a moça, delicadamente, a empurrar os membros
inflados para o interior do carro. A porta então era fechada uma
vez, mas a primeira tentativa sempre falhava, porque sobrava um pouco
de banha para fora. A segunda geralmente dava certo.
Ao entrar no carro, Luís Sérgio nem sequer se aborrecia
com a dificuldade de mover o câmbio; estava mais preocupado em desfrutar
o delicioso contato com a pele da sua amada.
Conversavam durante toda a viagem. A intuição de Luís
Sérgio estava certa; agora que ficavam a sós com mais frequência,
a reserva da moça diminuíra. Contava-lhe histórias
do coffee-shop: como a garçonete loira ia ser despedida
por roubar pãezinhos, ou a faxineira engravidara do oitavo filho.
Também falava da sua família, do irmão que ia casar
e da economia que a mãe estava fazendo para a festa. Conversava
gesticulando muito com as mãozinhas miúdas, e Luiz Sérgio
escutava-a em religoso silêncio, apaixonado.
Contemplava seu corpo. Às vezes, à luz incerta dos postes
de iluminação, vislumbrava os dedinhos espremidos numa sandália
de salto; ela tinha pés minúsculos, incompreensíveis
para uma mulher daquele tamanho. Não se entendia como conseguia
andar. Ao deixá-la em casa, Luís Sérgio olhava-a
caminhando até a porta com um bambolear desajeitado, e seu coração
batia mais forte.
Tentou beijá-la, mas, a princípio, não foi bem sucedido.
Carolina perguntou, indignada, o que ele estava pensando dela. Só
porque lhe dava carona, ia se aproveitar da situação?
Luiz Sérgio pediu desculpas humildemente. Nem por isso deixou de
tentar outras vezes; e, aos poucos, a moça foi amolecendo e parou
de protestar. Agora, todas as noites, na hora em que a deixava em casa,
Carolina lhe concedia vários beijos. Ficavam ali na rua escura,
às vezes por meia hora, correndo risco de assalto. Depois, Luís
Sérgio voltava para a casa, muito feliz. Colocava o Fiat na garagem
e ia dormir, à uma da madrugada.
Nessa época, o comportamento do rapaz começou a alarmar
sua família. A família de Luís Sérgio era
muito unida. Ou seja, todo mundo vivia se metendo na vida de todo mundo.
Quando alguém reclamava, ouvia a resposta lógica: "Preferia
que a gente não ligasse pra você?".
A mãe de Luís Sérgio, que era aposentada e tinha
muito tempo livre, foi ficando cada vez mais preocupada com a hora em
que o filho chegava. Como é que aquele menino conseguiria estudar
e trabalhar, dormindo toda noite à uma da manhã? Andava
pálido -- com certeza não estava se alimentando direito
-- tinha até emagrecido! E o que ficaria fazendo até aquela
hora?
Dona Ofélia passou a acordar mais cedo, para ter tempo de interrogar
o filho.
Mas Luís Sérgio tinha outras preocupações.
Afora os beijinhos roubados no carro, ainda não tinha conseguido
nada de Carolina. Nadica de nada! A moça defendia sua virtude com
uma persistência impressionante. Luís Sérgio possuía
um bom repertório de truques para essas situações,
mas nenhum deles funcionava. Por mais apaixonados que fossem os seus beijos,
a uma certa hora a moça lhe dava um gentil empurrão e avisava:
-- Preciso ir. Senão mamãe fica preocupada.
Não havia muito o que fazer. Luís Sérgio, então,
saía do carro e procedia à Operação Descarregar.
Convidou-a várias vezes para sair com ele, acenando com nomes de
boates, barzinhos e danceterias da moda, que qualquer garota adoraria
frequentar. Mas os resultados foram desanimadores: Carolina alegava que
no fim de semana precisava ajudar sua mãe com os preparativos do
casamento do irmão; ou que já tinha combinado com uma amiga;
ou que estava resfriada... Proibiu-o de visitá-la no dia de folga,
alegando que precisava descansar. Várias vezes Luiz Sérgio
pediu para entrar na sua casa, quando vinha trazê-la de madrugada;
mas ela recusava, alegando que iam acordar todo mundo.
Finalmente, uma idéia maligna começou a germinar no cérebro
do rapaz. No começo não lhe deu muita atenção,
mas, com o passar do tempo, a hipótese foi lhe parecendo cada vez
menos fantasiosa. Afinal de contas, por que não? Carolina podia
ser maior, mas nem por isso era diferente das outras mulheres. Ele já
vira tantos casos... Não seria a primeira nem a última.
Resolveu tirar suas dúvidas a limpo.
Numa madrugada de terça-feira, fingiu ir embora, apenas para estacionar
o carro um pouco mais longe, fora da vista da moça. Ficou observando
a porta da sua casa, mas não viu nada. Repetiu a mesma manobra
na quarta e na quinta; na sexta, finalmente encontrou o que estava procurando.
Alguns minutos depois da sua "partida", Carolina voltou à
porta, com um vestido diferente e uma bolsinha pendurada a tiracolo. Ficou
se balançando desajeitadamente, tentando equilibrar-se num par
de saltos quilométricos.
Não esperou por muito tempo. Logo, a rua escura foi iluminada pelos
faróis de um carro. O carro (importado, vermelho) parou em frente
à calçada onde a moça estava. Um homem de terno saltou
e beijou Carolina. Beijou-a durante vários minutos. Depois, efetuou
a mesmíssima operação que Luís Sérgio
usava para colocar a moça no seu carro. Igual, em todos os detalhes.
No dia seguinte, o rapaz nem teve coragem de ir ao banco. Pelo telefone,
inventou que estava resfriado.
Saiu de casa para evitar as perguntas da mãe, e rodou durante muito
tempo sem destino pela cidade. Às vezes pensava em nunca mais ver
Carolina. Nunca mais voltar ao coffee-shop. Ou melhor -- voltar
sim, mas só para lhe cuspir na cara! Como alguém podia ser
tão falsa, tão desleal?
Depois, caía em si: oficialmente, não era nada da moça
-- nem sequer namorado! Não passava de alguém com quem ela
trocava alguns beijos no portão, à noite. Mas Carolina podia
ter lhe contado que tinha outro. E que outro! Devia ser rico, muito rico,
para andar num carro daqueles!
Era isso, ela queria alguém com dinheiro. Mentirosa, venal, vaca!
Às seis da tarde, estava no coffee-shop, diante do balcão
de Carolina. Ela ouviu as suas acusações na maior tranquilidade:
-- Ah, você viu o William me pegar? -- disse, muito calma -- Mas
que coisa feia, ficar me espiando na rua!
O seu sorrisinho, entretanto, mostrava que estava lisonjeada com aquele
ciúme. Seu rosto gordo resplandecia, lustroso.
-- Quem é esse homem? -- perguntou Luís Sérgio, fora
de si.
Carolina começou a arrumar as moedinhas na caixa:
-- Um amigo...
-- Amigo? Não seja cínica, Carolina. Eu vi vocês dois
se beijando.
-- Ah, viu? -- disse ela, sem parecer preocupada.
-- De onde você conhece ele? O que existe entre vocês?
Carolina lançou-lhe um olhar severo. Parecia a ponto de lembrá-lo
da sua insignificância. Mas mudou de idéia, e começou
a explicar:
-- A gente se conheceu no lugar onde eu trabalhava, antes de vir pra cá.
Era uma firma de exportação. Eu servia o cafezinho.
-- E esse tal de William -- quase cuspiu o nome -- o que ele fazia lá?
-- Ah, ele era diretor. Começou a dar em cima de mim logo que entrei.
Ficou até chato, as pessoas reparavam...
-- E você? Deu bola pra ele?
-- Bom, ele era tão distinto... tão simpático...
-- e deu uma risadinha acanhada.
O sangue de Luís Sérgio ferveu. Então era isso! Bancava
a santa com ele, e, no entanto, o primeiro cretino de carro importado
já conseguira arrastá-la para um motel! Aquela mulher era
repugnante. Isso: moralmente repugnante! Ficou imaginando os dois na cama.
As caras. Os gemidos. Que horror!
-- Que idade ele tem?
-- Uns quarenta e cinco, por aí.
-- Quer dizer que você me trocou por um velho?
-- Não troquei -- corrigiu Carolina, muito precisa. -- Eu já
conhecia ele, quando você apareceu.
A argumentação tinha sua lógica. Luís Sérgio
gemeu:
-- Mas por que você não me contou?
-- Ah, sei lá... Não queria te chatear, acho.
-- Você me deixou fazer papel de bobo!
-- Não seja exagerado -- replicou Carolina, secamente -- E sai
da frente do balcão, que aquele senhor da mesa três está
vindo pagar.
Depois que o homem pagou, Luís Sérgio voltou à carga:
-- E por que o seu apaixonado vem te ver à uma da madrugada, hein?
Tem vergonha de você, é?
-- Não seja bobo, Luís Sérgio. É por causa
dos detetives.
-- Que detetives?
-- Os detetives que a mulher dele botou atrás da gente.
-- O quê, esse sujeito é casado?
-- Casado não. Ele está se divorciando.
Naquele exato momento, William Nogueira Martinez estava sentado em sua
ampla sala, localizada no últimos andar de um prédio de
luxo. Seu escritório ficava num dos endereços mais caros
da cidade.
O expediente tinha terminado, mas William aguardava uma ligação
pelo telefone celular. Não confiava na secretária, depois
que a pegara passando informações para a sua ex-mulher.
Por outro lado, também não ousava despedi-la; tinha medo
que abrisse a boca e contasse mais coisas ainda. Por precaução,
pedira que Carolina e seu advogado só se comunicassem com ele através
do celular.
Não que Carolina estivesse ligando muito ultimamente -- pensou,
preocupado. Na verdade, ontem mesmo, quando a levara a um lugar caríssimo,
ela lhe parecera um pouco distante. O que estaria acontecendo? -- pensou,
com um aperto na garganta. Ela teria conhecido outro?
Alguém mais jovem? Ele estava com quase cinquenta anos...
O toque do celular interrompeu suas reflexões. Atendeu, nervoso.
-- Wiliam? É Nélson.
Era o advogado. Não era Carolina.
-- E aí, Nélson?
-- Ela também quer o condomínio na praia.
-- Mas a Maria Rita ficou louca? Que mais ela quer? Já dei a casa,
as ações na Bolsa, dois carros, pensão para os meninos...
Daqui a pouco não vou ter onde morar!
-- Eu sei, é um absurdo. Mas é aquela história: ela
ameaça acusar você de adultério. Diz que tem provas.
-- Então ela colocou mesmo os detetives atrás de mim?
-- Ah, que dúvida, meu amigo!
-- Mas isso é uma baixeza. É indigno. Ela não pode
usar uma coisa dessas para me extorquir.
-- Não pode, mas vai usar. Infelizmente, William, divórcio
é assim mesmo. O seu azar foi ela descobrir a história antes
de você sair de casa...
-- É, isso foi péssimo. Acabou prejudicando a Carolina também,
ela teve que sair do emprego. Eu deveria ter sido mais discreto.
-- Se bem que, com uma mulher daquele tamanho, é meio difícil,
né, William?
O executivo recebeu com um silêncio gélido a risada do outro
lado da linha.
-- Não achei graça nenhuma.
-- Desculpe.
-- Realmente não achei graça. Eu aqui nessa situação...
-- Desculpe de novo. Agora, deixa eu contar a novidade: ela fez uma contraproposta.
-- Contraproposta?
-- É. Veja bem, William, eu só estou transmitindo o que
ela me falou. É minha obrigação. Não estou
dizendo que concordo com a idéia.
-- E qual é a idéia?
-- É o seguinte: vocês fazem a divisão dos bens certinha,
como manda o figurino, metade para cada um. Você fica livre para
levar a sua vida, e ela concorda com a custódia conjunta das crianças,
desde que...
-- Desde que...
-- Desde que você prometa não se casar com a Carolina depois
do divórcio. Nem ir morar com ela. Pode ser qualquer mulher, menos
a Carolina. Senão, a Rita reabre o caso, e vou te contar, William,
o advogado dela é craque. Deixou um amigo meu a zero.
-- Mas isso é um absurdo!
-- Realmente...
-- É uma indignidade! Nunca imaginei que a Maria Rita se rebaixaria
a isso! Como se não bastasse a história dos detetives...
-- Concordo que é uma vergonha, William. Mas a Maria Rita não
está no seu estado normal. Coloque-se um pouco no lugar dela: uma
mulher bonita, rica, bem-sucedida, de repente é trocada pela moça
do cafezinho! É de lascar. Ela está com o orgulho ferido.
Não está raciocinando direito.
-- Isso não é justificativa.
-- E depois, William, você me desculpe tocar nesse assunto, mas
tenho que ser franco: trocada por uma mulher que pesa o triplo dela, no
mínimo! Você já imaginou? Justo a Maria Rita, que
passou a vida inteira se cuidando, fazendo regime, ginástica, lipoaspiração...
Parece que é esse detalhe que deixa ela mais enfurecida.
-- Não acredito nisso.
-- Pois pode acreditar. Tenho certeza que, se você a tivesse traído
com uma mulher comum, a essa altura ela já estaria mais calma.
No meu ramo, você imagina, mulher furiosa com o marido não
é nenhuma novidade. Mas que nem a Maria Rita nunca vi, em trinta
anos de profissão.
Você desculpe a franqueza, mas ela quer beber seu sangue.
Nos dias seguintes, Luiz Sérgio resolveu tomar vergonha na cara.
Aquela moça não prestava, era evidente. Não tinha
moral, nem sentimentos. Resumindo: era um monstro!
Deixou de aparecer no coffee-shop. Mal-humorado, passava as noites
vendo televisão, respondendo as perguntas da mãe com monossílabos.
Uma vez até tentou ir à Faculdade, mas achou as aulas muito
chatas, os colegas uns pentelhos. A novela das oito chateava menos, e
fazia o tempo passar mais rápido.
Finalmente, uma semana depois, o telefone tocou. Era ela.
-- E aí? Esqueceu de mim?
De tão nervoso, deixou o aparelho cair. A mãe veio ver o
que tinha acontecido, mas ele dispensou-a com um gesto de mão.
Pegou de novo o telefone.
-- Pois é. Achei que, depois da última vez, a gente não
tinha muito o que conversar.
-- Ih, mas como você é sentido!
-- Sentido? Francamente, Carolina!
-- Por que você não aparece aqui no coffee-shop pra gente
bater um papinho? Estou sentindo falta da carona.
Além de tudo, interesseira.
-- Pede pro seu amiguinho vir te buscar, oras. Você não adora
ele? Não vão casar?
-- Ah, Luís Sérgio, também não é assim.
Eu gosto muito dele, mas ainda não tenho certeza se quero nada
sério. Estou pensando.
(Meio a contragosto, ele sentiu uma pitada de esperança.)
-- O William quer que a gente vá morar junto, depois do divórcio,
mas eu não sei... às vezes acho que ele é mesmo um
pouco velho pra mim.
Quer dizer, por enquanto ele está ótimo, mas já imaginou
se começa a brochar daqui uns anos? (Luiz Sérgio não
podia acreditar nos seus ouvidos). E depois, tão cedo não
vai poder casar, porque demora sei lá quantos anos pro divórcio
sair.
-- Pois é. E enquanto isso, ele vai te enrolando -- disse Luís
Sérgio, maldoso.
-- Não, enrolando não digo, ele é muito sério.
Até já me deu umas jóias muito bonitas (que bandida!
safada!, pensava Luís Sérgio), mas pediu para eu não
usar, para não dar na vista. Ele tem certeza que a mulher está
vigiando a gente.
-- Esse sujeito é um vigarista.
-- Mas como é que você pode falar assim, Luís Sérgio?
Você nem conhece ele!
-- E não quero conhecer.
-- Nossa, você ficou mesmo com tanto ciúmes?
-- Lógico que fiquei! Não sou sangue de barata!
-- Puxa, como você está bravinho. Imagine então se
soubesse do Bernardo.
-- Bernardo? Quem é esse Bernardo?
-- Um amigo meu. Fotógrafo.
Naquele exato momento, Bernardo Levinsohn estava trabalhando no seu estúdio.
Já era bem tarde, mas ele não se importava: Levinsohn cobrava
por hora.
-- Liliane, meu amor, você quer olhar um pouquinho mais à
sua direita? Só um pouquinho... Isso...(clic!) Mas que carinha
desanimada é essa? Tá tristinha? Brigou com o namorado?
-- Ih, Bernardo, eu estou tão horrorosa hoje! Tão feia!
Você já viu o tamanho das minhas olheiras?
-- (Clic!) Mas que é isso, minha flor.... que absurdo.. com esses
olhos maravilhosos que Deus te deu... é até pecado falar
assim, minha querida.
-- Mas Bernardo, hoje quando eu acordei de manhã e me vi no espelho,
te juro por Deus, levei um susto!
-- (Clic! Clic!) Que bobagem, Liliane... (Clic!) Que bobagem...
-- Além do mais, Bernardo, eu engordei. Nem tive coragem de me
pesar, mas eu sei que engordei. Está vendo aqui? na altura do quadril?
-- O quê? Engordou? Você está ficando maluca, menina?
Está que é só osso!
-- Ai, Bernardo! (biquinho) você está falando sério
ou é só pra me deixar feliz?
-- Juro por Deus, Liliane (Clic! Clic!), você está um esqueleto.
Agora, que tal se a gente passar um pouco de gelo debaixo do biquíni,
hein? Só para arrepiar os biquinhos...
Uma hora depois, assim que a combalida beldade tinha sido retirada do
estúdio, entre afagos e beijinhos, Bernardo soltou um sonoro palavrão,
estendeu-se no divã, tirou os sapatos e berrou para a assistente:
-- Eliane! Pelo amor de Deus, me traz um chá gelado! Estou desfalecendo!
A assistente foi até a geladeira, encheu um copo e trouxe-o para
o chefe, solícita:
-- Essa, realmente, encheu os picuás.
-- Nossa! A mulher é um porre!
-- Pelo menos as fotos ficaram boas?
-- Acho que sim... Quer dizer, geralmente, depois de você ficar
duas horas afagando o ego delas, até consegue alguma coisa boa.
-- E é sempre a mesma coisa: elas acham que estão gordas,
feias... e aí tem que convencer elas do contrário, senão
a foto fica uma bosta.
-- "Ai, Bernardo, você não acha que eu engordei?",
-- disse o fotógrafo, fazendo biquinho e imitando a modelo. --
Imagine só: aquela menina parece um poste.
-- É -- alfinetou a assistente -- estou sabendo que você
prefere outro tipo...
Um ar sonhador passou pelo rosto do rapaz. Seus olhos se fixaram no infinito.
Ele sorriu e, de repente, disse para a funcionária:
-- Eliane, minha querida, você quer me fazer um grande favor? Traz
pra mim aqueles contatos que eu guardei na minha escrivaninha... na primeira
gaveta, aquela de chave, sabe?
A assistente balançou a cabeça, desanimada. Depois, retirou-se,
voltando algum tempo depois com um maço de contatos.
-- Está aí -- disse ela, entregando-os ao chefe.
Bernardo começou a examinar as fotografias, extasiado.
-- Olha essa aqui, Eliane. Ela não está linda?
Com um arremedo de diplomacia, a assistente olhou a foto:
-- Bom... pra quem tem esse tipo de perversão, eu diria que ela
não é tão má.
Bernardo apertou seu tesouro de encontro ao peito:
-- Você não me compreende.
-- Eu compreendo. É reação, Bernardo. Essas modelos
anoréxicas estão levando você à loucura.
-- Falando sério: eu estou apaixonado.
-- Tá bom, tá bom, não está mais aqui quem
falou. Mas me diz uma coisa: onde é que vai parar esse romance,
hein? Faz mais de um ano que está nesse chove-não-molha.
Você já usou mais filme com ela do que com todas as suas
modelos, juntas e multiplicadas.
-- Ela é muito fotogênica.
-- Não estou negando. Mas aquelas fotos em grande angular não
ficaram muito legais não.
-- Ora, Eliane.
-- Se você gostasse mesmo dela, assumia. Levava pra morar na sua
casa, apresentava a sua filha, sei lá.
Bernardo sentou-se no divã:
-- Primeiro: a Patrícia já conhece a Carolina...
-- E o que ela achou?
-- Detestou, claro. Mas isso é normal. Segundo: eu cansei de convidá-la
pra morar comigo, mas ela não aceitou.
A assistente fez uma cara incrédula:
-- Verdade! Juro! -- Sua cara entristeceu-se: -- Vou te contar um segredo,
Eliane. Ela tem outro.
-- O quê?
-- Ela tem outro.
-- Você quer dizer que tem outro pervertido apaixonado por aquela
baleia?
-- Ele não é pervertido. É executivo de uma firma
de exportação.
Eliane deixou-se cair no divã:
-- Vocês homens estão ficando completamente loucos. E é
sério, isso?
-- Seríssimo. Ele se divorciou da mulher. Quer casar com ela.
-- Ah, então o problema é esse!
-- Pois é... Eu não gosto muito dessa idéia de casar,
assinar papelada... Nunca fiz isso na minha vida. Com a mãe da
Patrícia, nem assinei, e você viu a complicação
que deu. Mas se a coisa continuar assim, vou ser obrigado a pedir pra
ela casar comigo! É o único jeito de concorrer.
-- Sei -- disse Eliane. Havia sentado ao lado do chefe, e observava-o
com aquele olhar morno que os psiquiatras dirigem aos pacientes em surto.
-- Antes disso, eu ainda tenho um último cartucho para queimar.
Eliane, eu vou fazer com esta mulher uma coisa que, de graça, eu
só fiz com os grandes amores da minha vida.
-- Você não quer dizer...
-- Quero que ela pose nua para mim!
-- Nua?
-- Em pelo. Vai ser a glória!
-- E depois, o que você vai fazer com essas fotos? Vender pra alguma
revista médica?
-- Eliane, escute as minhas palavras: ela não vai resistir. Quando
ver o resultado, vai cair de quatro! Já conquistei um monte de
mulheres desse jeito. E tem mais: essas fotos vão ser o ponto alto
da minha obra. Não como fotógrafo comercial, é claro,
mas como artista, entende? Como artista!
-- É possível. -- disse a moça, fleumaticamente.
-- Você já ouviu falar de um pintor chamado Francis Bacon?
Inglês. Só pintava aberrações...
-- Eliane, por favor.
Em menos de dez minutos, Luís Sérgio estava de novo no coffee-shop.
-- Nossa! -- admirou-se Carolina -- Como é que chegou tão
rápido?
-- Eu moro aqui perto -- disse o rapaz, com ar feroz.
-- Ah! então você mentiu pra mim, né? E depois ainda
se queixa...
-- Carolina, onde você conheceu esse tal de Bernardo?
-- Ih! Vai ficar fazendo interrogatório de novo?
-- Se você não responder, eu saio por aquela porta e nunca
mais volto.
Era uma ameaça corajosa, mas irresponsável: Luís
Sérgio não tinha muita certeza de poder cumpri-la. Ficou
ali, parado, enquanto Carolina olhava-o indecisa. No balcão do
outro lado, as duas garçonetes estavam se divertindo.
-- Bom... -- começou Carolina -- esse aí, sabe, eu conheci
no meu emprego antes de ir pra firma do William.
-- E onde era isso? -- perguntou o rapaz. Estava desesperado, humilhado,
mas queria toda a verdade.
-- Era num laboratório de fotografia -- o amplo queixo de Carolina
tremia, como se ela estivesse, finalmente, um pouco abalada com a situação.
-- Ele ficou me olhando um tempão. Depois veio conversar comigo,
no fim do expediente. Perguntou se eu não queria posar para umas
fotos...
-- Nua? -- berrou o rapaz, transtornado.
-- Fala mais baixo! -- sussurrou Carolina.
-- Eu perguntei: nua?
-- Não, nada disso! Ele já tirou um monte de fotos minhas,
mas sempre vestida. No estúdio dele, no parque, na rua... Também
me levou pra conhecer a filha.
-- Esse também é casado? -- perguntou Luís Sérgio,
com ar feroz.
-- Não! Ele é separado. Mora com a filha. Também
quer que eu vá morar com ele. Mas não sei... A filha não
gostou muito de mim. Estou pensando.
-- Que nem com o William.
O rosto cheio de Carolina adquiriu um pouco de expressão -- o que
era raro. Parecia meditativa. Não respondeu.
-- E ele sabe da história do William?
-- Ah, sabe. Contei pra ele, assim que aconteceu. Mas o Bernardo não
é ciumento como você.
-- Carolina, eu vou embora.
-- Ah, não seja bobo, Luís Sérgio. Você não
vê como eu te trato bem? Eu nunca te menti! Te conto tudo. Olha
só: o William não sabe nem de você nem do Bernardo.
O Bernardo sabe do William, mas não sabe de você. E você
sabe de todos!
-- Que bom. -- disse o rapaz, sombrio. - Fico muito feliz com isso. -
E foi andando em direção à saída.
-- Luís Sérgio, você não vai mais me dar carona?
O rapaz murmurou um palavrão e foi-se embora. Carolina ficou olhando
para a porta, muito triste.
Luís Sérgio resolveu que nunca mais veria aquela mulher.
Nunca mais. Ela era falsa, traiçoeira, desleal. E uma galinha,
além do mais. Três, ao mesmo tempo! Ninguém acreditaria,
olhando-a no caixa -- tão estática, tão enorme, com
aquele ar quieto.
Se bem que ela até parecia gostar um pouco dele... Ficou triste
quando ele foi embora. Seria só pela carona?
Nos dias seguintes, Luís Sérgio retomou os antigos hábitos:
voltou à faculdade, saiu com os amigos. Mas não teve coragem
de contar o seu romance a nenhum deles.
Sabia que não o compreenderiam. Ele mesmo, pensando agora, não
se entendia. Uma mulher enorme, gorda como um elefante! Se tivesse dado
certo, passaria a vida com vergonha dela. Teria vergonha da sua gordura,
das suas imensas banhas, das pernas como dois presuntos aparecendo abaixo
das saias curtas...
Mas, nesse momento, Luís Sérgio começava a fungar.
Seus olhos se enchiam de lágrimas, e ele acabava soluçando
debaixo do travesseiro.
-- Você não gostou da lagosta, meu amor?
-- Não sei... Meio esquisita... Nunca provei isso, será
que não vai me fazer mal?
-- Mas de jeito nenhum! Está uma delícia! Experimente só
um bocadinho, querida.
-- Pra sobremesa você pede aquele sorvete de chocolate que a gente
comeu da última vez?
-- Peço tudo que você quiser.
Carolina começou a comer a lagosta, sob o olhar apaixonado de William.
Ele sabia que o restaurante inteiro estava olhando. Que importava! Talvez
se perguntassem o que aquele homem bem vestido estaria fazendo ali, com
aquela gorda enorme, metida em um vestido de seda com bolinhas pretas.
Sim, William já pensara do mesmo jeito. Tinha de confessar. Da
primeira vez que Carolina lhe atraíra a atenção,
pensara estar apenas curioso. Ou fascinado pela aberração.
No escritório, as pessoas estavam sempre comentando a gordura da
moça:
-- Nem sei como pode! -- dizia D. Florípedes, a secretária
de William. Ela passara a vida numa luta inglória com a balança,
e agora sentia-se feliz com o caso de Carolina, bem pior do que o seu
-- Essa menina devia ter vergonha na cara, fazer um regime... É
até ruim para a saúde!
-- Dona Florípedes, a senhora quer puxar o arquivo da SóCafé
no computador? -- pediu William, com uma voz algo metálica -- A
coitada não tem culpa, vai ver tem algum distúrbio glandular...
Distúrbio glandular! Aos poucos, fora percebendo que ela provocava,
isso sim, algo estranho em suas glândulas. Era o cheiro -- tinha
certeza que era alguma coisa no cheiro de Carolina. Cheirava limpo, mas
ao mesmo tempo, tinha um perfume doce e intoxicante, que fazia pensar
nos recessos mais secretos do seu imenso corpo... Pegava-se olhando para
ela por minutos esquecidos, agradecendo com exagerada amabilidade o café,
dominando o brusco e louco desejo de colocar a mão nos seus seios
-- só para ver o que acontecia.
Um dia, passou do pensamento ao ato. Nem sabia como arranjara a coragem!
Todo o seu corpo se retesou, o coração começou a
bater loucamente, a boca ficou seca... Nunca sentira nada parecido, desde
a adolescência.
Carolina, com a bandeja na mão, ficara por um momento olhando a
mão peluda do executivo, espalmada sob o seu peito. Ia jogar o
conteúdo da bandeja em sua cara -- pensou ele. Ia gritar. O escritório
todo ficaria sabendo -- ficaria com fama de tarado! E ela ainda podia
processá-lo...
Mas, em vez de gritar, a moça ergueu os olhos para ele, e esboçou
um lento sorriso. Um sorriso de gorda.
Dois dias depois, quando saíram juntos de um motel, William sentiu
que tinha descoberto o sentido da existência. Toda a sua vida sexual,
até o momento -- a mulher, as amantes ocasionais -- lhe parecia
vazia e sem sentido. Como pudera aturar, por tantos anos, um substituitivo
tão morno e tedioso para o amor? Carolina tinha satisfeito as suas
mais profundas fantasias -- incluindo algumas que ele nem sabia que tinha.
Infelizmente, um mês depois, o escritório todo já
estava comentando a história. Uma avalanche de fofocas rolou pela
empresa. Ele quase perdeu o emprego. E então Maria Rita soube do
caso, fez um escândalo e colocou-o para fora de casa.
Mas fora melhor assim, afinal. Agora ele podia viver com Carolina. E o
que os outros tinham a ver com isso? Passara toda sua vida preocupado
com a opinião alheias: o que achariam da sua mulher, da sua casa,
do seu carro, do seu emprego? E o que ganhara com isso? Uma úlcera!
Uma mulher chata, implicante, vazia, pomposa... Filhos que mal conseguia
ver. E de que valia tanto dinheiro, se não podia ter a mulher que
escolhesse?
Quanto a Maria Rita, confiava no seu advogado. Nélson acabaria
amansando a fera.
Beijou a mão de Carolina, que terminara de comer a lagosta, e agora
enxugava a boca no guardanapo.
-- Tenho uma surpresa para você, fofinha.
-- Primeiro pede o sorvete de chocolate -- solicitou ela, eliminando dos
lábios os últimos restos de gordura.
William chamou o garçom e fez o pedido
-- Mudei hoje para um novo apart-hotel -- disse, quando o rapaz saiu.
-- Bem mais confortável, mais espaçoso.
-- Que bom.
-- Quando é que você vai pra lá? -- perguntou William,
sem maiores rodeios.
-- Você não disse que era melhor esperar o divórcio?
-- Mas o divórcio está por um fio! -- mentiu o executivo
-- Só faltam acertar uns detalhes!
-- Ah, não sei, William...
-- Fala, Carolina -- disse ele, apaixonadamente -- Qual é o problema?
Por que você não quer ir morar comigo?
Carolina olhou para o amante durante alguns minutos. Seu olhar era inexpressivo,
quase perdido. Parecia calcular alguma coisa -- ou talvez estivesse apenas
mastigando os últimos pedacinhos da lagosta.
-- Me diga, Carolina: por quê?-- insistiu William.
A moça suspirou:
-- Puxa, William, é que sem casar... -- a frase tinha um tom queixoso.
-- Mas Carolina, querida... tente entender... agora a gente não
pode casar! Tem que esperar o divórcio!
-- E demora muito pra sair?
-- Não, não, meu amor! Dois anos, no máximo. O Nélson
talvez consiga adiantar um pouco as coisas... -- e, nos momentos seguintes,
afundou-se numa verdadeira teia de mentiras.
-- Eu entendo -- disse Carolina, melancólica -- mas, sabe o que
é?
-- Conta, minha flor.
-- Você vai me achar boba -- disse ela, baixando os olhos, timidamente.
Nas dobras do seu pescoço reluzia o colar de pérolas que
ele tinha acabado de lhe dar. Tamanho grande, pedira ao joalheiro.
-- Não, pode falar.
-- É que eu acho tão lindo casar!
William ficou olhando-a, desanimado.
-- É tão bonito! Principalmente na igreja! Eu sei que você
não pode casar na igreja -- emendou, notando o seu olhar aflito
-- Já é casado, né? Mas é que eu fico sonhando...
Aquele vestido todo branco... Branco não, eu queria de cetim cor-de-pérola,
que nem um modelo que eu vi na revista. Ah, William, é o meu sonho!
Minha cunhada está fazendo o vestido dela agora. Eu morro de inveja!
Será que a gente não podia achar uma outra igreja por aí,
dessas que fazem segundo casamento?
William concordou, resignadamente.
-- Agora o sutiã, meu bem.
-- Não vou tirar não! Ai, Bernardo, que vergonha!
-- Vergonha? Que é isso, Carolina, a essa altura do campeonato?
Vai me dizer que é a primeira vez que eu te vejo sem sutiã?
-- É, mas das outras vezes você não estava com essa
"coisa" apontada.
-- Carolina, é só uma máquina fotográfica.
-- Mas você jura que ninguém vai ver as fotos?
-- Ninguém. Ninguenzinho.
-- Ai, Bernardo...
-- Você não confia em mim?
-- Confio.
-- Então, meu amor! Juro que ninguém mais vai ver essas
fotos. Juro... juro pela cabeça da minha filha!
-- Ai, credo, Bernardo, não fala desse jeito.
E, com mais alguns protestos, Carolina finalmente deixou cair o sutiã,
tamanho extra-grande. O fotógrafo ficou olhando, fascinado.
Nunca se cansaria de olhar aqueles seios. Pareciam capazes de alimentar
o mundo. Eram imensos, absurdamente redondos. O biquinho era pequeno e
rosado: um gracioso detalhe, bem no meio daqueles magníficos montes
brancos. Bernardo ficou olhando, imóvel.
-- E aí, não vai fotografar?
Meio tonto, ele começou a bater as fotos. Um filme inteiro de peitos.
"Agora vira assim... desse jeito, um pouco mais para trás...
descruza os braços, Carolina, não precisa ter vergonha da
máquina".
Bernardo estava no paraíso. Finalmente, exausto mas feliz, depôs
a máquina, retirou cuidadosamente o filme e disse:
-- Agora o resto.
Carolina não protestou. Levantou-se do divã com certa dificuldade,
e, de pé, tirou a calcinha. Bernardo suspirou, fechou os olhos.
O cheiro. O cheiro estava no ar, em todo o estúdio. Aquele perfume
doce, quase sufocante.
-- De olho fechado não dá pra tirar fotografia, né,
Bernardo? -- reclamou Carolina. Ele abriu de novo os olhos. Ela estava
deitada no divã, com as pernas fechadas. O sexo, oculto pelo transbordamento
de carne, mal aparecia: um pontinho preto e peludo entre os duas montanhas-coxas.
O fotógrafo suspirou:
-- Minha deusa.
Uma hora depois, Bernardo estava deitado no divã, recostado em
cima de um dos seios de Carolina. Um já bastava, como travesseiro.
-- Você disse que ia só tirar fotos... -- reclamou Carolina,
languidamente.
-- Mas eu tirei -- respondeu ele, com uma voz mais lânguida ainda.
-- Depois do trabalho, a gente tem que se divertir um pouco, né?
Carolina não respondeu. Parecia ter começado a cochilar.
Houve um silêncio. De repente, Bernardo perguntou:
-- Eu sou melhor que ele?
-- O quê? -- perguntou a moça, abrindo bruscamente os olhos.
-- Melhor que quem? Ai, Bernardo, você me assustou!
-- Sou melhor que aquele babaca? O executivo?
-- Ele não é babaca.
-- Vamos, meu bem, responda.
Carolina deu uma risadinha. Voltou a fechar os olhos e sussurrou, divertida:
-- Você é melhor.
-- Eu sabia -- disse Bernardo, com um sorriso satisfeito. -- Eu sou insuperável.
-- O que quer dizer isso? Insuperável?
-- Quer dizer que eu sou o melhor de todos.
-- Um convencido, isso é o que você é.
-- Sou tão bom nisso -- afirmou o fotógrafo, orgulhoso --
como com a minha máquina. São os meus dois grandes instrumentos.
Certeiros. Nunca erro a mira.
-- Quanta besteira, Bernardo.
-- Por quê você não larga logo esse panaca e vem morar
comigo?
-- Ah, fofinho... A gente tem de começar essa discussão
de novo? -- bocejou Carolina. -- É tão enjoado.
-- Por que não? Ele é mais rico, é isso? Duvido.
Eu faço uma boa grana com as minhas magricelas, sabia?
-- Quem é que você pensa que eu sou? -- respondeu Carolina,
ofendida. -- Não pelo causa do dinheiro, não! Vocês
ficam me forçando, é muito chato, querem que a gente decida
na hora... Eu preciso pensar... O William é uma pessoa muito séria.
Ele vai casar comigo, se você quer saber.
-- Se é só por causa disso... -- começou Bernardo.
Não teve tempo de terminar a frase. Uma chave tinha se movido na
fechadura, e a porta do estúdio foi aberta bruscamente. No momento
seguinte, Bernardo estava de pé, tentando esconder o pênis
com uma das almofadas do divã.
A pessoa que abrira a porta fechou-a de novo, bruscamente, e agora estava
do lado de fora.
-- Desculpe, seu Bernardo!
-- Puxa, Dona Sônia... Não dava pra senhora ter batido antes?
-- Ué, mas eu não pensei que o senhor estivesse aqui. Sábado
não é seu dia de folga?
Era mesmo -- pensou Bernardo, contrito. Dona Sônia não tinha
culpa do que acontecera. Sábado era dia da folga, e ele costumava
entregar a chave à faxineira. Com o belo resultado que agora se
verificava!
-- A senhora me dá um minutinho, Dona Sônia, que eu vou ao
banheiro me trocar. Está bem?
-- Claro, seu Bernardo.
O fotógrafo fez um sinal para Carolina -- que mal tivera tempo
de se inteirar da situação. Cautelosamente, os dois, nus,
com a roupa debaixo do braço, se esgueiraram em direção
ao banheiro.
-- Posso entrar? -- perguntou Dona Sônia, ainda do lado de fora.
-- Pode! -- respondeu Bernardo, virando a chave do banheiro.
A porta se abriu, e uma senhora de uns cinquenta anos entrou no estúdio.
Olhou em torno de si. Uma das meias de Bernardo estava perto do divã.
Os refletores estavam todos acesos. Dona Sônia os apagou um por
um, recolheu a meia e começou a trabalhar.
Dona Sônia era um verdadeiro monstro de competência. Eliane
dizia que, quando morresse, gostaria que ela viesse organizar o velório
e o enterro - dando inclusive uma de suas eficientes espanadas no caixão.
Através dos anos, aprendera a lidar com a bagunça de Bernardo,
e trocava bilhetes com Eliane, garantindo a limpeza e organização
do estúdio. Eliane chegara até a lhe mostrar alguns dos
arquivos, e explicar o que devia ser guardado aonde, para o caso dela
encontrar algum contato ou negativo fora do lugar.
-- Bom, Dona Sônia -- disse Bernardo, saindo do banheiro alguns
minutos depois, já vestido. -- A senhora desculpe a confusão...
-- Que é isso, seu Bernardo... -- disse Dona Sônia, sem prestar
muita atenção ao fotógrafo. Estava mais ocupada em
espiar sua namorada.
Dona Sônia era uma mulata alta e magra, de modos um pouco secos.
Seus olhares imperiosos podiam ser intimidantes. Não conseguiram,
entretanto, perturbar a moça.
-- Ah, sim, Dona Sônia, esta aqui é a Carolina. Carolina,
esta é a Dona Sônia, que trabalha com a gente -- disse Bernardo,
ainda muito sem-graça.
As duas mulheres apertaram as mãos; a mais velha olhava fixamente
para a mais nova. Bernardo gaguejou algumas despedidas e se foi, puxando
Carolina pelas escadas.
A faxineira fechou a porta e abanou a cabeça, entre chocada e divertida.
"Parece um elefante", murmurou para si mesma. Depois, extraiu
um molho de chaves do avental, e começou a abrir as gavetas, examinando
metodicamente o seu conteúdo.
Aquela segunda-feira não estava sendo, certamente, um dos melhores
dias de Eliane.
Antes de mais nada, a assistente de Bernardo brigara com o namorado no
domingo. E não sem motivo: o imbecil vivia fazendo dívidas,
ficava sem dinheiro logo no começo do mês, não arranjava
um emprego melhor... E ela que pagasse as contas, claro. A briga terminara
com Walter batendo a porta e indo embora, furioso. Ainda por cima, antes
de sair de casa, ele a chamara de "possessiva e controladora".
Que cretino!
Ah, se encontrasse alguém melhor que aquele debilóide! Ela
certamente merecia. O seu chefe, por exemplo... (no ônibus, o olhar
de Eliane vagava pelo infinito). Aquilo sim é que era homem --
inteligente, doce, compreensivo, engraçado... E um gato, além
de tudo. Mas não, tinha que ter aquela fixação na
gorducha! Era incompreensível! Bernardo devia ter um parafuso solto!
Quando chegou ao estúdio, percebeu que o chefe também não
estava num dos seus melhores dias.
-- Eliane, você esteve aqui nesse fim de semana? -- perguntou, sem
cumprimentá-la.
-- Não!
-- Então, quem mais esteve?
-- Você está ficando louco, Bernardo? Eu nunca dou a chave
do estúdio pra ninguém. A não ser pra Dona Sônia,
é claro. Ela deve ter estado aqui no sábado.
-- Sim, ela veio no sábado -- confirmou Bernardo, parecendo um
pouco constrangido. -- Nós até nos encontramos. Por isso
mesmo eu queria que você entrasse em contato com ela. Hoje.
-- Hoje? Mas, Bernardo, eu não tenho a mínima idéia
de onde ela anda! A Dona Sônia tem todos os dias ocupados, pelo
que eu sei...
-- E ela não tem telefone?
-- Coitada, não tem! Ou se tem, nunca me deu o número! Mas
por que você precisa tanto falar com ela? Sumiu alguma coisa aqui
do estúdio?
-- É isso, sumiu -- confirmou o outro.
-- Bernardo, por favor, tome cuidado... Não vá fazer uma
acusação precipitada... A Dona Sônia é muito
honesta, trabalha aqui faz cinco anos e nunca sumiu um tostão da
gente!
-- Eu sei, Eliane, mas eu não estou desconfiando da honestidade
dela. É que sumiram uns negativos, entende?
-- Ah, bom. Então ela deve ter guardado em algum lugar esquisito.
Daqui a pouco você acha. Sabe como é faxineira: às
vezes, guarda tão bem, que a gente nunca mais consegue achar.
-- Não sei não. Estou achando essa história muito
estranha.
-- Mas quais eram esses negativos? Trabalho importante? Foi aquela campanha
do absorvente que você fez na sexta-feira, é isso?
-- Não, não -- desmentiu Bernardo, com um gesto impaciente.
-- São umas coisas minhas. Particulares -- disse, parecendo de
novo muito embaraçado.
Eliane olhou para o chefe:
-- Ah, já sei.
Os dois se conheciam tão bem, que ela não precisou perguntar
mais nada.
-- Bom, então não precisa se preocupar. Por que ela mexeria
nesses negativos? Vai trabalhar que eu dou uma procurada nas gavetas.
Deve estar por aqui, em algum lugar.
Na terça-feira, William estava no meio de uma reunião, quando
foi chamado pela secretária.
-- Eu avisei que não devia ser interrompido, Dona Florípedes.
-- disse, irritado, ao passar para a ante-sala.
-- Desculpe, Dr. William, mas é o seu advogado. Ele disse que era
muito urgente, e para eu interromper qualquer coisa que o senhor estivesse
fazendo.
O executivo pegou o telefone:
-- William? -- disse a voz do outro lado. -- É Nélson. Largue
tudo e venha correndo para o meu escritório. Tenho uma bomba pra
você.
-- William, calma. Calma.
Branco como uma folha de papel, o executivo examinava obsessivamente,
uma a uma, as fotos espalhadas pela mesa do Dr. Nélson.
-- Mas como? Como?
-- Como o quê, William?
-- Eu nem consigo pensar direito... -- Passou a mão pelo rosto,
arrasado -- Antes de mais nada: quem tirou essas fotos?
O advogado olhou compassivamente para o seu cliente.
-- Você quer mesmo saber, meu querido?
-- Quero. Me conte, Nélson. Qualquer coisa é melhor que
essa incerteza.
O Dr. Nélson sentou-se ao lado de William. Vagarosamente, pescou
um envelope amarelo de dentro do seu paletó. Abriu-o e tirou uma
foto, que passou para o outro:
-- O nome do cara é Bernardo Levinsohn. Fotógrafo. -- Olhou
para o rosto do amigo -- Você já deve ter ouvido o nome dele;
trabalhou em campanhas de publicidade muito importantes. Além disso,
nove entre dez capas de revistas masculinas preferem ser fotografadas
por ele.
William olhava para a foto, que mostrava um casal aos beijos, num banco
de praça. Era Carolina mesmo. O rosto estava nítido e, além
do mais, ele reconheceria aquele vestido de bolinhas em qualquer lugar.
-- Trabalho de profissional -- comentou Nélson. -- Essa aí
foi tirada com uma teleobjetiva e, cá entre nós, nem o Levinsohn
conseguiria fazer melhor. A Maria Rita deve estar gastando uma fortuna
com essa tal agência.
-- Mas como é que ela descobriu o caso dos dois? -- perguntou William.
Sua voz estava empapada de dor.
-- Nada mais fácil... Desde o começo eu estava te avisando,
ela colocou detetives atrás de vocês. E com certeza mandou
essa gente ficar também atrás da Carolina, 24 horas por
dia.
-- E essas aí? -- perguntou William, apontando com o dedo para
as fotos espalhadas pela mesa. Parecia enojado.
-- Ela mesmo me confessou: subornou a faxineira do sujeito. Na minha opinião,
o objetivo não era tanto desmascarar a Carolina, e sim dar uma
espécie de toque final no serviço. A cereja em cima do bolo,
entende? Essas fotos estão aqui pra te chocar.
William ergueu os olhos, patético, para o seu amigo:
-- Mas será que eles têm um caso mesmo? Não seriam
só fotos... artísticas? Quer dizer, talvez a relação
entre os dois seja só de fotógrafo e modelo...
-- William... se você ficar negando a realidade, vai ser pior ainda.
Eu tenho mais fotos dos dois juntos. Não quero mostrar todas para
você. E tem mais uma coisa. Todo cuidado com a Maria Rita, agora,
é pouco. Ela pode usar essas fotos na questão da custódia
dos seus filhos. Se isso aparecer num tribunal, estamos fritos. Juiz nenhum
vai acreditar que você pode oferecer um ambiente saudável
para as crianças. -- Guardou a foto cuidadosamente de volta no
envelope amarelo.
William deu um murro na mesa. Em seguida, começou a chorar, aos
soluços. Nélson, solidário, dava tapinhas no ombro
do amigo. Lá por dentro, felicitava-se por não ter precisado
mostrar a outra série de fotos -- aquelas com o rapaz do Fiat.
-- Não tem jeito, Bernardo. Procurei feito uma louca. Consegui
localizar a Dona Sônia, mas ela também não sabe de
nada. Os negativos sumiram.
Eliane odiava dizer ao chefe que tinha fracassado. Com os braços
caídos, ela olhava para o fotógrafo com um ar desanimado.
A última manequim do dia acabara de sair, depois de uma longa crise
de choro. Maníaca-depressiva, pelo que Eliane soubera na agência.
Aquela tinha sido uma quarta-feira terrível para Bernardo Levinsohn.
-- Não precisa se preocupar -- respondeu ele, desligando os refletores.
-- Eu já sei onde estão esses negativos.
-- Já sabe? Você achou? Que bom!
-- Os negativos, propriamente, eu não achei, mas em compensação
já tenho várias cópias, de ótima qualidade.
Chegaram pelo correio -- e apanhou, em cima de uma cadeira, um envelope
amarelo. -- Veja você mesmo.
Eliane abriu o envelope e deu um gritinho de susto:
-- Bernardo! Que horror! Quer dizer... quem tirou eles daqui?
-- A Dona Sônia, é claro.
-- A Dona Sônia? -- repetiu Eliane, horrorizada.
-- Quer dizer, ela roubou os negativos e entregou para alguém.
Imagino que deva ter sido muito bem paga para fazer isso -- disse Bernardo,
encolhendo os ombros - Você entende, alguém está usando
essas fotos para prejudicar a Carolina.
Eliane ficou olhando o chefe, perplexa.
-- Bernardo, você me desculpe, eu posso ser meio burra, mas não
entendi.
Bernardo suspirou:
-- É uma longa história, Eliane. Você não ia
querer ouvir.
Nesse momento, alguém bateu furiosamente na porta.
-- Foi você, Bernardo. Eu tenho certeza absoluta que foi você.
Carolina ofegava e estava vermelha. Furiosa. Bernardo nunca a vira daquele
jeito -- chegou a sentir uma ponta de medo.
-- Carolina, meu docinho, fica calma. Senta aqui.
-- Calma coisa nenhuma!
-- Mas, Carolina, por que eu faria uma coisa dessas?
-- Foi você sim, pensa que me engana? Estava louco para tirar o
William da jogada e mandou essas fotos para ele.
-- Mas meu amor...
-- Quem mais podia ter feito isso, Bernardo? Quem?
-- Carolina, não foi nada disso. Lembra da Dona Sônia?
-- Você é um estúpido! -- explodiu a moça --
Até o Dr. Nélson, o advogado do William, viu as fotos! Quase
morri de vergonha!
-- Juro por Deus, não fui eu quem mandei essas fotos para ele!
Foi outra pessoa qualquer -- a ex-mulher dele, provavelmente! Você
não disse que ela estava seguindo vocês?
Carolina nem sequer o ouvia:
-- E você me jurando que ninguém ia ver as fotos! Jurou pela
sua filha! Nunca mais confio em você! Seu traidor, sujo!
Bernardo perdeu a paciência:
-- É muito engraçado você falando de traição...
Foi um erro tático grave. Já descontrolada, Carolina acabou
de perder a cabeça com aquelas palavras. Avançou para o
namorado feito uma fúria:
-- Seu cretino! Sujo! Nem que eu dormisse com tudo quanto é homem
na rua, você tinha direito de fazer uma coisa dessas comigo, ouviu?
Nunca! -- e pontuava suas palavras com selvagens bolsadas, atiradas a
esmo na cara do rapaz. Bernardo foi se encolhendo num canto, tentando
se proteger com os braços, apavorado com aquela fúria.
-- Eu não fiz nada, Carolina, juro!
Mas as bolsadas continuavam. Nessa altura, Eliane, que se retirara diplomaticamente
da sala, voltou às pressas:
-- Você me desculpe, Carolina -- disse, segurando com firmeza o
braço da moça -- mas isso eu não posso permitir.
Surpreendentemente, a surra foi suspensa. Carolina recolheu a bolsa, pendurou-a
nos ombros e disse, choramingando:
-- Nunca passei por uma situação pior na minha vida. Foi
horrível! O William disse que nunca mais quer me ver. Me chamou
dos piores nomes, você nem imagina. E eu ali, tendo que ouvir tudo
calada... Praticamente me botou pra fora do escritório, e ele ia
casar comigo, seu indecente, sujo!
Com o lábio sangrando -- a bolsa de Carolina tinha uma fivela cortante
-- Bernardo ainda tentou falar:
-- Mas meu amor, já te disse, não fui eu!
A moça olhou-o com o maior desprezo:
-- Estou cheia de vocês homens, sabia? Cheia, cheia, cheia! Todos
querendo mandar em mim, me humilhando, fazendo escândalo, topando
qualquer sujeira pra me controlar. Só falta me botar um cadeado!
Você, o William, o outro, são todos iguais!
-- O outro? -- disse Bernardo, empalidecendo.
Carolina virou-se para ele, vitoriosa:
-- O outro, sim, babaca! Não sabia que eu tinha um outro? Tive
o tempo todo, viu?
Bernardo soltou um gemido.
-- E tem mais outra coisa -- acrescentou Carolina, já se preparando
para sair. -- Nunca mais na minha vida poso pra você! Você
é uma porcaria de fotógrafo, tá? Saí horrível
nessas fotos! Saí gorda! -- E, ato contínuo, bateu a porta.
Houve um estrondo; e em seguida, por alguns segundos, o estúdio
ficou em silêncio.
-- Meu Deus -- sussurrou Eliane, horrorizada. -- Meu Deus do Céu.
Bernardo ergueu a mão, suplicante.
-- Não fala nada agora, Eliane, por favor. Não fala. Quer
ser um anjo e fazer uns curativos em mim?
Mas quando Eliane voltou, trazendo mercúrio, esparadrapo e desinfetante,
não poupou o chefe:
-- Que mulher horrível, Bernardo! Como você foi se meter
com ela?
-- Dessas coisas que acontecem... -- gemeu o fotógrafo.
Eliane continuou a desinfetar as feridas do rapaz.
-- Ela é completamente louca. Que é que você vai dizer
pra sua filha, quando chegar em casa hoje à noite? Que um caminhão
te atropelou?
-- Não sei... Ai, Eliane! Ai!
Quando terminou a desinfecção, a moça olhou para
ele, e sentenciou:
-- Só sei uma coisa, Bernardo. Se você for louco o suficiente
pra procurar de novo essa criatura, eu te dou uma surra pior que a dela.
Combinado?
-- Puxa, Eliane... ai! Você não seria tão malvada.
-- O seu estúdio vive cheio de mulheres lindas. Se elas não
são do tipo que você gosta, eu tenho uma amiga gordinha que
é uma graça. Posso te apresentar. Mas pelo amor de Deus,
não traz mais essa maluca aqui. Eu peço demissão.
Bernardo conseguiu sorrir - um sorriso frágil.
-- Tá bom, Eliane. Agora vamos mudar de assunto, sim? Vamos falar
de outra coisa. O mongolóide do seu namorado já voltou pra
casa?
E foi assim que Carolina destrocou horários com uma colega, que
estava louca para trabalhar de dia outra vez. Voltou a atender a caixa
do coffee-shop à noite, na esperança de que Luís
Sérgio aparecesse. Ele era tudo que lhe sobrara.
Mas as noites passavam, uma a uma, cada vez mais solitárias. O
rapaz nunca mais voltou. Carolina sentia falta dele; afinal, agora tinha
que voltar de ônibus para casa.
William e Bernardo também não apareceram mais, nem deram
sinal de vida. Carolina tinha que confessar que sentia falta deles. A
vida sem homem era muito chata. Talvez o Bernardo, que era mais bonzinho...
Mas não, ele não a procuraria de novo. Não depois
daquelas bolsadas.
Agora que tudo tinha passado, Carolina se sentia um pouco arrependida
do que fizera.
Pensando melhor, talvez não fosse mesmo ele quem mandara aquelas
fotos... Talvez estivesse falando a verdade, coitado. Mas também,
os homens eram um saco! Ele não vivia implicando com o William?
Estava cansada de administrar os homens. Bastou dar uma dormidinha com
eles, e pronto, já querem te controlar, saber onde foi, proibir
de ver outros. Ficavam fazendo aquelas cenas desagradáveis de ciúme
e ela tinha de aguentar, ouvir um monte de abobrinha. Que saco! Era exatamente
como tinha dito ao Bernardo: se eles pudessem, tascavam um cadeado lá
embaixo, e engoliam a chave! A única coisa que podia fazer como
quisesse, quando quisesse, com quem escolhesse -- e eles queriam controlar!
Um homem só era muito chato, enjoava. Gostava de variedade. E não
tinha o direito de se divertir um pouco, puxa? Passava o dia ouvindo as
besteiras da sua mãe, ajudando a costurar o enxoval da cunhada;
à noite, vinha àquela porcaria de coffee-shop, que pagava
mal para burro, e ficava aguentando fregueses chatos até meia-noite.
Tudo porque William, tão metido a importante, não quisera
lhe arranjar um emprego melhor, quando saíra da firma de exportação.
Aliás, o William não passava mesmo de tremendo enrolão.
Meu amor, minha vida, mas casamento que é bom, nada: o máximo
que oferecera fora morar com ela. Amigado. Bom, isso, o Bernardo também
tinha oferecido, né? Os homens não eram de nada mesmo.
O resto do pessoal do coffee-shop também estava frustrado
com a vida sentimental de Carolina. Que monotonia! E antes eles se divertiam
tanto... Será que o coroa de terno e gravata nunca mais ia aparecer?
Nem o bonitão que usava óculos escuros, aquele simpático?
E o mais engraçado de todos, o rapaz que passava a noite ali, babando
na frente dela -- nunca mais apareceria, também? Que droga! A gente
não pode ter um pouco de diversão! Quando apareceria outro
homem, para esfregar a barriga no balcão da Carolina?
Até que, numa noite em que Carolina pegou outro caminho para ir
ao coffee-shop, topou com um Fiat muito conhecido, na garagem de
um sobrado.
Era o carro do Luís Sérgio, só podia ser. Ela o reconheceria
em qualquer lugar. Estava se lembrando até do amassado no lado
esquerdo do pára-choque. O adesivo da faculdade no vidro de trás...
Só podia ser dele!
E, se era o seu carro, aquela devia ser a sua casa. Sem pensar mais nem
um minuto, Carolina apertou a campainha.
Ora, como já dissemos no começo dessa história, o
amor se aproveita de curiosos acasos. (Na verdade, o amor nada mais é
do que uma soma de acasos.) Aconteceu, portanto, que Luís Sérgio,
naquela noite em particular, não saíra de casa. Estava com
uma gripe forte. Deitado no sofá da sala, bastante febril, o rapaz
apertava debilmente os botões do controle remoto da TV. Mas não
conseguia achar, de jeito nenhum, a reprise de "Perdidos no Espaço".
Foi então que ouviu o ruído estridente da campainha. Droga
-- pensou. Para cúmulo dos seus males, a mãe estava passando
o dia no interior, para o funeral de uma tia. Não havia mais ninguém
em casa. Ele teria de atender a porta -- e provavelmente seria um daqueles
vendedores pentelhos, tentando lhe empurrar rodos, panelas, máquinas
de picar legumes...
Se fingisse que não estava ouvindo, talvez a pessoa fosse embora.
Outro toque da campainha, dessa vez mais impaciente. Podia ser alguma
coisa importante... Luís Sérgio saiu penosamente da sua
cama, e foi para o andar de baixo, se arrastando. Fraco, debilitado, ele
abriu a janela e espiou o portão, lá embaixo.
-- Carolina!
Sua garganta trancou-se, seu coração se acelerou. Fazia
dois meses que não a via. Tinha jurado nunca mais vê-la.
Pensava que estava esquecendo. Mas agora a sua figura cilíndrica,
vista de baixo para cima, ali postada no portão do sobradinho,
atingia-o com uma poderosa onda de dor e prazer.
Ela lhe deu um dos seus sorrisos ambíguos:
-- Não vai abrir pra mim?
Sim, ele ia. De pijama mesmo, suado, desmoralizado, ele ia abrir a porta
para aquela galinha, vaca, amoral -- que provavelmente viera rir da sua
desgraça.
-- Você está doente? -- perguntou ela, quando o rapaz abriu
o portão. Ele afetou indiferença:
-- Um pouco. Uma gripe, nada grave...
-- Posso entrar? -- perguntou ela, olhando por cima do seu ombro, curiosa.
Fazer o quê? Os dois subiram as escadas, vagarosamente: Luís
Sérgio arrasado pela gripe; Carolina, porque subir escadas não
era fácil para uma pessoa do seu tamanho. Luís Sérgio
teve uma visão alucinatória dos dois andando assim, lado
a lado, vagarosamente, dali a dezenas de anos.
-- Bonitinha a sua casa -- comentou Carolina, ainda ofegante, relanceando
um olhar pela sala de visitas. -- Você está aqui sozinho?
E acompanhou a pergunta com um sorriso insinuante.
-- É, minha mãe viajou, meus irmãos saíram...
-- Me leva pra conhecer lá em cima?
O coração de Luís Sérgio disparou mais ainda
-- coisa que ele nunca supusera possível.
-- Lá em cima? -- repetiu, feito um idiota. Um perfume doce e selvagem,
intoxicante, enchia o hall arrumadinho. Nas paredes, os netos de Dona
Ofélia -- seus sobrinhos -- espiavam.
-- É, os outros cômodos, seu quarto...
Luís Sérgio pegou o braço da moça, e conduziu-a,
vagarosamente, por mais um penoso lance de escadas. Andava com os ombros
caídos, como um homem vencido pelo destino.
Um observador que estivesse postado no andar de baixo ouviria, várias
horas depois, uma série de ruídos estranhos e incongruentes,
vindos do andar de cima:
-- Isso, meu amor. Por cima. Vem por cima dessa vez.
-- Mas eu vou te machucar...
-- Não. Senta assim. Desse jeito. Bem em cima. Ai!
-- Te machuquei?
-- Não, é que está bom demais... Carolina (ai!)...
-- Que foi?
-- Casa comigo?
Esta última frase foi seguida de uma série de gritos femininos,
em crescendo, e de alguns uivos masculinos. No meio da sinfonia, ouviu-se
um estrondo fragoroso, como se algo viesse abaixo. TUM! Outros uivos e
gritos, já mais fracos. Em seguida, uma voz feminina:
-- De verdade?
Estava tudo acabado -- garantiu Carolina, recostada no ombro do rapaz,
algumas horas depois, num motel. E ela não se referia apenas à
gripe dele.
Mandara os dois outros embora, já fazia tempo. Eles não
chegavam aos seus pés. A proposta de casamento, então, eliminara
as suas últimas dúvidas. Não sabia viver sem Luís
Sérgio. Nunca sentira nada parecido na cama, com homem nenhum.
Nunca! Será que ele não estaria disposto a recomeçar,
pela décima-quarta vez?
Procurar apartamento, comprar enxoval, marcar a cerimônia na igreja,
fazer o vestido, apresentar a mãe a Luiz Sérgio, apresentar
a mãe à Carolina, comprar as alianças, comprar fogão
geladeira máquina de lavar. Ufa, ufa, reclamava a noiva, assim
quase não dá tempo de trepar.
-- Você vai casar mesmo com ela, Luiz Sérgio?
-- Não, Carlinhos. Vou casar com a tua noiva.
-- Não fica assim bravo. Eu sou teu irmão. Só quero
o teu bem. Você já pensou numa coisas dessas? Viver o resto
da vida com esse mamute?
-- Não fala assim da Carolina!
-- Desculpe. Mas pensa bem, Luís Sérgio. Casamento é
coisa séria... Você vai viver o resto da vida com ela, acordar,
dormir, ter filhos...
-- Ótimo, é isso mesmo que eu quero.
-- Por que você não pede pra ela fazer um regime, então?
Pelo menos pra entrar no vestido de noiva... A mãe dela, quando
veio aqui, reclamou que não tinha cetim pérola que chegasse.
-- Ah, Carlinhos, não enche o saco, vai.
-- Pelo menos um regimezinho! Com uns cem quilos ela já ficava
bem melhor. Peso demais prejudica a saúde. A coitada da mamãe
não se conforma, ontem chorou a noite inteira. Quando viu a Carolina,
pensou que você tinha ficado louco.
-- Carlinhos, eu não quero brigar com você, mas se você
continuar...
-- Não é por mim. Eu não ligo, juro. Não tenho
preconceito. Um dos meus melhores amigos é o Tião, que estava
na minha classe, lembra? um que uma vez ficou entalado na roleta do ônibus...
-- (...)
-- Você é maior, vacinado, faz o que quiser. Mas francamente,
acho que você devia ter mais consideração com a mamãe.
Ela está arrasada. E tem outra coisa: até agora você
não consertou o estrado da cama dela, como prometeu.
-- Você vai continuar trabalhando aqui no coffee-shop? --
perguntou, respeitosamente, o moço da chapa.
Carolina, muito consciente da grossa aliança no dedo direito (Luís
Sérgio fizera questão do modelo mais vistoso), respondeu,
com ares de importância:
-- Enquanto não aparecer coisa melhor... Mas eu já falei
com o gerente, e ele ficou de me dar uma promoção, se eu
fizer um cursinho de contabilidade. Sabe como é, esse emprego é
prático para nós dois. Fica pertinho de casa.
-- Vocês conseguiram mesmo aquele apartamento da rua de baixo?
-- Foi uma luta, mas a gente conseguiu. Só não quero passar
o resto da vida lá. Muito perto da sogra...
Nesse exato momento, a porta envidraçada do coffee-shop
se abriu, e Bernardo Levinsohn entrou.
Instantaneamente, houve um movimento de frenético interesse junto
ao balcão. As garçonetes, mal refeitas ainda do sensacional
noivado de Carolina, juntaram-se num verdadeiro enxame para observar o
que se passava. Discreto, o rapaz da chapa voltou ao seu posto.
Bernardo encostou-se perto da moça, com aquele sorriso meigo que
já tinha tantas admiradoras:
-- Tudo bem, Carolina?
A caixa baixara os olhos. Não ousou responder. Bernardo tomou-lhe
a mão, desembaraçadamente, e começou a acariciá-la:
-- A essa altura você já deve ter percebido que eu não
mandei foto nenhum para ninguém, não é?
-- Pois é... -- balbuciou Carolina, muito corada e confusa. --
Você me desculpa, Bernardo. Nem sei o que deu em mim. Morro de vergonha,
quando lembro.
Outro sorriso irresistível. Carolina, levantando os olhos, não
pôde deixar de reparar, mais uma vez, no quanto ele era bonitão.
Claro, não parecia com esses moços que a gente vê
em propaganda de calça jeans. Mas tinha alguma coisa... Aqueles
olhos cinzas... Pena o nariz ser muito grande. Uma vez ele lhe contara
que a sua família tinha origem estrangeira. Deviam ser turcos.
-- Não quer ser minha modelo de novo? Prometo que refaço
aquelas últimas fotos, se você não gostou. Vão
ficar lindas.
Carolina balançou a cabeça, e retirou a mão das do
fotógrafo.
-- E tranco os negativos num cofre. Juro.
-- Não vai dar, Bernardo. Desculpa, mas não dá.
-- Por que não?
Orgulhosa, a caixa levantou a mão e exibiu a aliança. A
expressão de Bernardo mudou.
-- Você está noiva, é isso? Vai se casar? -- Carolina
respondia com enérgicos acenos de cabeça. Seu rosto brilhava
de orgulho.
-- Com quem?
-- Lembra daquele rapaz que eu te falei? O outro? -- perguntou Carolina.
-- Ah, sei... -- Bernardo estava visivelmente murcho. Suspirou e depois
perguntou, fingindo uma curiosidade amável: -- Quando vocês
vão casar?
-- Daqui a três semanas.
O fotógrafo ficou olhando para a moça, melancolicamente.
Podia ver que ela estava radiante. Realizara o sonho da sua vida: entrar
numa igreja iluminada e cheia de gente, responder às perguntas
do padre, sair arrastando o longo vestido... Carregar um buquê de
margaridas... Quantas vezes já não lhe descrevera essa cena?
E ele, é claro, fingia ignorar a mensagem oculta em suas palavras.
Ela queria casar. Casar, ter filhos, uma casa, e um marido assistindo
ao jornal das oito, quando voltasse do trabalho. Carolina, afinal, só
queria o que todas as outras mulheres queriam: casar. Por que haveria
de ser diferente? Só porque pesava mais de cem quilos? Ou porque
era um furacão na cama?
Por um momento, só um momento, chegou a pensar em satisfazer aquelas
aspirações. Mas lembrou-se do seu estúdio silencioso,
do apartamento onde morava com a filha, da sua vidinha tranquila, das
modelos que, afinal, nem sempre eram tão más... E lembrou-se
de Eliane; Eliane, que, de uns tempos para cá, parara de falar
do namorado, e, estranhamente, ganhara alguns quilos.
Vários quilos, para falar a verdade.
Sorriu de novo, passou a mão delicadamente no duplo queixo de Carolina,
e disse:
-- Felicidades, minha querida. O que você quer de presente de casamento?
Eu posso fotografar a cerimônia.
William Martinez continuou separado, mesmo depois da história das
fotos. Maria Rita procurou-o um mês depois, dizendo que, se ele
quisesse, podia voltar. Em nome da felicidade dos filhos, ela tentaria
perdoá-lo.
William recusou a proposta. Maria Rita, indignada, perguntou se ele continuava
com "aquela moça". O executivo respondeu negativamente.
Ela não podia entender -- disse. Carolina, apesar de tudo, o fizera
redescobrir o sentido da vida. Inclusive, talvez fosse preciso discutir
de novo o problema da pensão. Estava pensando seriamente em abandonar
o emprego. Não era feliz naquele lugar.
O casamento de Carolina e Luís Sérgio foi esplendoroso,
e o pessoal da coffee-shop compareceu em peso. Família e amigos
dos dois noivos lotaram a igreja, repleta de flores. Como órfã
de pai, a noiva entrou na igreja pelo braço de Carlinhos, o irmão
do noivo -- muito compenetrado, e lutando para não tropeçar
na imensa cauda do vestido da cunhada.
Bernardo Levinsohn cumpriu a promessa, e fotografou o casamento. Divertiu-se
muito: não fazia aquilo há mais de vinte anos, desde que,
garoto, começara na profissão. Resolveu tirar as fotos que,
naquele tempo, sempre quisera fazer, e não pudera. Desapercebido
na multidão de convidados, que não o conheciam, tirou instantâneos
da cerimônia: a mãe da noiva limpando o suor do rosto, os
padrinhos cochichando um ao ouvido do outro, as pequenas damas de honra
atracando-se entre si -- para depois reaparecerem, arrumadas e impecáveis,
escoltando a noiva que entrava na igreja.
E fotografou, sobretudo, já perto do altar, a cara embasbacada
do padre, ao ver a moça, colossal, caminhando em sua direção
(Carolina engordara mais alguns quilos nas últimas semanas). Quando
ela finalmente postou-se ao lado de Luís Sérgio, o fotógrafo
fechou os olhos para respirar, pela última vez, o doce perfume.
Ao reabri-los, notou que o padre, deslumbrado, não conseguia tirar
os olhos da noiva. Bernardo sorriu, ajeitou o flash e tirou mais uma foto.
FIM
|