1986
Nem sempre
é fácil entrar em contato com a realidade. Sentado em frente à sua escrivaninha,
naquela noite fria de julho, Bernardo olhava alternadamente para uma calculadora
e uma folha de papel. Na calculadora, ainda brilhava um número digital.
Um número negativo.
-- Porcaria - gemeu ele. - Porcaria. -- Três meses depois da morte de
sua mãe, ainda não conseguia dizer palavrões. Era uma espécie de homenagem
póstuma.
Olhou de novo a folha de papel. A coluna de Receita não estava ruim. O
rendimento do estúdio vinha crescendo, aos poucos. Claro, ainda não surgira
a grande chance, o trabalho que tornaria o seu nome popular no mercado
publicitário. Mas enquanto ele não aparecia, Bernardo ia levando.
Só que a coluna de Despesas era inapelável. Já cancelara, sem grandes
mágoas, a compra de um carro novo. O resto não podia cancelar. Aluguel
do apartamento -- bem, tinha que morar em algum lugar. Aluguel do estúdio:
não podia receber os clientes na rua. Salário de Eliane: impossível manter
o estúdio sem a moça, que além de assistente, secretária e quebra-galhos,
era sua amiga.
O orçamento vinha se equilibrando -- até surgir essa despesa extra...
De certa forma, era um gasto previsível. Mas surgira numa péssima hora,
quando ele acabava de renovar todo o seu equipamento fotográfico.
-- Daqui a três meses entra a pasta de dente - disse, em voz alta, para
as paredes do apartamento.
A campanha do dentifrício era uma oportunidade que ele esperava ansiosamente.
Um amigo de Bernardo trabalhava em uma agência de publicidade, e lhe prometera
o trabalho. Era muito dinheiro - dinheiro seguro, de multinacional.
-- Não tem mosquito - prosseguiu ele, ainda em voz alta.
Pelos seus cálculos, a pasta de dente atenderia àquela despesa extra,
pelo menos por um ano. Mas, enquanto aquele trabalho não viesse, como
se arranjaria?
-- Preciso de um frila - concluiu.
Suas palavras ecoaram na sala vazia. Logo em seguida, um ruído estranho
veio do quarto - um som fino e agudo. Bernardo levantou a cabeça. O som
se repetiu, mais alto. Parecia uma risadinha.
-- Patrícia? - chamou Bernardo.
Uma terceira risadinha soou, dessa vez acompanhada de um grito agudo.
Bernardo foi até o quarto e abriu a porta. Patrícia olhou para ele e gritou:
-- Olha, pai, como eu tô bonita!
Bernardo não sabia se ria ou chorava. Enquanto ele fazia as contas, Patrícia
descera do berço e fora remexer nas gavetas do pai. Acabou achando o troféu
que, agora, vestia a sua minúscula pessoa.
-- Não tô bonita? - repetiu ela, com um sorriso radiante. Bernardo correspondeu
ao sorriso.
Muito tempo atrás, uma garota esquecera aquele sutiã preto em seu armário.
Era um horror - ainda mais com o detalhe das lantejoulas vermelhas no
bico. Mas Bernardo tinha os seus motivos para guardá-lo. Felizmente, Patrícia
só tinha três anos, e ele não precisava lhe explicar de onde vinha o sutiã.
-- Ficou muito bonito! - aplaudiu ele - Agora que papai já viu, vamos
tirar? - e, juntando o gesto à palavra, começou a escorregar a alça do
bracinho da menina.
-- Não! - disse ela, sacudindo a cabeça energicamente.
-- Precisa, filhinha. Vamos tirar - Com que cara ficaria, se Tânia chegasse
de repente e encontrasse a filha ali, vestida com aquele artefato erótico?
Tânia e Bernardo não se davam mal, mas ela ainda guardava ressentimento
pelas suas inúmeras infidelidades, na época em que viviam juntos.
-- Tira isso, Patrícia - repetiu, já com uma certa irritação na voz.
-- Não tiro! - teimou ela. Bernardo mudou de tática:
-- Se você tirar - disse, usando sua voz mais suave - papai te mostra
o livro do boi.
Os olhos da menina brilharam:
-- Mostra mesmo?
-- Mostro.
Convencida, Patrícia levantou os braços, e permitiu que ele retirasse
o sutiã, imediatamente guardado numa prateleira inacessível.
-- O boi! - exigiu ela, logo em seguida.
Com um suspiro, Bernardo pegou a filha no colo e levou-a até a sala. Tão
cedo ela não dormiria de novo. E sabe-se lá a que horas Tânia voltaria.
Tinha saído com o Babaca naquela noite. Quem sabe - imaginou Bernardo
- até fossem ao motel, em plena terça-feira, para quebrar a rotina. Que
romântico.
-- O boi! - reclamou Patrícia, feroz.
-- Já vai - disse ele. Alcançou na estante um volume grosso, de capa dura.
O "livro do boi" fora um presente de Moshe Levinsohn. Presente de grego.
Notando o interesse de Patrícia por qualquer bovino - touro, vaca ou bezerro,
não importava - Moshe resolvera presentear a neta com um livro ilustrado
americano. "The Cow and Its Breeds". No começo, Bernardo quase ficou louco
com o presente, que transformara o interesse de Patrícia em obsessão.
Ela exigia o "livro do boi" a toda hora. Sentada no chão, virava as páginas
e apontava gravemente para as figuras:
-- Boi. Essa... boi. Esse... boi. Tudo boi.
Um problema para o pai, que precisava arrancá-la dali para comer ou dormir.
A babá de Patrícia também reclamava. E até Tânia estava preocupada: em
sua casa, a menina chorava pedindo "o livro do boi".
Com o tempo, felizmente, Patrícia esqueceu um pouco o livro. Bernardo
guardou-o, mas ainda o usava de vez em quando, para obter alguma coisa
da menina.
-- Olha que lindo, Patrícia, esse de chifre torcido - apontou ele.
-- Monte boi - murmurou ela, gravemente. Eram só nove e meia, mas Bernardo
já cabeceava de sono, com a garota no colo. Tinha tido um dia cheio. Se
arranjasse um frila - pensou, nos últimos estertores da consciência -
teria de mudar seus horários...
Quando Tânia abriu a porta (tinha a chave do apartamento), encontrou Bernardo
adormecido no sofá, fora de combate. Ao seu lado, Patrícia saltitava,
ainda com a corda toda.
-- Mãe!! - berrou a menina, saltando ao pescoço de Tânia. -- O papai mostou
o boi!
Tânia olhou Bernardo com um ar de branda censura:
-- Bernardo, agora ela não deixa a gente dormir...
-- Deixa sim - afirmou ele, entre dois bocejos. - Ela já desencanou do
livro.
Tânia começou a recolher roupas, mamadeira e brinquedos, espalhados pelo
apartamento.
-- Preciso ir logo, o Caio está me esperando lá embaixo - murmurou - Nunca
tem lugar para estacionar nessa rua...
Dentro da lógica endogâmica da profissão, era inevitável que Tânia, depois
de romper com um fotógrafo, fosse morar com um jornalista: Caio, apelidado
por Bernardo O Babaca. Os dois estavam juntos há dois anos, e pareciam
casados há vinte. Trabalhavam no mesmo jornal. Deviam conversar de matérias,
pautas e fontes até na cama. Bernardo morria de tédio, só em pensar.
-- Se divertiram muito? - perguntou.
-- A gente foi ao teatro...
-- Ah, já sei, foram ver a peça do cara do gelo seco.
-- Que cara do gelo seco, Bernardo?
-- Aquele esquisito, que nem os atores entendem o que ele escreve.
Ela suspirou, aborrecida:
-- Bernardo, quer parar de bancar o ignorante? Por favor?
Por trás da sua aparente irritação, Bernardo podia detectar um certo
prazer. Obviamente, ela achava que o ex-namorado tinha ciúmes do atual.
Que ilusão.
Bernardo não tinha ciúmes do Babaca. Bernardo nem mesmo se importava com
o fato do Babaca usar óculos de armação colorida, camisas abotoadas até
o colarinho, e cabelo raspado na nuca, com um topete caindo sobre os olhos.
Bernardo estava se lixando se o Babaca era uma estrela em ascensão no
jornal. Subira na vida à custa de um texto cheio de tiques e uma pretensão
monstruosa -- contrastante com o seu servilismo ao patrão. Mas isso não
incomodava Bernardo, que nem trabalhava mais em jornal. Não; o que Bernardo
não podia tolerar, no Babaca, é que ele não gostava de crianças. E, mais
especificamente falando, não gostava de Patrícia.
Que alguém não se apaixonasse imediatamente pela sua filha, aquele fenômeno
de perfeição, era algo que deixava Bernardo perplexo e enfurecido. Bem
que o Babaca tentava fingir: falava com a menina em voz aflautada, trazia-lhe
presentes, e uma vez até (imagine-se a idiotice!) lera poemas concretistas
para ela. Mas Patrícia não se deixava enganar, e Bernardo muito menos.
O homem era um poço de hipocrisia. Na presença da garota, quando supunha
que ninguém estava olhando, sua cara escorregava para uma expressão de
profundo tédio. Isso sem contar o seu ar de nojo quando ela ainda sujava
as fraldas, menos de um ano atrás. Às vezes Bernardo tinha ímpetos de
espancá-lo.
O espantoso é que Tânia não percebesse nada daquilo. Ou percebia e ficava
quieta? Bernardo, mais uma vez, perdeu-se em suas preocupações.
Tânia continuava indo e voltando, catando as coisas da menina. De repente,
perguntou:
- Bernardo, você pensou naquele assunto?
-- Pensei - respondeu ele, com uma careta.
-- Fiz minhas contas.
-- E?...
-- Com o que eu ganho hoje, não dá - disse ele, sucinto. - Mas não se
preocupe. Eu acho um jeito de pagar a mensalidade. Você tem razão, já
está na hora da Patrícia entrar na escola.
-- Mas como é que você vai pagar?
-- Eu arranjo um frila no jornal.
Houve um silêncio desagradável.
-- Bernardo, você não precisa fazer isso. - disse Tânia -- Eu e o Caio
podemos aguentar um pouco, enquanto você não acha coisa melhor...
-- Nem pensar - cortou Bernardo, muito seco.
-- Mas você odeia jornal!
-- É só por uns tempos.
Tânia ficou brincando com a sacola da menina. Parecia ter um discurso
entalado em algum ponto da garganta, mas não se resolvia a soltá-lo. Por
fim, suspirou:
-- Se você quiser, a gente pode falar com alguém da redação...
-- Não precisa. Eu ainda tenho uns contatos por lá.
Patrícia emergiu da cozinha, onde estivera fazendo experiências com o
detergente.
-- Vãobora, mãe! - gritou.
-- Já vou indo - disse Tânia, pegando a filha no colo. - Até domingo de
manhã, certo? -- Domingo, segunda e terça-feira eram os dias de Bernardo;
quarta, quinta, sexta e sábado eram de Tânia.
Quando ela se foi, Bernardo apagou as luzes da sala e foi para o quarto.
Enquanto se despia para dormir, pensou, por um instante, no salário do
Babaca. Devia estar ganhando uma fortuna, o puxa-saco.
-- Que ódio - murmurou.
Dois dias depois, Bernardo estava de volta à redação do jornal.
Três anos depois de sua saída, o lugar ainda lhe despertava recordações
desagradáveis. À primeira vista, não mudara muito. O café eternamente
requentado continuava no mesmo lugar. Os pauteiros continuavam chegando
cedo, exibindo diversos graus de tédio e mau-humor.
Algumas coisas, é verdade, estavam diferentes. No lugar de máquinas de
escrever, agora havia computadores. A colunista social velhinha, sempre
vestida em negro e pérolas, fora substituída por alguém mais jovem e descolado.
De uma forma geral, aliás, havia mais caras jovens na redação.
-- Sabia que um dia você voltava, Bernardo - disse Mateus, o chefe de
Reportagem.
Ele, com certeza, não podia ser acusado de ser jovem demais para o cargo.
-- Estou voltando temporariamente - explicou o fotógrafo -- Só por uns
meses.
-- Só por uns meses? Que conversa é essa? - vociferou o velho jornalista
- O senhor pensa que isso aqui é o quê? Pensão? Entra e sai assim, quando
lhe dá na telha?
-- Ah, Mateus, que é isso - sorriu Bernardo. - Me quebra esse galho. Estou
precisando de grana.
-- Precisando pra quê? Alguma mulher, é isso?
-- Isso mesmo.
-- Você não toma jeito... - disse ele, erguendo para o fotógrafo os olhos
mortiços, onde pairava uma ponta de inveja. - OK, Bernardo, eu confesso:
quero você aqui na redação de novo. Volta pra mim, meu bem. Eu te dou
um salário melhor do que você ganhava antes.
-- Aquela fortuna? - caçoou Bernardo - Imagine, Mateus. Eu sei que vocês
não pagam um tostão a mais. Nem corrigiram direito a inflação...
-- Eu me viro com os homens lá em cima. Pode até ser menos do que você
ganha hoje, mas é mais seguro. Essa história de estúdio vai cair muito,
com o fim do Plano Cruzado. Vem uma crise braba por aí...
Sem responder, Bernardo ficou olhando o ex-chefe. Mateus não mudara muito,
desde a época em que trabalhavam juntos. Os cabelos, é verdade, tinham
ficado mais brancos; a barriga maior; e os olhos azuis tinham perdido
brilho (as veteranas da redação diziam que Mateus fora um homem bonito).
-- Então, Bernardo? Topa? - insistiu ele.
-- Não - respondeu o fotógrafo. Mateus bufou:
-- Mas é uma mula mesmo! Judeuzinho escroto! Quando você trabalhava pra
mim, levava um vidão! Eu te protegia! Te dei as melhores oportunidades!
Bernardo pensou nas horas extras intermináveis que fazia naquela época;
mas ficou calado. Mateus continuou bufando:
-- Não quer voltar. Pois não volte. Continue nesse seu estúdio medíocre!
Vai terminar a vida fotografando sabão em pó!
-- Pasta de dente - corrigiu Bernardo. - Vou pegar uma campanha de pasta
de dente. Você tem um cigarro?
Estava tentando parar. Mas um só não fazia mal - pensou, enquanto acendia
o cigarro. Mateus finalmente suspendeu a bronca. Suspirou:
-- Enfim, você quer me usar e jogar fora. Paciência, já estou acostumado.
A Marisinha, da Editoria de Cidades, está saindo de licença-maternidade.
Três meses. Serve pra você?
-- Tá ótimo.
-- Depois, se você quiser, a gente te arranja outra coisa. Bernardo não
respondeu.
-- Sabe o que eu estou pensando? - disse Mateus, numa súbita inspiração
- Você podia fazer dupla com o Fábio.
-- Quem é o Fábio?
-- Um menino que entrou agora na Editoria de Cidades. É novinho, inexperiente,
mas leva o maior jeito. Bom texto, muito farejador. De vez em quando essas
escolas de Jornalismo ainda soltam algo que preste - no meio de um monte
de analfabeto, é claro.
-- E por que você quer que eu faça dupla com esse Fábio? - perguntou o
fotógrafo.
Mateus hesitou um pouco antes de responder:
-- Ele é inteligente, Bernardo. Mas meio ingênuo, sabe? Às vezes se mete
numas situações complicadas. Outro dia, por exemplo, foi entrevistar um
delegado, um sujeito importante, e pressionou demais o cara. Queimou a
fonte. Sabe como é esse pessoal mais novo: querem fazer tudo a ferro e
fogo. Ele precisa de alguém para dar um toque às vezes, entende?
-- Peraí, Mateus. Que história é essa? Eu vou trabalhar com Polícia?
-- Principalmente. O Fábio leva muito jeito nessa área.
-- Mas eu não, porra!
-- Ué, qual é o drama? Você já não fez isso antes?
-- Fiz. Não foi a época mais agradável da minha vida.
-- Sossega, Bernardo. Você não vai fotografar presunto. Estou dando umas
pautas importantes para esse cara. Coisa fina. E, afinal, você precisa
ou não desse frila?
Bernardo resignou-se.
Ao meio-dia, estava de volta ao estúdio, discutindo a mudança de horários
com Eliane.
-- As manhãs estão livres - explicou - Você vai ter que marcar as sessões
nesse horário. Só peço para o Mateus me liberar em último caso.
-- Tá legal - assentiu ela. - Ah, chegou isso aqui para você. -- E exibiu
um grande envelope pardo.
-- O que é? - perguntou Bernardo.
-- A resposta daquele seu pedido de bolsa -- eu acho.
Bernardo abriu o envelope e passou os olhos pela carta.
-- Olha só, eles me aceitaram.
-- O que, te deram a bolsa? Que legal!
O fotógrafo colocou de novo o envelope na mesa.
-- Você não vai? - perguntou Eliane.
-- Eu fiz o pedido mais por curiosidade - explicou Bernardo. - Mandei
um portfólio completo...
-- E eles gostaram, pelo visto.
-- É, gostaram, mas eu não posso ir. Uma pena... Um ano de curso, e eu
até teria onde me hospedar, nos primeiros meses. Fiz umas amizades em
Londres quando visitei minha irmã, na época em que ela morava lá. - Encolheu
os ombros -- Bom, de qualquer jeito, a viagem está fora de questão. Não
posso deixar a Patrícia aqui.
-- Ora, Bernardo, ela é capaz de nem perceber, se você for embora...
-- É, e quando eu voltar, não se lembra mais de mim. Negativo.
Na segunda-feira à uma hora, pontualmente, Bernardo estava na redação.
-- Vou te apresentar o Fábio - disse Mateus, levantando o corpanzil da
cadeira giratória. - Você vai gostar dele.
Conduziu Bernardo por um labirinto de mesas, até o lugar onde o repórter
tomava o seu café, com a cabeça enfiada nos jornais.
-- Fábio! - gritou ele, como se o novo colega de Bernardo fosse surdo.
O rapaz deu um pulo na cadeira, assustado, e derramou o café na calça.
-- Desculpe - murmurou, para ninguém em particular. Não parecia ter mais
que vinte anos. Sem ser gordo, era ligeiramente atarracado. Os cabelos
crespos empinavam-se dum lado só, num topete que resistia a todas as incursões
do pente. O rosto redondo e corado, de amplas bochechas, tinha uma permanente
expressão de boa-fé. A boca era pequena e rechonchuda.
Bernardo quase podia ver a palavra mágica estampada na sua testa: F-O-C-A
.
"Não sabe nem a hora da janta. E o Mateus me escalou para babá dele",
pensou, desalentado. As primeiras palavras do rapaz, entretanto, não confirmaram
essa idéia.
-- Já consegui a entrevista com a moça - começou, ansiosamente, antes
que o chefe lhe perguntasse - Falei com aquele delegado do caso do traficante
de Congonhas. A gente pode entrevistar ela hoje, às três da tarde, na
carceragem feminina de Pinheiros.
-- Tudo acertado, então?
-- Tudo - confirmou o rapaz. - Eu só estava... -- apontou vagamente para
a calça suja de café - só estava lendo um pouco o jornal.
-- Ainda é permitido, aqui - disse Mateus, sarcasticamente. - E, olhe,
esse é o Bernardo, que eu tinha lhe falado.
Fábio pareceu ainda mais compenetrado, se possível. Estendeu a mão para
o colega:
-- Muito prazer, Bernardo. O Mateus disse que você é um ótimo fotógrafo...
-- É só não enganchar em nenhum rabo-de-saia, que ele faz maravilhas -
cortou Mateus, asperamente - Vigie bem o Bernardo, nesse caso.
E começou a procurar sob a mesa de Fábio, resmungando:
-- Onde foi parar aquela foto...
-- Está aqui - disse o repórter, extraindo rapidamente uma ampliação debaixo
da pilha de jornais. Mostrou-a a Bernardo - Essa é a Adriana Santander.
O fotógrafo soltou um assobio:
-- Nossa! - exclamou. - Quem é essa maravilha, Mateus? Parece tão assustadinha...
-- Essa foto até que está razoável - concedeu o chefe de reportagem, encostando-se
à mesa de Fábio. - Em geral, eu dou graças a Deus quando o Chico consegue
acertar o foco... Mas nessa ele caprichou, acho que ficou inspirado.
O rosto na ampliação era o de uma moça loira, de olhos escuros e boca
sensual. Um rosto perfeito - tão bonito, que só no momento seguinte se
notavam os outros detalhes da foto. A moça estava algemada, e era escoltada
por dois homens.
-- Carioca - explicou Mateus. - Vinte e dois anos. Estudante universitária.
Uma das melhores famílias do Rio. Tradicionalíssima - e cheia da grana.
Frequentou os melhores colégios, passa as férias em Paris, só anda de
motorista particular... Dá pra acreditar?
-- Mas o que foi que ela fez? - perguntou Bernardo.
-- Conta pro Bernardo o que ela fez, Fábio - ordenou Mateus.
-- Tráfico de drogas - explicou o foca, relutante. - Pegaram ela no aeroporto
com dois quilos de cocaína. Estava no fundo falso da bagagem de mão.
-- Dois quilos? - Bernardo estava assombrado.
-- Acredite se quiser - confirmou Mateus. - Não é coisa miúda, não, nem
para consumo próprio. A gente andou pesquisando a vida da moça no Rio...
Ela não é viciada. Pode até cheirar de vez em quando, mas não é drogada.
É tráfico mesmo. Pelo visto, a mesada do papai não era suficiente, e ela
resolveu fazer uma graninha extra.
-- Nada ficou provado - interrompeu Fábio.
Mateus parecia se divertir imensamente:
-- Ele não se conforma... Como assim, não está provado, Fábio? Acorda!
Ele se apaixonou pela garota - disse, virando-se para Bernardo. - Você
que manja de mulher, conta pra ele. Fábio, meu querido, quem vê cara não
vê coração. Essa mulher é uma bandida.
Fábio não respondeu. Olhava a ponta dos sapatos.
-- Vai lá falar com a loira, vai. Mas cuidado, não deixa ela te enrolar.
Quero você de volta aqui no fim da tarde, com uma puta matéria!
Três horas depois, no táxi de volta da Delegacia, Fábio olhou para o fotógrafo,
com ar perdido:
-- O que você achou?
Bernardo acendeu o terceiro cigarro do dia:
-- Não achei nada - disse - Ela está enrolando a gente.
A dupla passara quarenta minutos com Adriana Santander, num cubículo da
Delegacia - sem nenhum resultado palpável.
Mesmo com o uniforme cinzento da carceragem, Adriana estava linda. Não
demonstrava nenhuma ansiedade; ao contrário, dava a impressão de estar
em pleno controle da situação. Chegou à sala escoltada por uma policial
feminina. Sentou-se e cumprimentou polidamente o repórter e o fotógrafo.
A policial se retirou, e ela esboçou um sorriso para os dois, do outro
lado da mesa.
-- Bom - disse, cruzando as pernas como se estivesse numa sala de visitas
- o que vocês querem saber?
Fábio ligou o gravador, nervoso, atrapalhando-se com os botões. A presença
da moça parecia deixá-lo muito inibido:
- Adriana, por que você levava toda aquela cocaína na sua bolsa? Era para
consumo próprio, ou para tráfico? Você esperava...
-- Um momentinho - interrompeu ela. Voltou-se para Bernardo, com um sorriso
deslumbrante: -- Por acaso você tem um cigarro? Deixei os meus na cela.
-- Claro - apressou-se o fotógrafo, extraindo do bolso o maço que comprara
de manhã. Acendeu o cigarro e passou-o para a moça, que sorriu novamente.
-- Desculpe, o que foi mesmo que você perguntou? - disse, tragando a primeira
baforada e voltando os olhos para Fábio. Ele avermelhou.
-- Quero saber se aquela droga era para tráfico ou consumo próprio.
-- Consumo próprio... Você quer dizer, para eu consumir? - perguntou Adriana,
brincando com o cigarro.
-- Exatamente.
-- Você acha que eu ia consumir dois quilos de cocaína. - disse ela, devagar.
-- Bom, quer dizer...
-- Eu, sozinha, ia cheirar dois quilos de coca. É isso?
-- Se não era para consumo próprio, então era tráfico? - perguntou o repórter,
ansioso.
A moça tirou mais uma baforada do cigarro. A fumaça a fez piscar os olhos.
-- Tráfico? - perguntou, como se nunca tivesse ouvido a palavra.
-- É. Você trouxe toda aquela droga para vender em São Paulo? Ou em outro
lugar?
-- É você quem está dizendo isso, não eu - observou Adriana.
"Osso duro de roer", concluiu Bernardo.
-- Mas o que aquela cocaína estava fazendo na sua bolsa? - insistiu o
repórter. Adriana olhou para o teto. Fez um muxoxo:
-- Não sei se posso responder essa pergunta.
-- Mas você sabia que ela estava lá.
-- Sabia.
-- Então, por que estava lá?
-- Porque eu não tinha outro lugar pra colocar - disse ela, sorrindo.
Fábio estava no auge da perplexidade. Tentou outra abordagem:
-- Mas, Adriana, quem te deu aquela droga?
-- Um cara - disse ela. O repórter animou-se:
-- Um cara? Que cara?
-- Eu só sei o primeiro nome dele... acho que era Paulo. Ou seria Roberto?
- disse ela, olhando para o teto. - Tenho uma péssima memória para nomes.
-- E esse cara era seu amigo?
-- Não exatamente.
-- Namorado?
-- Aí você já está querendo saber demais - sorriu ela de novo. Mas com
certeza ficou com pena de Fábio, porque logo em seguida acrescentou: --
Não era meu amigo nem nada, só uma pessoa que eu conheci na praia. Vi
ele uma ou duas vezes.
-- E ele te deu a droga para vender.
-- O esquema não era exatamente esse...
-- Espera um pouco, Adriana - disse Fábio, cada vez mais vermelho. - Você
quer dizer que uma pessoa que você mal conhece, que te viu duas vezes,
te deu uma fortuna em cocaína para vender...
-- Eu não disse que era para vender - replicou ela, suavemente.
E daí não saiu. Fábio tentou atacá-la por todos os flancos, mas não conseguiu
nenhuma declaração positiva, nenhuma pista além do sujeito - evidentemente
imaginário - que havia lhe dado a droga. Dado ou vendido? Esse ponto ela
também não esclareceu.
Em compensação, quando a conversa passou a outros assuntos, Adriana fez
valer a entrevista. Reclamou de ser algemada no aeroporto ("como uma criminosa!"
indignou-se, candidamente), da comida da prisão e do frio da cela (Fábio
estava evidentemente comovido). Elogiou suas companheiras de prisão ("gente
ótima, muito simples, me deram a maior força") e disse que sua família
estava desesperada com o acontecido. Mas confiava em que logo tudo seria
esclarecido.
-- Você se considera inocente? - perguntou Fábio.
-- Bom - ela disse, com a cabeça levemente curvada para um lado - culpada
é que eu não sou, Fábio...
Ser tratado pelo nome, evidentemente, fez efeito no repórter. Ele corou.
-- É tudo um mal-entendido. Com certeza logo vão descobrir a verdade -
disse Adriana. E, antes que o outro pudesse perguntar qual era a verdade,
foi se levantando - Agora, se vocês me dão licença, está na hora de voltar
para a minha cela...
Estendeu-lhes a mão. Cada um dos seus gestos denunciava a menina privilegiada
e bem-educada. Era simplesmente inacreditável que estivesse na prisão.
"A família vai achar um jeito de tirar ela daqui", pensou Bernardo.
-- Ah - lembrou Adriana, quando a carcereira veio levá-la - se quiser,
pode voltar para me entrevistar de novo, Fábio. Quem sabe eu não lembro
de mais coisas?
-- Vai ver algum advogado aconselhou ela - sugeriu o repórter, no táxi,
após alguns minutos de meditação.
-- Não acho - respondeu Bernardo, prontamente. - Um advogado teria orientado
a Adriana a não dizer nada, ou nem dar entrevista. Ou, então, teria arranjado
uma versão completa da história, com começo, meio e fim. Não essa embrulhada
que ela contou pra gente.
-- Você não acredita em nada do que ela falou?
-- Nem uma palavra.
Fábio parecia confuso e infeliz. Tirou a foto de Adriana do bolso da camisa.
Suspirou:
-- Não é possível que ela minta o tempo todo! - disse.
As fotos de Bernardo ficaram excelentes, e, no dia seguinte, o jornal
furou toda a concorrência. Ninguém mais tinha falado com Adriana. A entrevista,
habilidosamente editada, realçava o drama da menina rica jogada de repente
numa prisão, sem insistir na questão da droga.
-- Muito bem - elogiou Mateus. - Por hoje está ótimo, Fábio. Mas você
tem que chegar ao fundo dessa história. E rápido. Os outros jornais também
devem estar se mexendo...
-- Ela quer que a gente volte lá - contou o repórter. Mateus coçou o queixo:
-- E você acha que vale a pena?
-- Bom, quem sabe ela conta mais alguma coisa....
O chefe de Reportagem ficou pensando mais uns instantes:
-- Está bem. Marque outra entrevista, então.
Quando o repórter virou as costas, Mateus disse para Bernardo:
-- Eu devia ter mandado alguém mais experiente...
-- Mateus, ele fez o possível.
-- Porra, ele está praticamente babando! Da próxima vez, se não voltar
com coisa melhor, eu tiro o Fábio dessa pauta. Essa menina é perigosa.
-- Muito bem, Patrícia. Agora vira a cabeça. Assim.
-- Tá muito quente!
-- É só mais um minutinho. Papai vai bater só mais duas fotos, tá? Depois
eu desligo o refletor.
-- Eu quero a mamãe - choramingou a menina.
-- Ela já está chegando. Tenha um pouquinho de paciência...
Houve uma leve batida na porta. Tânia entrou:
-- E então, como vai sua modelo? - perguntou. - Desculpa, Bernardo, mas
você tem que terminar a sessão. Preciso levar ela para a escola.
-- Já estou indo - respondeu o fotógrafo, acertando o foco. - Só mais
uma ou duas poses. A Sara está me enchendo o saco, quer fotos da sobrinha
de qualquer jeito.
Tânia sentou-se num banquinho:
-- E como é que foi ontem?
-- Foi razoável - disse Bernardo, ainda concentrado no seu trabalho. -
Fiquei a manhã toda sentado no pátio da escola. A mulherada não entendia
nada. Eu era o único homem esperando o filho, mas fazer o quê? Parece
que é importante pra adaptação da criança.
-- É verdade - concordou Tânia.
-- Duro mesmo foi o Mateus me dispensar do trabalho... Mas você está sendo
muito legal de me substituir hoje.
-- Imagina, Bernardo.
O fotógrafo voltou a se concentrar nas suas fotos, não sem antes pensar
que Tânia estava esquisita. Depois, tirou a "modelo" do banquinho, desligou
os refletores e acendeu as luzes. Tânia continuava de pé, com a bolsa
segura junto ao corpo, e um ar constrangido no rosto.
-- Tô com fome - reclamou Patrícia.
-- Você já vai almoçar, queridinha - disse a mãe. Eliane entrou na sala:
-- Bernardo, consegui marcar aquela reportagem para depois de amanhã,
às nove.
-- Eliane - disse Tânia - desculpa, mas você se importava de ficar um
momentinho com a Patrícia? Preciso conversar com o Bernardo.
-- Não tem problema - disse Eliane, rapidamente. - Vem comigo, Patrícia.
Eu guardei o seu ursinho pra você.
-- Tô com fome - repetiu a menina, que, entretanto, seguiu docilmente
a moça para a outra sala. A porta fechou-se sem ruído. Bernardo olhou
para a ex-mulher, preocupado:
-- Que foi, Tânia?
Ela estava cada vez mais embaraçada. Pigarreou de novo. Torceu as mãos.
Acabou sentando-se no banquinho onde Patrícia estivera:
-- É o Caio, Bernardo.
Será que ela brigou com o Babaca? - pensou Bernardo.
-- Que tem o Caio?
-- Ele recebeu uma proposta de trabalho muito interessante... -- Abaixou
a cabeça, e completou: -- Uma proposta em Belo Horizonte.
-- E ele aceitou?
-- É o principal jornal de lá - explicou Patrícia, devagar. - Eles querem
modernizar tudo, mudar o visual, trazer pessoas de São Paulo... E ele
seria editor-chefe. É uma proposta irrecusável. Aqui o Caio está bem,
mas não tem oportunidade de fazer um trabalho importante como esse.
-- Então ele aceitou.
-- É. Vai começar em um mês. Para dar tempo de fazer a mudança, acertar
as coisas por aqui...
Uma sirena de alarme começou a tocar na cabeça de Bernardo:
-- E você também vai, é isso?
-- Vou. Eles me fizeram uma proposta legal, na Editoria de Política.
Um grande, incômodo silêncio pairou na sala. Finalmente, Bernardo falou:
-- E você quer levar a Patrícia. É isso?
-- É, Bernardo. Eu vou ter que levar ela comigo. Infelizmente.
-- Infelizmente.
-- É.
-- E você acha mesmo que eu vou deixar?
-- Bernardo...
-- Acha que eu vou ficar aqui sentado, esperando que levem a minha filha
embora?
-- Bernardo, calma. Raciocina. Em primeiro lugar, ninguém está dizendo
que é para sempre. Eu não disse que vou passar o resto da minha vida em
Belo Horizonte. Em segundo lugar, eu já pensei num esquema...
-- Você pensou num esquema para foder comigo, Tânia. É nisso que você
pensou.
-- Fica mais calmo, por favor! Eu sei como a Patrícia é importante para
você. Mas ela fica aqui nas férias escolares. Além disso, duas vezes por
mês....
-- Duas vezes por mês! - quase gritou Bernardo.
-- Para não atrapalhar sua vida, nós podemos fazer o seguinte. Num fim
de semana, você vem ver a Patrícia em Belo Horizonte. No outro fim de
semana, eu, pessoalmente, me encarrego de trazer ela aqui. É uma promessa,
Bernardo. Você vai passar dois fins-de-semana por mês com a Patrícia.
Pode contar com isso.
-- Dois fins-de-semana por mês!
-- É o que manda a lei - lembrou Tânia, com uma certa secura.
Bernardo ficou quieto, estatelado. Tânia levantou-se, pegou a bolsa e
se aproximou dele:
-- Olha, eu sei que deve ser difícil para você. Não pense que eu não valorizo
o seu esforço com a Patrícia. Você tem sido um ótimo pai. Não estou querendo
separar vocês, de jeito nenhum.
Bernardo não respondeu.
-- Eu não planejei isso, Bernardo. Aconteceu. O Caio não pode perder essa
oportunidade. Eu sei que você deve estar chocado... Vamos fazer o seguinte?
Vou deixar você pensar um pouco, esfriar a cabeça... Depois a gente conversa,
certo? - Curvou-se, deu-lhe um rápido beijo no rosto e saiu. Bernardo
deixou-se ficar, estatelado.
-- Calma, Bernardo - disse Eliane, depois que o chefe lhe contou a situação.
- Não tome nenhuma decisão de cabeça quente. Vamos consultar um advogado.
Eu conheço um ótimo, que fez o divórcio da minha irmã.
-- Eliane - disse o fotógrafo, erguendo para a assistente um rosto arrasado.
- O que você acha dessa história que a Tânia inventou?
-- Sinceramente?
-- Sinceramente.
-- Tremenda sacanagem - disse a moça, sintética.
Três dias depois, Bernardo e Fábio estavam outra vez num táxi, de volta
à carceragem de Adriana. Bernardo tinha uma expressão sombria, e seu companheiro
estava nervoso:
-- Será que dessa vez ela fala alguma coisa?
-- Duvido - respondeu Bernardo.
-- Então, por que chamou a gente de novo?
-- Falta do que fazer. Sei lá.
-- Passei ontem o dia todo no telefone, tentando falar com as minhas fontes.
Mas eles estão chateados comigo...
Esperou que o outro perguntasse porque, mas Bernardo não se interessou
pelo assunto.
-- .... por causa daquela entrevista que eu fiz com o delegado, sabe?
Um cara de Entorpecentes.
-- Sei - disse Bernardo. Fábio estava tendo uma pequena lição de reportagem.
Com o tempo, aprenderia a preservar melhor as suas fontes. Mas o que isso
lhe interessava?
-- Não consegui nada - concluiu o rapaz. - O Mateus está no meu pé.
O fotógrafo não respondeu. Acendeu um cigarro - havia recaído definitivamente
no vício - e afundou-se nos seus pensamentos. Nunca sentira tanta angústia
na vida.
Consultado às pressas, o advogado não tinha lhe dado boas notícias. Antes
de mais nada, perguntou se a guarda da criança já estava definida.
-- Está - respondeu Bernardo. Há três anos, quando ele e Tânia tinham
se separado, ela insistira em regularizar a situação da menina. (Quem
sabe - pensou - já prevendo uma situação daquelas.)
-- E a guarda é da sua ex-mulher? - perguntou o advogado.
-- Nós não chegamos a casar...
-- Não importa. A guarda é dela?
-- Oficialmente, é.
Explicou ao advogado que os dois, naquele época, queriam outro arranjo:
a guarda alternada. Patrícia ficaria metade da semana com o pai, e a outra
metade com a mãe. As despesas seriam divididas. Mas o juiz não aceitou
a idéia.
-- Com certeza que não. - interrompeu o advogado - Ele deu a guarda à
mãe, e fixou uma pensão para o senhor, certo?
-- Certo.
-- É o normal nesses casos.
-- Mas a gente manteve o arranjo da mesma forma. Estamos neste sistema,
eu e a Tânia, há quase três anos.
-- Não importa - explicou o advogado. - Esse acordo não tem valor legal.
A guarda continua sendo da sua ex-mulher.
-- E isso dá o direito dela levar a menina para onde quiser, a qualquer
momento?
-- Infelizmente, dá. O senhor disse que quer assumir integralmente a guarda
da menina, não é?
-- A Tânia não me deixa outra opção...
-- Então, nós vamos pedir a guarda. Mas já vou avisando que vai ser muito
difícil. O juiz só põe a criança sob a custódia do pai se a mãe tiver
algum problema sério. Alcoolismo, prostituição...
-- O atual marido dela não gosta da Patrícia - arriscou Bernardo.
-- Ele maltrata a menina? Já bateu nela?
-- Não, mas...
-- Ele trabalha? Os dois têm um ambiente familiar estável?
-- Bom, pode-se dizer que sim.
-- Então, é melhor nem falar do assunto. Aliás, é mais provável que o
juiz dê a guarda à mãe, que se casou de novo, do que ao senhor, um homem
solteiro. Além disso, sem emprego fixo...
-- Mas eu ganho bem! - argumentou Bernardo. - Pago minhas contas, tenho
residência fixa.
-- Eu sei, mas o senhor não pode imaginar como esses juízes são conservadores.
Eles costumam favorecer a mãe, mesmo porque estão cansados de ver pais
negligentes. Numa ação dessas, o papel do juiz é defender os interesses
da criança. Por exemplo, ele não aceitou a guarda conjunta, porque presumiu
que o senhor a usaria para não pagar a pensão.
-- Mas isso é um absurdo! Eu nunca deixei de contribuir com a minha parte!
Agora mesmo, peguei trabalho extra para pagar a escola da menina!
-- Ótimo, ótimo - disse o advogado, brandamente - Isso vai dar boa impressão.
Mas já aviso: é um processo longo, e de resultado muito incerto.
"Se eu entendi bem esse advogado", pensou Bernardo, olhando pela janela
do táxi, "para a Justiça, eu sou culpado até prova em contrário." Teria
que provar ao juiz que passava metade da semana com Patrícia, levava a
menina à escola de manhã, e brincava com ela à noite. Teria que explicar
que era Bernardo Levinsohn, e não mais um, numa multidão de pais incompetentes
e egoístas. E, mesmo então, talvez não lhe dessem a guarda -- simplesmente
porque não era costume dar.
-- O que é isso? - perguntou Fábio, mostrando um objeto colorido que saltava
da bolsa do fotógrafo.
-- É o ursinho da Patrícia - explicou Bernardo, guardando o brinquedo.
-- Sua sobrinha?
-- Filha.
-- Ah, que bacana. Não sabia que você era casado...
-- Não sou.
-- Ela mora com a mãe?
Bernardo olhou o repórter com animosidade. Mas o ar bem-intencionado do
outro o desarmou:
-- Mora comigo e com a mãe - explicou. Fábio não entendeu:
-- Como assim, com os dois?
Enquanto Bernardo explicava, uma multidão de imagens ia passando pela
sua cabeça. Patrícia bebê, brincando com os próprios pés dentro do berço.
Patrícia dando os primeiros passos, na sala do seu apartamento. A primeira
vez em que disse "papai". Patrícia no colo de Dona Susana...
Concluiu bruscamente o que estava falando e enfiou a cabeça na janela.
Alguns instantes, depois, Fábio disse, timidamente:
-- Não seria melhor fechar a janela, Bernardo? Você parece meio resfriado...
Na delegacia, Fábio identificou-se, e já ia passando para a carceragem
quando uma voz o chamou, em tom de autoridade:
-- Vem cá um minutinho, rapaz. Você e o fotógrafo - Os dois se viraram,
e deram com o delegado de plantão os encarando firme, com as mãos na cintura
e o corpo encostado à escrivaninha. Tinha o ar de quem acabara de fazer
uma refeição pesada; reprimiu um arroto, enquanto falava.
-- Preciso conversar com vocês - disse, quando Fábio e Bernardo se aproximaram.
Passem aqui - e indicou uma salinha ao lado.
-- Mas, delegado - protestou Fábio - nós temos hora marcada com a Adriana
Santander...
-- Ela espera - concluiu o delegado, peremptório. A dupla entrou na sala,
que tinha apenas uma escrivaninha, um sofá meio rasgado, e uma cadeira.
Os dois se sentaram no sofá. O delegado apossou-se da cadeira, e olhou
firmemente para eles.
-- Li a sua reportagem, seu Fábio - começou o delegado, em voz neutra.
- Li ela inteira. Todas as letrinhas.
Meio sem graça, Fábio murmurou:
-- Ah, obrigado, Dr. Siqueira.
-- Muito bem escrita - aplaudiu o policial. - A entrevista, muito interessante...
-- Obrigado - repetiu Fábio.
O delegado curvou-se subitamente em direção a eles. Bernardo podia sentir
o cheiro da brilhantinha em seu cabelo:
-- Quer saber de uma coisa, seu Fábio? Não vai ficar ofendido se eu disser?
-- Não, delegado, absolutamente...
-- A polícia toda está rindo às suas custas.
Fábio ficou estatelado. Gaguejou:
-- Por que?
-- Porque - disse o delegado, escandindo bem as sílabas - não há uma palavra
de verdade na sua matéria. Nenhuma.
-- Como assim?
-- Só para começar - disse o Dr. Siqueira, apanhando um exemplar do jornal
de cima da escrivaninha - ela diz aqui que está passando frio na cela,
mas que as outras presas são muito simpáticas, certo?
-- Certo.
-- Pois bem, a menina não está numa cela comum, com as presas da carceragem.
Ela veio para esse DP justamente porque aqui temos acomodações especiais,
reservadas para presas com diploma universitário. Nem sei se dá para chamar
aquilo de "cela". A família já enfiou até TV a cores lá dentro.
Fábio olhou aturdido para o policial:
-- Mas por que ninguém me contou isso?
-- O senhor não perguntou! - respondeu o delegado. Havia no seu rosto
uma evidente satisfação. Fábio já estava arrasado, mas o Dr. Siqueira
ainda não terminara: -- Ela enrolou a entrevista toda. O senhor saiu daqui
sabendo menos do que quando entrou.
-- É verdade - admitiu Fábio. - Mas eu pesquisei em outras fontes. Ninguém
quer falar nada.
-- Porque o senhor pisou no tomate com a polícia - disse o delegado. -
Conheço um monte de gente que está se divertindo com essa matéria. Mas
eu acho que a coisa já foi longe demais.
-- Como assim?
-- Seu Fábio - anunciou o policial, com uma certa solenidade - todo mundo
na polícia de São Paulo conhece o caso dessa menina. A essa hora, os seus
colegas de outros jornais já devem estar sabendo, também. Agora, eu vou
lhe fazer um grande favor. Vou lhe passar uma informação, para evitar
que o senhor caia no ridículo.
O tom do delegado deixava bem claro que ele esperava alguma retribuição
pelo favor.
-- Mas, antes, o senhor vai me prometer que desmente aquela informação
da cela...
-- Claro - apressou-se Fábio em dizer. - Pode ficar tranquilo.
-- E o senhor não pode revelar a fonte da informação. É em "off", como
vocês dizem. Correto?
-- Correto.
-- Muito bem. Então, vamos lá: essa cocaína que nós achamos com a Adriana
não era dela.
-- Como?
-- Não era dela. A Adriana estava viajando acompanhada, e a cocaína era
da outra pessoa.
-- Mas como vocês sabem disso?
-- Porque nós sabemos quem é essa pessoa. - O delegado transportou-se
na cadeira giratória até a escrivaninha, e pegou uma foto, que exibiu
aos jornalistas. - A polícia do Rio está atrás dele há meses.
A foto era de um rapaz bonitão -- branco, mas com alguns traços índios
espalhados pelo rosto. A boa aparência do fotografado era um tanto comprometida
pelas extensas costeletas, e o bigode muito grosso. "O próprio galã de
subúrbio", pensou Bernardo.
-- Vocês acreditam que esse pilantra não tem nem ficha na polícia? - disse
o delegado, passando os olhos pelo retrato. O seu tom de voz era o de
um crítico sensível, admirando uma obra de arte.
-- Mas o que ele fez?
-- A polícia do Rio acha que ele coordena a distribuição de cocaína em
três morros da cidade. Não que fique lá em cima levando tiro, não. O Chileno
não é idiota...
-- Ele é chileno?
-- Não, é só um apelido. A mãe é chilena, acho. O nome verdadeiro dele
é Rodolfo Macías Ferreira. Mais escorregadio do que sabonete. A polícia
está sempre atrás dele, tem certeza que o cara é chefe do tráfico, e nunca
conseguiu um flagrante!
-- Puxa - disse Fábio.
-- Ele deve ter uns amiguinhos na Entorpecentes de lá - disse o delegado,
raciocinando consigo mesmo. - Ergueu os olhos para o repórter e avisou,
com voz normal: -- Se você publicar isso, te capo.
-- Não publico não, delegado.
-- Bom - explicou o Dr. Siqueira, retomando a história - a polícia ficou
atrás do cara. Sempre na campana. Vira daqui, mexe dali, descobriram que
o Chileno tinha uma gata na Barra da Tijuca -- essa tal de Adriana. Mas
era um caso muito escondido. Se os pais dela descobrissem, iam cair duros.
A menina tem ficha limpa - checaram a vida dela inteirinha, de cabo a
rabo. Nunca se meteu com droga.
"O Chileno só saía com ela à noite. Em casa, a Adriana dizia que ia estudar
com as colegas. Frequentavam motéis do outro lado da cidade. Ela evitava
encontrar até os amigos, quando estava com ele."
-- Ninguém me contou nada, quando eu investiguei a vida dela no Rio -
confirmou Fábio.
-- Não contaram porque não sabiam. Bom, continuando a história. Um dia
a polícia descobre ele no aeroporto, embarcando na ponte aérea, junto
com a menina. Avisaram a gente, aqui em São Paulo. Achavam que o cara
estava carregado. Quente.
"Ficamos entusiasmados, claro. Íamos fazer uma prisão importante. Fomos
esperar o cara em Congonhas, e vimos ele saindo pelo portão de desembarque
com a loira. Estava todo mundo à paisana, eu inclusive. Mas o desgraçado
do Chileno parece que cheira polícia no ar."
(Talvez tenha cheirado a brilhantina dele - pensou Bernardo)
-- E daí? - perguntou Fábio.
-- Daí? Daí nada. Ele passou a mala pra mão da menina, saiu correndo de
onde tinha saído, e desapareceu.
-- Desapareceu? - exclamou Fábio, incrédulo --. No meio do aeroporto?
-- Sumiu, estou dizendo. Procuramos em toda a área de embarque, na pista,
até dentro do avião. Ele evaporou.
-- E então vocês prenderam a moça...
-- A gente só queria interrogar ela. Mas quando fomos olhar a mala, estava
cheia de cocaína. E ela jurava que a bagagem era dela.
-- Ela mesma disse isso?
-- Disse. A gente perguntou: "Mas a mala não era do rapaz que estava com
você?". E ela: "Que rapaz?".
"Ela finge que nem conhece o Chileno. A gente traz ela para essa sala,
interroga, interroga, e é a mesma coisa que falar com uma porta. Bom,
vocês já conversaram com ela. A mulher não dá uma pista. Diz que a droga
era dela, mas quando a gente pergunta quem forneceu...
-- Inventa umas histórias sem pé nem cabeça - completou Bernardo.
-- Exato. E, como é uma menina bacana, de boa família, a gente não pode
enfiar uns tapas - disse o delegado, com naturalidade. - Fosse uma vagabunda
qualquer, eu fazia ela dar o serviço rapidinho.
Fábio estava tão escandalizado, que foi Bernardo quem fez a próxima pergunta:
-- Mas ela sabe onde está o Chileno?
-- Se não sabe, tem uma boa idéia. Mas isso nós também temos... Estou
quase botando a mão no filho-da-puta. Inclusive sabemos que ele não saiu
de São Paulo. Isso - avisou - não é para vocês publicarem. Certo?
-- Certo - concordou o repórter. -- A Adriana vai ficar muito tempo presa?
-- Não, a família logo tira ela daqui - avaliou o Dr. Siqueira - Como
é primária, tem direito de aguardar o julgamento em liberdade. Mas isso
não resolve o problema. Dois quilos de coca é muita coisa. Quando for
a julgamento, vai ter que se rebolar para sair dessa encrenca. Tenho até
pena, mas ela não quer falar, o que eu posso fazer?
-- Mas por que ela não fala?
-- Sei lá, rapaz. Quem é que entende mulher?
Na sala das visitas, Adriana já estava esperando Fábio e Bernardo. Cumprimentou-os
afavelmente. Sentou-se. Arrumou de leve os cabelos.
A primeira pergunta de Fábio não poderia mais ser direta:
-- Adriana, quando você foi presa, estava sozinha?
Bernardo observou um levíssimo sobressalto na moça. Mas o rosto continuou
impassível:
-- Sozinha? Claro.
-- Você não conhece um rapaz chamado Rodolfo Macías Ferreira? O Chileno?
-- Chileno? Não. Nunca ouvi falar. Mas tenho uma amiga argentina, que
morava em Buenos Aires...
Fábio ficou uma hora com a moça na sala. Interrogou-a de todas as formas
possíveis e imagináveis. Ela respondia a todas as perguntas com um verdadeiro
muro de negação. Não sabia de nada, não conhecia Chileno nenhum, não tinha
namorado e não podia contar como a cocaína fora parar na sua mala.
-- Mas a mala não é sua? - perguntou Fábio, suando, desmoralizado.
-- Claro que é. Mamãe comprou pra mim em Ipanema, há uns seis meses. Você
vai ver como ela reconhece - afirmou a moça, inocentemente. Olhou para
o relógio: -- Bom, agora, vocês vão me desculpar, mas eu tenho que ir.
A carcereira já está me chamando - e deu um suspiro de mártir.
Dessa vez, não os convidou para mais uma entrevista.
-- Você esqueceu de perguntar da história da cela - lembrou Bernardo,
quando os dois saíram da delegacia. Fábio bateu na testa:
-- Porra, é mesmo!
"CARIOCA PRESA EM SÃO PAULO ESTARIA LIGADA A TRAFICANTE", anunciava o
jornal no dia seguinte.
Fábio tinha trabalhado até de noite para checar a história do delegado.
Conseguiu, finalmente, uma fonte no Rio que confirmou os principais detalhes.
-- Está todo mundo dando a mesma história hoje, não está? - perguntou
Mateus.
-- Está - admitiu Fábio.
-- Então capricha no texto. Você foi o único que falou com ela. Vamos
dar uma coisa diferente!
-- Mas ela não me disse nada!
Mateus olhou o repórter. Sorriu:
-- Exatamente, Fábio. Ela não te disse nada, nem pra polícia. Aí é que
está a história.
-- Essa menina é completamente louca - disse Eliane, depois de ler a matéria
de Fábio.
Bernardo lhe contara toda a história de Adriana, com detalhes. Eliane
estava feliz em ver que ele se interessava pelo assunto; assim, pelo menos,
não pensava o tempo todo em Patrícia.
O fotógrafo tomou um gole do chá que a assistente fizera. Eram dez da
manhã, e o estúdio estava vazio.
-- Você acha mesmo que ela é louca? - perguntou.
-- Mas é evidente! Imagine só, assumir a culpa num caso desses! Ela pode
pegar uma cana federal!
-- Talvez ela tenha os seus motivos.
-- Motivos? Que motivos? O cara foi um crápula! Largou a coitada com a
muamba na mão!
Bernardo tomou mais um gole de chá:
-- Como é que a gente vai adivinhar o que passou pela cabeça dela? - Seu
olhar estava distante, perdido no infinito.
-- Diz aqui que o advogado vai soltar ela no máximo até o fim de semana.
Mas ela vai a julgamento, se não mudar a história...
-- E ela não vai mudar - disse Bernardo. - Uma coisa você tem de admitir,
Eliane: essa moça é corajosa.
-- Eu não chamo isso exatamente de coragem...
Bernardo não respondeu. Ficou olhando a foto da moça, que ele mesmo batera.
-- Vai se apaixonar por essa maluca, hein! - disse Eliane, levantando-se.
-- Não é bem isso, Eliane - respondeu o fotógrafo, pausadamente - Não
é bem isso.
Houve um problema técnico, e Adriana acabou não sendo solta naquele fim
de semana. Fábio não conseguira mais entrevistas com ela, mas continuava
de olho no caso. Tinha certeza que logo teria novidades.
Às sete horas, naquele domnigo, Bernardo já estava acordado. Vestira-se
com um cuidado pouco habitual. Fizera um café, e agora estava sentado
à mesa, esperando, tenso.
"Se ela não trouxer a Patrícia" pensou, "pego o telefone, e ligo direto
para o advogado". A verdade é que não tinha motivo para imaginar que Tânia
não fosse trazer a menina. Às nove horas, pontualmente, ela tocou a campainha.
-- Pai, olha o que eu ganhei! - disse Patrícia, assim que entrou. Exibiu
uma enorme boneca, quase maior do que ela. -- É a Bernarda.
O pai não pode deixar de rir.
-- Bernarda? Coitada da boneca! - disse, agachando-se para pegar o brinquedo
- Ela é muito bonita, Patrícia. Quem deu pra você?
-- A mamãe!
-- Não, meu amor - corrigiu Tânia - foi o Caio, lembra?
-- Ah, é, foi - disse a garota, sem muito entusiasmo.
Muito sutil - pensou o pai. O Babaca dá uma boneca para ela, e ela batiza
com o meu nome. Quem disse que as crianças não são capazes de ironia?
-- Querida - disse Tânia para a filha - por que você não mostra o seu
quarto para a Bernarda?
-- Depois posso levar ela lá embaixo? -- perguntou Patrícia. - Quero mostrar
pra Diana! - Diana era a sua melhor amiga, que morava no quarto andar.
-- Claro que pode - assegurou Bernardo. A menina foi para o quarto, aos
pulos.
-- Bom, Bernardo - disse Tânia - imagino que você queira falar comigo.
-- Quero.
Tânia sentou-se no sofá. Bernardo ficou na poltrona à sua frente, com
o corpo muito rígido. Tinha pensado no que ia dizer durante vários dias.
Até ensaiara.
-- Tânia - começou ele - em primeiro lugar, gostaria que você soubesse
que eu não quero brigar. Vamos conversar com calma. Tudo o que eu vou
dizer é no interesse da Patrícia, certo?
A moça assentiu com a cabeça.
-- Tânia - começou o fotógrafo - uma criança precisa do pai.
-- Sem dúvida - concordou ela.
-- Eu acho - disse ele, falando devagar - que tenho sido um bom pai para
a Patrícia.
-- Claro.
-- Mudei completamente a minha vida por causa dela, e você sabe disso.
Eu antes não tinha horário pra nada, não tinha organização, não tinha
empregada, e vivia muito bem assim. Quando a gente se separou, me virei
em quatro pra arrumar um bom ambiente para a Patrícia.
-- É verdade, Bernardo.
-- Eu sei que tenho meus defeitos. Eu sei que fui um cachorro com você,
quando a gente estava casado. Não - disse, vendo que Tânia fazia um movimento
de protesto - fui cachorro mesmo. Pulei a cerca um monte de vezes.
-- É engraçado - disse Tânia, se permitindo um sorriso - na época, eu
queria te matar. Mas, hoje não sinto raiva de você.
-- Pode ser - disse Bernardo. - Enfim, admito que não fui grande coisa
como marido -- mas como pai, é outra coisa. Nunca neguei nada pra Patrícia:
carinho, atenção, tempo, a pouca grana que eu tenho... Não estou cobrando.
Não fiz isso porque sou um sujeito altruísta, ou pra cumprir o meu dever.
Fiz porque gosto da minha filha, ponto.
-- Eu sei disso.
-- Bom. Se você sabe, então por que quer me tirar a Patrícia?
Tânia sobressaltou-se:
-- Bernardo, não é assim. Você fala como se eu fizesse de propósito! Eu
já te disse, não planejei essa mudança. É uma chance irrecusável pro Caio,
pra mim... Eu juro por Deus que não quero separar vocês dois! Inclusive,
não tenho a mínima intenção de ficar em Belo Horizonte a vida toda! Um
dia eu volto para cá...
-- É mesmo, Tânia? Quando?
-- Bom, eu não sei... Quer dizer, é lógico que não posso prometer assim,
com exatidão...
-- Um ano? Dois anos? Me dá um prazo, Tânia.
Ela ficou muda. Bernardo inclinou-se:
-- Você pode mesmo jurar que não fica em Minas o resto da vida? E pode
me garantir que vai voltar para cá? E se você ou o Caio receberem
uma proposta em Brasília? Ou no Rio? Ou fora do país?
-- Bernardo, isso é especulação!
-- É mesmo? Até umas semanas atrás, Belo Horizonte não era nem especulação,
Tânia.
-- São só uns anos, Bernardo.
-- Uns anos - disse ele, como que meditando no assunto. -- Só uns anos.
Dos quatro aos sete da Patrícia, por exemplo. Você tem uma idéia de quantas
coisas eu posso perder, em três anos?
-- Acho maravilhoso que você pense assim - disse Tânia, com a cabeça baixa.
- Se todos os pais...
-- Você acha maravilhoso, mas não quer mais que eu seja pai da Patrícia.
-- Eu nunca disse isso! Você vai ver ela sempre...
-- Claro, dois fins de semana por mês. Levo ao cinema, compro pipoca,
pergunto da escola. E depois, boto no avião e digo tchau.
-- Um monte de pais vive assim.
-- Um monte de pais não sou eu, Bernardo Levinsohn
-- Ah, sim, esqueci que você é uma pessoa muito especial... - Suspirou
- Ponha-se no meu lugar, Bernardo. O que você quer que eu faça? Que jogue
tudo pro alto, casamento, carreira, para ficar em São Paulo com a Patrícia?
Bernardo não respondeu. Procurou o maço de cigarros no bolso, tirou um
e acendeu.
-- Pensei que você tivesse parado de fumar... - comentou Tânia.
-- Recaí - disse ele, olhando-a nos olhos. Tânia remexeu-se no sofá, assustada.
Não estava reconhecendo Bernardo naquele dia; ele parecia mais concentrado,
mais intenso. Quase perigoso.
-- Então - prosseguiu, insegura - você percebe que eu não tenho alternativa?
-- Claro que tem.
-- Ah, é? Qual?
-- Deixa a Patrícia comigo em São Paulo. -
- O quê? - gritou a moça.
-- Você não diz que são só uns anos? Então. Deixa a Patrícia aqui por
alguns anos. Quando você voltar, a gente retoma o esquema antigo.
-- Você está propondo que eu me separe da minha filha? - disse a moça,
branca de raiva.
-- Ué, não vejo porque esse escândalo: quando era para eu me separar dela,
você achava normal.
-- É completamente diferente.
-- Ah, é? E por que, a senhora pode me explicar?
-- É lógico que é diferente, Bernardo. A mãe é indispensável para a criança.
É a principal figura, é... é muito mais importante! - disse a moça, gaguejando
de raiva.
-- Como é que você sabe que é mais importante pra Patrícia do que eu?
A gente passa o mesmo tempo com ela! Aliás, com você trabalhando feito
louca, quem passa mais tempo sou eu!
-- Isso é ridículo. Não vou nem considerar essa proposta. Vou fingir que
não ouvi...
-- Mas eu estou falando sério!
-- Só você mesmo, pra pedir uma coisa dessas a uma mãe...
-- Ah, claro, sim, tinha me esquecido - disse o fotógrafo. - "Mãe" é uma
palavra sagrada. "Mãe" é intocável, certo? "Mãe" é sempre uma santa...
-- Eu não disse isso!
-- E pai é só o cretino que paga as contas - Sem perceber, Bernardo estava
relatando o arranjo familiar de Susana e Moshe Levinsohn.
-- Bernardo, não faça chantagem sentimental. A Patrícia fica comigo e
pronto. Se você quiser, podemos discutir melhor a questão de visitas.
E só.
-- Ótimo - disse Bernardo, amassando o cigarro no cinzeiro. -- Quer dizer
que a minha filha vai ficar em Belo Horizonte, a seiscentos quilômetros
daqui, morando com você e o Babaca...
-- Bernardo - a voz de Tânia saiu enfurecida - eu agradeceria se você
não chamasse o meu marido assim. E qual é o problema da Patrícia morar
com ele?
-- Você sabe muito bem qual é o problema.
-- O Caio gosta muito da Patrícia!
-- Mentira. Mentira. Mentira.
-- Ele pode não ter afinidade com crianças, mas...
-- O Babaca nem sabe falar com crianças, Tânia. Ele nunca foi criança
na vida. Já deve ter nascido com aqueles óculos ridículos em cima do nariz.
E na escola, enquanto os outros meninos brincavam, ficava na sala, puxando
o saco do professor...
-- Chega, Bernardo!
-- Pai, você não vai me levá lá embaixo? - perguntou Patrícia, colocando
a cabecinha para fora do quarto. Estava evidentemente assustada. Tânia
e Bernardo se entreolharam:
-- É mais um minutinho só, querida - disse a moça. - Papai já te leva.
Volta pro quarto, que papai e mamãe estão conversando.
Patrícia fechou a porta. Tânia olhou para Bernardo e começou a falar,
com a voz controlada:
-- Muito bem, Bernardo. Você já falou o que pensa. Agora, quem fala sou
eu, e você vai me escutar. Eu considero a sua proposta - frisou
a palavra, indignada - fora de questão. Nem vou discutir a idéia de me
separar da Patrícia. E, como já te expliquei, também não vou jogar casamento
e carreira pro alto. Nós tínhamos a guarda conjunta, e estava funcionando
bem, é verdade; mas, numa hora dessas, a gente tem que fazer uma opção.
E eu acho que a opção é sempre pela mãe. A mãe é mais importante para
a criança. Não sou eu quem está dizendo isso. Qualquer psicólogo, de qualquer
escola, te diz a mesma coisa. É uma questão de bom senso. Eu sei que é
duro pra você, mas a vida é assim mesmo.
"Como eu já disse, se você quiser discutir a questão de visitas, pode
me procurar. Se quiser briga, então procure o seu advogado. Eu não vou
ficar me desgastando. Cheguei aqui com a maior boa vontade, e só levei
pedrada. Boa noite."
Pegou a bolsa e levantou-se. Na porta, ainda avisou:
-- Eu me mudo daqui a três semanas. Até lá, a gente continua com o mesmo
esquema. E você pode ir preparando a Patrícia para a mudança. Eu já comecei
a fazer isso.
E saiu, batendo a porta.
-- Bem que eu adivinhei! - disse Eliane, entrando no estúdio, onde Bernardo
secava uma fileira de fotos - Você se apaixonou pela mulher do bandido!
Estava brincando, mas havia uma nota de preocupação em sua voz.
-- Não é bem isso, Eliane - respondeu Bernardo, dispondo as fotos da moça
na mesa. - Não é paixão. Se a Adriana estivesse por aí, solta na rua,
eu podia até me apaixonar. Mas ela está presa.
-- E daí?
-- O que eu sinto por ela - disse Bernardo, olhando a foto - é admiração.
Eliane ficou olhando Bernardo, muda.
-- O Chileno foi preso! - disse Fábio, colocando o telefone no gancho.
Bernardo sobressaltou-se:
-- Com droga? - perguntou.
-- Não, parece que ele está limpo. Mas a polícia está forçando a barra.
Querem fazer uma acareação dele com a Adriana. As minhas fontes me cantaram
a jogada desde a semana passada. A polícia estava com medo que a Adriana
fosse solta antes que achassem o Chileno... E sabe do que mais, Bernardo?
-- O que?
-- Só a gente sabe disso! Só nós vamos ver a acareação. O Dr. Siqueira
não contou para mais ninguém.
-- Pelo visto, a amizade de vocês se aprofundou - disse Bernardo. Havia
um certo tremor na suas mãos enquanto arrumava, às pressas, o seu equipamento.
Fábio estava excitadíssimo. Saiu pela porta como um raio, seguido do fotógrafo.
-- Dessa vez ela entrega o ouro. Você não acha? - perguntou, no caminho.
Bernardo balançou a cabeça:
-- Se fosse outra moça, com certeza entregava. Mas essa aí, não sei não...
-- Vai entregar, não é possível. Ela estava contando ser solta nesse fim
de semana, e não foi. A família visita ela todo dia. A mãe chora, o pai
quer internar numa clínica...
-- Coitada.
-- E agora, além de tudo, aparecem de surpresa com o Chileno. Ela vai
contar, você vai ver.
O Chileno sem dúvida não era um bandido comum - pensou Bernardo, espremido
no meio de uma dúzia de policiais, na Delegacia de Entorpecentes. O traficante
estava sentado em frente a uma mesa. Mesmo algemado, com a barba por fazer,
tinha uma presença impressionante.
-- Ele está nervoso - cochichou Fábio. - Não quer mostrar, mas está.
-- No lugar dele, você também não estaria?
-- O que será que a Adriana viu nesse cara? - indagou o repórter, com
um ar infeliz.
Bernardo sorriu. Já tinha visto casos mais estranhos. E sabia que homens
como o Chileno, com aquele charme suburbano - costeletas incluídas --
mexiam com a imaginação de um certo tipo de mulher. Tinham seu público,
por assim dizer.
Estava curioso para ver o que aconteceria.
-- Eles estão trazendo a Adriana para cá - cochichou de novo Fábio - Parece
que ela nem tem idéia que vai encontrar o cara. E só tem nós de jornalista
aqui. Vamos furar todo mundo...
Isso - pensou o fotógrafo - se houver alguma coisa a noticiar...
Nesse momento, Adriana entrou, algemada, e deu de cara com o Chileno.
Todos os olhos da sala se fixaram em seu rosto.
Mas não havia nada para se ver ali.
-- Você não conhece mesmo esse rapaz, Adriana? - perguntou o investigador,
pela milésima vez.
O Chileno estava impassível. Mas a impassibilidade - pensou Bernardo -
não era nada, perto do ar de surpresa bem-educada que a moça mantinha
há vinte minutos:
-- Se eu estou dizendo para o senhor! Nunca vi ele em toda minha vida!
-- Ele é seu namorado, Adriana... Nós temos fotos de vocês juntos - e
o investigador finalmente exibiu sua grande cartada, jogando um instantâneo
em cima da mesa. Adriana, friamente, pegou a foto, examinou-a, e colocou-a
de volta no lugar.
-- Isso não prova nada. A foto foi feita de longe. Pode ser qualquer moça
da minha altura, com o mesmo cabelo.
-- Mas nós temos testemunhas que viram vocês juntos!
-- Elas estão mentindo.
Em mais dez minutos, a acareação estava terminada. A moça não disse nada,
não demonstrou nada. E, para piorar as coisas, o seu advogado já estava
na porta da sala, furioso:
-- Delegado, isto é completamente ilegal!
-- Não precisa se preocupar, doutor - disse o delegado, azedo. - A Dona
Adriana não disse nada. A acareação já acabou.
-- Nós vamos entrar com uma queixa contra esse tipo de tratamento - ameaçou
o advogado. Mas ninguém mais o ouvia. Os policiais estavam saindo da sala.
Fábio precipitou-se atrás do delegado de Entorpecentes, para conseguir
uma declaração. A policial feminina aproximou-se de Adriana, para levá-la
embora. E foi nesse momento, quando Bernardo ainda estava encostado à
parede, que ele viu.
Viu um olhar do Chileno à moça. Um olhar brevíssimo, que durou menos que
uma fração de segundo - mas carregado de uma eletricidade tão poderosa,
que o próprio Bernardo se intimidou.
Os olhos negros de Adriana brilharam, também por uma fração de segundo.
Depois, ela estendeu às mãos à policial, e deixou-se algemar, enquanto
levavam o seu homem.
Na rua, Fábio estava tão desarvorado, que nem conseguia procurar um táxi:
-- Sabe o que eu estou pensando? - disse, com voz lamentosa, ao companheiro.
- Que a polícia inventou essa história toda. A Adriana nunca teve nada
com esse sujeito! Vai ver, a cocaína era dela mesma.
Bernardo respondeu, meditativo:
-- Normalmente, eu até te daria razão, Fábio... A polícia faz muita besteira
mesmo. Mas, nesse caso, acho que eles contaram a verdade. A menina ficou,
sim, com a droga do Chileno. E outra coisa: ela é muito esperta. Adivinhou
que essa acareação ia acontecer, e se preparou pra não dar bandeira.
-- Não acredito - gemeu o repórter - Ninguém é tão boa atriz.
-- Pois essa aí podia ganhar o Oscar. Na hora em que você saiu, eu vi
ela olhar pro Chileno.
-- Viu mesmo? - perguntou Fábio, fulminado.
Bernardo assentiu com a cabeça. O repórter ficou parado na calçada, com
o olhar perdido. Parecia muito longe. De repente, ergueu o braço:
-- Táxi!
Os dois entraram no carro, e Fábio deu o endereço da delegacia onde Adriana
estava. Bernardo olhou-o, surpreso:
-- A gente vai voltar para lá?
-- Vai.
-- Mas pra fazer o que? Essa história acabou, Fábio. Amanhã a Adriana
está na rua. O Chileno também.
-- Eu preciso falar com ela - disse o rapaz, com uma determinação que
surpreendeu Bernardo. -- Já. Antes que seja solta.
Na Delegacia, o doutor Siqueira não queria deixá-los ver a moça:
-- Fora do horário de visitas? E depois da palhaçada que ela me fez? Nem
pensar.
O delegado parecia pessoalmente ofendido com Adriana.
-- Mulher é tudo maluca mesmo. Em trinta anos de carreira, é a primeira
vez que eu fico batendo a cabeça para provar que alguém é inocente. E
a burra não ajuda!
-- Eu sei, Doutor Siqueira.
-- Juro por Deus, lá na Entorpecentes fiquei com vontade de dar umas bolachas
nessa vaquinha. Agora, a gente nunca mais bota a mão no Chileno. E se
ela não se cuidar, vai pegar uma sentença enorme.
Bufou durante vários minutos. Mas Fábio havia citado o Dr. Siqueira em
todas as suas reportagens, e ele não era ingrato. Acabou cedendo:
-- Vocês têm quinze minutos. Sei lá se ela vai receber vocês...
Adriana recebeu-os com a mesma gentileza de sempre. Somos a diversão predileta
dela - pensou Bernardo. Fábio sentou-se, colocou as mãos em cima da mesa
e falou:
-- Adriana, a gente sabe que você é namorada do Chileno.
-- Eu nunca vi aquele rapaz na vida. - começou ela. - Com certeza me confundiram
com outra pessoa...
-- A gente sabe que ele trouxe a cocaína para São Paulo e largou na sua
mão, quando a polícia apareceu.
-- Você pode acreditar nisso, se quiser, Fábio... Mas não é verdade.
-- Adriana - disse o repórter - você é uma mentirosa.
-- Você é a melhor mentirosa que eu já vi na minha vida, Adriana - ajuntou
o fotógrafo, inesperadamente. - Nós achamos você o máximo.
Adriana não respondeu. A sombra de um sorriso começou a se desenhar em
seu rosto.
-- Eu nunca vi uma cara-de-pau igual à sua - continuou Bernardo.
-- Fantástica. - concordou Fábio - Você é uma artista. Agora, que tal
contar a verdade pra gente? Não custa nada.
Silêncio.
-- Eu não vou publicar - garantiu o repórter. - Não vou nem tomar notas.
-- Se vocês já sabem a verdade, por que querem que eu conte? - perguntou
ela.
-- Nós já sabemos que você está protegendo o Chileno - explicou Bernardo.
- Mas por que? Só a sua palavra não ia condenar ele. No máximo, ficava
uns tempos em cana. Com um bom advogado, podia ser solto por falta de
provas.
-- Mas você pode pegar anos de prisão. Por que? - perguntou Fábio. - Por
que você quer encobrir ele de qualquer jeito? Conta pra gente. Eu não
vou publicar, já disse. Não tenho nem gravador aqui.
Adriana olhou para o repórter, em dúvida. Fábio começou a revirar todos
os seus bolsos, para provar o que dizia. Bernardo, além de fazer o mesmo,
abriu a bolsa e mostrou o seu conteúdo:
-- Só equipamento fotográfico - disse.
A moça acenou com a cabeça:
-- Podem sentar. Eu falo. -- A máscara havia, finalmente, caído do seu
rosto, que parecia mais humano.
-- O Chileno não pode ser preso - disse. Suas palavras tinham um tom definitivo.
Bernardo e Fábio se entreolharam.
-- Como assim, "não pode"? - perguntou o repórter.
-- Tem gente na cadeia que vai matar ele.
-- E, aí, você é que tem que mofar na prisão?
-- Se ele for em cana, morre. Eu já estava avisada que podia pintar sujeira.
Naquele dia, ele ia vender a coca e sair do país comigo... Só nós dois.
Bernardo já havia entendido, mas Fábio continuava abismado:
-- Mas você está com um processo nas costas, Adriana! Nem sair do país
pode mais! Acha mesmo que um sacrifício desses vale a pena?
Adriana sorriu.
-- Por que, Fábio, você não acha?
-- Não, não acho.
-- Você nunca fez nada parecido? Nunca fez nenhuma loucura, por alguém
que você gostasse?
-- Claro que não!
-- Que pena - disse ela, se levantando para sair. -- Que pena mesmo. Sinto
muito por você.
Depois daquela entrevista, Adriana tornou-se uma obsessão para o fotógrafo.
Dormindo, Bernardo sonhava com ela. Acordado, pensava durante horas no
seu gesto, na tranquilidade com que blefara, jogando tudo numa só rodada.
À noite, sozinho em seu apartamento, recordava a história da moça. Lembrava
as coisas que ela fizera, as atitudes que tomara. Por amor. Lembrava suas
palavras na última entrevista: "Você nunca fez nenhum sacrifício por ninguém?
Que pena!"
Bernardo sabia que, pelo senso comum, Adriana era doida varrida. Mas,
para ele, todas as suas ações faziam sentido. Um outro pensamento - já
desenhado em cores indecisas, no fundo da sua mente -- foi tomando força,
se impondo, dominando. Até que os contornos ficaram claros.
Na sexta-feira à tarde, Mateus e Bernardo estavam ao lado de Fábio, na
redação, quando o telefone tocou. Era o Dr. Siqueira.
-- A Adriana foi solta - disse Fábio, depois de desligar. - Já tomou o
avião para o Rio.
Tinha um ar desconsolado. Mateus deu uma risada:
-- Não fica assim, Fábio. Agora, eles vão viver felizes para sempre.
-- Eles quem?
-- A Adriana e o Chileno - disse o chefe de Reportagem, jogando o copinho
de café no lixo.
Fábio suspirou:
-- Ela me fez de bobo - disse.
-- Só no começo - lembrou Mateus. Falava a sério, agora. - Depois você
ficou mais esperto. Até que aprendeu bastante, fazendo essa matéria.
-- É, mas...
-- Mas o quê? Nós demos esse caso melhor do que qualquer jornal de São
Paulo. E eu gostei do texto da sua última reportagem -- a da acareação.
Muito bom, muito bem escrito. Jornalismo de primeira -- Olhou em volta
da redação, suspirou e disse: -- Aproveite, porque você não vai fazer
isso muito tempo...
E afastou-se em direção ao "aquário". Fábio seguiu-o com os olhos.
-- O que ele quis dizer? - perguntou, intrigado.
-- Sei lá - disse Bernardo, encolhendo os ombros.
O telefone tocou. Fábio atendeu:
-- É pra você - avisou. - Acho que é a sua secretária.
-- Assistente - corrigiu Bernardo. Prendeu o fone debaixo do pescoço,
enquanto tentava puxar um cigarro do bolso: -- Eliane?
-- Oi, Bernardo - respondeu a secretária, do outro lado - Escuta, tenho
vários recados para você.
-- Manda.
-- Primeiro: aquele seu amigo, o Thales, ligou dizendo que a pasta de
dente pode ser antecipada, e que vai dar muita grana. Ele disse que você
sabe do que se trata...
-- Sei.
-- Segundo: a produtora daquela revista quer saber quando pode marcar
a reportagem de moda com você.
-- Não pode.
-- Como assim, não pode?
-- Não vai dar pra fazer. Ando muito ocupado.
-- Hum, como estamos ficando importantes! Tá legal, eu aviso ela. Terceiro:
a Tânia perguntou se no domingo de manhã você pode passar na casa dela,
pra pegar a Patrícia. Ela está meio sem tempo, parece que vai trabalhar....
-- Tudo bem, eu passo.
-- E é só.
-- Tá bom, Eliane. Muito obrigado.
-- De nada. Ah, só mais uma coisinha: você viu aqueles papéis de Londres?
-- Que papéis?
-- Os papéis da bolsa para Londres, lembra? Aquela que você ganhou e não
quis. Eu queria arquivar, mas não estou achando...
-- Não sei - disse Bernardo. - Andei dando uma olhadinha neles, e depois
acho que enfiei em qualquer lugar aí no estúdio. Sei lá. Dá uma procurada.
-- Tá legal. Você passa hoje ainda por aqui?
-- Não.
-- Então, até segunda.
-- Até segunda. Eliane...
-- Sim?
-- É... bom... Não é nada. Eu só queria te desejar um bom fim de semana.
-- Nossa, quanta cerimônia! Pra você também, Bernardo.
No sábado, Bernardo passou um dia muito ocupado, arrumando muitas coisas.
No domingo, Bernardo levantou cedo e foi para o apartamento de Tânia.
O zelador, que já o conhecia, o deixou subir sem maiores formalidades.
No oitavo andar, onde o casal morava, o Babaca veio atendê-lo:
-- Oi, Bernardo - disse, sorrindo. Sempre fora amistoso, o cretino.
-- Oi - respondeu o fotógrafo - Vim pegar a Patrícia.
-- Ah, claro. Entre.
"Onde é que ele arranjou essa bermuda?", pensou Bernardo. "Meu Deus do
Céu! Deve ser veado, não é possível. Alguém tem que avisar a Tânia que
ela está morando com um veado!"
Sons grandiloquentes vinham da sala do apartamento. Era um três quartos
enorme, muito confortável.
-- Estava ouvindo Wagner - explicou o Babaca, muito afável. - Você gosta?
-- Não. Acho música clássica um saco. Só gosto de rock.
-- Ah, claro. Rock também é ótimo. Os Smiths, por exemplo...
-- Detesto os Smiths.
Derrotado nas suas tentativas de aproximação, o Babaca formalizou-se:
-- Bom, a Tânia está no quarto com a menina. Pode entrar. Fique à vontade.
E voltou a afundar-se na sua poltrona. Com os passos abafados pelo tronitoar
de Wagner, Bernardo enveredou pelo corredor.
No quarto de Patrícia, Tânia estava deitada no tapete, brincando com a
menina. Nenhuma das duas notou a aproximação de Bernardo. A mãe erguia
Patrícia no alto e perguntava:
-- Quem é que ama a Pati mais que tudo no mundo?
-- A mamãe! - respondia a menina.
-- Quem é que leva a Pati pra passear?
-- A mamãe!
-- E quem é que a Pati ama?
-- A mamãe! - gritou a menina. E as duas rolaram no chão, rindo.
Bernardo desviou os olhos, inquieto.
Segunda-feira, Eliane chegou de manhã no estúdio, e foi fazer o seu chazinho.
Tomou uma xícara, passou no banheiro para retocar a maquiagem e começou
a arrumar a mesa do chefe.
Em cima da mesa, havia um envelope branco, sem selos, com o seu nome em
letras maiúsculas. Franzindo a testa, ela abriu o envelope, tirou a folha
que continha e começou a ler. Logo às primeiras linhas, deu um grito abafado
de horror, e correu para a rua.
-- Para o aeroporto - ordenou, nervosa, ao primeiro motorista de táxi
que parou. - Depressa, por favor!
O motorista saiu cantando os pneus. Eliane, olhando o tráfego pela janela,
resmungou, desesperada:
-- Foi aquela tal de Adriana. Foi ela! Eu sei que a culpa é dela!
Na livraria do Aeroporto Internacional, um rapaz magro e narigudo conversava
com uma garotinha:
-- Agora a gente tem que ir embora, tá? Papai compra um gibi pra você
ver no avião. Esse aqui, olha...
-- Não quero esse! Quero o do boi!
E a menina apontou para uma revista, que estampava na capa uma reportagem
sobre o gado nelore.
-- Tá bom, papai compra. Mas vamos logo! Precisamos pegar o avião.
Pagou as revistas e foi conduzindo a garotinha pela mão, em direção à
área de embarque. No bolso de sua camisa, levava dois cartões de embarque
de um vôo para Londres.
-- Pai, você está machucando minha mão - reclamou a menina.
-- Desculpa - disse ele, afrouxando a pressão - Mas vamos logo, tá? O
avião está quase saindo! - Parou um pouco, e jogou um maço de cigarros
ainda cheio no lixo. Depois, os dois sumiram pelo longo corredor.
FIM
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