-- Bernardo, por favor,
não minta pra mim.
-- Eu não estou mentindo.
-- Há quanto tempo você namora essa moça?
-- Uns meses.
-- Meses! E eu sou a última a saber! - protestou a mulher do outro
lado, num gemido. Cansado, Bernardo afastou uma mecha de cabelo da testa.
Olhou o relógio. Suspirou. Arrastou um banquinho e sentou-se nele, com
o telefone no colo.
-- Mas quem é essa moça? - disse sua interlocutora, após alguns momentos
de reflexão. - Onde você conheceu ela?
-- No jornal.
-- No jornal. - Outra pausa. - Ela é repórter?
-- Editora.
-- Bernardo, pelo menos você conhece a família dessa menina?
O fotógrafo não respondeu. Olhou pela janela: lá fora, a chuva tinha
começado a cair. Deviam ser onze horas. Desde as dez e meia, havia duas
pessoas esperando-o no jornal: um repórter que precisava dele para fazer
uma matéria, e a editora de Política, que era sua chefe. Casualmente,
Tânia também era sua namorada, e morava com ele há quinze dias.
-- Se eu soubesse disso, francamente, não seria fiadora do apartamento.
-- Mãe!
-- Desculpa, Bernardo. Eu não quis dizer isso. Mas é que é muito duro
pra mim, meu filho. Vou visitar o seu apartamento novo, toco a campainha,
e me abre uma menina que eu nunca vi na minha vida! Como é que você acha
que eu me senti?
-- Mãe, primeiro, você podia parar de chamar a Tânia de "menina".
-- Que idade ela tem?
-- B-bom.... - gaguejou ele.
-- Bernardo, pelo amor de Deus. Você não quer dizer que essa moça é mais
velha que você!
-- Uns anos só, mãe.
-- Que idade ela tem?
-- Trinta.
Houve um silêncio chocado do outro lado.
-- Mãe, peraí. Também não é o fim do mundo. Eu já tenho vinte e quatro.
-- Bernardo, meu filho. Eu até aceito que você vá morar com essa tal de
Sônia, sem casar. Hoje em dia é assim mesmo, casamento não vale mais nada.
Mas uma mulher mais velha? Você está louco? Vai me dizer que não achou
alguém da sua idade? Um rapaz tão bonito como você! - Dona Susana estava
à beira das lágrimas - Bernardo, escute a sua mãe, que ela tem mais experiência.
Essa moça vai estragar sua vida.
Vinte minutos mais tarde, Bernardo Levinsohn desligou o telefone. Olhou
de novo pela janela. Que tempo escroto! - pensou. Chovia sem parar. O
tal comício ia ser um fracasso.
Talvez pudesse esperar mais uns minutos, antes de sair. Só mais um pouquinho.
E se alguém tivesse tentado ligar, enquanto ele ouvia as lamentações da
mãe? Só de pensar na possibilidade, o seu pulso se acelerou.
Acendeu um cigarro e começou a dar voltas pelo cômodo. Havia pouca mobília
na sala: uma mesa, duas cadeiras e, para algum eventual visitante, duas
almofadas jogadas pelo chão. "Assim que eu tiver uns dias de férias no
jornal, faço a decoração", prometera Tânia, com ar culpado. "Juro, amor".
E ele, naturalmente, afagara os seus cabelos, lhe dera um beijo e dissera
para não se preocupar. Já fora uma vitória os dois terem conseguido se
mudar. Estavam atolados de trabalho até o pescoço. Um horror, aquelas
eleições. Bernardo e Tânia corriam o dia todo para cobrir comícios, coletivas,
etc. À noite, de tão exaustos, caíam duros na cama de casal recém-comprada.
-- Eu sei que é um saco - dizia Tânia - mas, afinal, a gente está vivendo
um momento histórico. As primeiras eleições diretas para o governo do
Estado, em vinte anos! Vale o sacrifício. Tudo bem, pode-se dizer que
é uma concessão da ditadura, mas, de qualquer forma... - entusiasmava-se,
e continuava falando por vários minutos. Quando terminava, o namorado
já estava dormindo.
Lutando contra o relógio, Bernardo olhava o telefone como se ele fosse
uma fera adormecida, capaz de atacá-lo a qualquer momento. Finalmente,
ele tocou. O fotógrafo precipitou-se com tanta fúria, que caiu de bruços
no chão. Levantou-se com um palavrão e pegou o fone.
-- Alô?
-- Bernardo? - disse a voz de Tânia, do outro lado da linha. - Você ainda
está aí?
-- Já vou, amor!
Tânia Gomes
parecia mais nova do que era. Talvez por ser pequena e magra. Talvez pelo
seu eterno ar de estudante aplicada, reforçado pelos óculos que usava
na redação. Sentada atrás da máquina de escrever, ela recebeu o namorado
com um olhar em que se misturavam reprovação e carinho.
-- Bernardo, pelo amor de Deus! Isso é hora de chegar?
A redação estava semivazia. Edinete, a faxineira, espanava as mesas. Do
outro lado da enorme sala, Dona Adelaide, a colunista social - uma velhinha
sucumbida num casaco preto, emoldurado por suas eternas pérolas - já estava
a postos, lendo os jornais com um ar de intensa concentração, os óculos
na ponta do nariz. Àquela hora - pensou Bernardo - com certeza ela já
tinha "visitado" a garrafinha de uísque que guardava na gaveta.
-- Também não sou obrigado a acordar na mesma hora que você, né? - disse
ele a Tânia.
-- Tudo bem - concedeu ela - não vou te forçar a acordar mais cedo, só
porque eu preciso estar aqui de manhã. Mas já é meio-dia, e o comício
estava marcado pras onze! E não dá pro Hélio ir sozinho... Bernardo! O
que é que você está olhando aí?
Ele espiava por baixo da escrivaninha.
-- Você está de minissaia! - disse, com ar triunfante. Tânia corou feito
uma menina.
-- Pois é, entrou na moda de novo... Você acha que pega mal usar aqui?
-- Imagine. Com as pernas que você tem, vão te dar até uma promoção.
-- Bernardo, larga de ser machista. - disse Tânia, esforçando-se para
não sorrir - Vamos falar a sério. Querido, você sabe que eu estou numa
posição delicada, aqui na editoria.
-- Posição delicada? Não acho. Desde que não cruze as pernas...
-- Pára, Bernardo! Mas que coisa! Puxa, eu acabei de ser promovida. E
essas eleições são um teste, entende? Nunca houve uma editora de Política
nesse jornal. Está todo mundo me olhando, torcendo pra eu pisar na bola.
E no meio disso tudo, transferem você pra cá.
-- Foi sacanagem. - protestou Bernardo, com ar ressentido - Eu estava
muito melhor na Cultura.
-- Meu querido, foi uma promoção! Você acha que te trouxeram de lá por
quê? Porque precisavam de alguém bom para cobrir as eleições! Eles confiam
em você, amor. É uma grande chance!
-- Chance do quê? - protestou Bernardo. - De ficar o resto da vida fotografando
aqueles políticos velhos e barrigudos?
-- Não seja criança, Bernardo. Nós dois podemos arrasar, aqui nessa editoria!
Agora, se você começa a pisar na bola, a chegar atrasado, a fazer burrada
que nem na quinta-feira...
-- O que aconteceu na quinta-feira? - protestou ele, espantado. Tânia
abriu a gaveta, tirou de lá uma foto e passou-a ao namorado, sem maiores
comentários.
Bernardo fez uma exclamação de horror.
-- Saíram todas assim?
-- Todas. Se quiser te mostro o contato. Puxa vida, Bernardo. A única
ocasião que a gente tem de fotografar esse filho-da-puta, e ele sai em
todas as poses com o olho fechado! Não, mas francamente, o que está acontecendo
com você? Faz uma semana que está com a cabeça no ar!
-- É cansaço, Tânia. Cansaço.
-- Eu sei, meu querido, mas se coloque na minha posição. Eu sou sua chefe.
Todo mundo sabe que a gente foi morar junto. Se você fica chegando atrasado,
perdendo foto, como é que fica pra mim? Pensa um pouco.
-- Está bem - disse Bernardo, com ar contrito. - Juro que vou prestar
mais atenção.
-- Então, assunto encerrado. Escuta, quando é que a tua mãe vai aparecer
de novo? Achei ela tão simpática...
Antes que Bernardo pudesse responder, um rapaz barbudo entrou na redação,
e acenou para eles, do outro lado da sala:
-- E aí, seu delinquente? Vamos pro comício?
-- Estou indo, Helinho! - respondeu o fotógrafo. Deu um rápido beijo em
Tânia, e colocou a sacola no ombro:
-- Você chega cedo em casa?
-- Hoje não - respondeu ela. - Tenho um compromisso no fim da tarde.
-- Que compromisso?
-- Depois eu conto.
-- E aí? - perguntou Hélio, assim que entraram no táxi. - Ela te ligou?
Bernardo balançou a cabeça, desalentado. O repórter deu uma gargalhada:
-- Eu avisei, cara. Essa mulher está te fazendo de bobo.
Às onze horas da noite, Tânia estava tirando a minissaia, exausta. Sentou-se
na cama. Bernardo começou a acariciar suas pernas.
-- Agora não, querido - disse ela. Suspirou: -- Meu Deus, que horror!
Pensei que essa edição não fosse fechar nunca! O Célio atrasou para mandar
matéria de Brasília, deu um monte de problema...
-- E aquele compromisso no fim da tarde? - perguntou Bernardo, bocejando
e recostando-se nos travesseiros - Conseguiu ir?
Tânia mudou de cor. Perturbada, abaixou-se, fingindo mexer na fivela da
sandália:
-- Consegui. Aliás, a gente precisava conversar sobre isso... - Nesse
momento, o telefone tocou.
-- Eu atendo - disse Bernardo, pulando da cama. Quase tropeçou de novo,
no corredor. Pegou o telefone com a mão trêmula.
-- Alô?
A voz inconfundível de Dona Susana estava de volta, do outro lado:
-- Bernardo, querido? É a mamãe.
-- Ah. Oi, mãe.
-- Liguei para pedir desculpas. Eu estava meio nervosa hoje de manhã.
-- Não tem importância.
-- Estive pensando. Você não quer trazer essa moça, essa tal de Sônia,
para almoçar aqui no fim de semana? Pra gente se conhecer melhor...
-- É Tânia, mãe. Tânia.
-- Eu não sei, Bernardo. Não sei. Adorei a sua mãe, mas... Fico meio cabreira
com essa história de conhecer família, sabe. O que me aborrece não são
as pessoas, é a instituição. Você acaba entrando numa engrenagem...
-- Entendo.
-- Não que eu tenha nada contra os teus pais, é lógico. Devem ser pessoas
ótimas. O problema é a instituição.
-- Sei. Você mudou a marca do iogurte?
-- Só tinha essa marca no supermercado. Bernardo...
-- Hum?
-- Você acha que a sua mãe vai ficar ofendida, se eu não for almoçar com
ela?
-- Imagina. Que bobagem.
-- Mais uma porção de torta, Tânia?
-- Não, dona Susana, obrigada. Já repeti três vezes. Agora acho que vou
experimentar o viradinho...
-- Moshe, passe pra ela o viradinho! - ordenou dona Susana. O pai de Bernardo,
que tinha conservado um silêncio carrancudo durante o almoço, fez o que
lhe pediam. No caminho, entretanto, parou o prato, e ficou olhando sombriamente
para Tânia.
-- Então você é editora de Política no jornal? - perguntou.
-- Sou sim - disse a moça, tentando sorrir. Estava apavorada.
-- Pois me diga uma coisa: quem foi que explodiu aquela bomba? - perguntou
ele. Continuava segurando o prato de viradinho, como se ele fosse um prêmio
reservado à moça, apenas se ela respondesse corretamente à pergunta.
-- O senhor quer dizer a bomba do Riocentro? - perguntou Tânia. Moshe
Levinsohn balançou a cabeça afirmativamente. - Bom, seu Moshe, ninguém
tem certeza...
O telefone tocou, no hall ao lado da sala de jantar.
-- Moshe, não seja burro - disse Dona Susana ao marido. - A Tânia não
pode responder, não é verdade, Tânia? Os jornalistas sabem tudo, mas não
podem comentar. O primo da minha vizinha também é jornalista. Mesma coisa.
A gente senta do lado dele, fala, fala, e ele não abre a boca!
O telefone continuava tocando.
-- Eu atendo - disse Bernardo, levantando-se com um pulo da cadeira. Foi
até o hall e fechou a porta
-- Alô?
-- Bernardo?
Seus joelhos começaram a tremer. Reconheceria aquela voz em qualquer lugar
do mundo - grave, macia, aveludada. Uma voz que prometia coisas excitantes.
-- Sou eu.
-- Achei o telefone dos teus pais na minha agenda. Como não estavam atendendo
no apartamento, e hoje é sábado...
-- É, eu vim almoçar aqui.
-- Filar o almoço da mamãe, certo?
-- É, isso mesmo.
-- Acho que vou ter que te tirar daí. Desculpa, Bernardo, mas tem que
ser hoje. Ele foi viajar e só volta à noite. Fiquei sabendo de última
hora, por isso não te avisei.
-- Está bem. Onde?
-- Não sei se você vai gostar muito da minha idéia, mas...
-- Fala.
-- Você conhece esse shopping novo que abriram agora?
-- No shopping?
-- Querido, aqui em casa não pode ser. Eu estou muito desconfiada com
essa governanta nova que ele botou. Ela me olha dum jeito... Bar e restaurante
é perigoso, posso trombar com um conhecido. No seu apartamento, bom, tem
a Sônia.
-- Tânia.
-- Ou seja lá como ela se chame. Eu realmente não vejo outra opção. Shopping
é mais tranqüilo. Mais anônimo, entende? E esse novo, que abriram agora
perto da Marginal Pinheiros, é ótimo. Tem até piano-bar.
O grande motivo pelo qual ela escolhera o shopping - pensou Bernardo -
era a segurança. Num lugar público, ele não poderia tentar nada além de
alguns beijos.
Mas ele tinha tanta, tanta vontade de vê-la....
-- A que horas?
-- Agora é quase uma, certo? Olha, vou te dar bastante tempo. E eu também
quero me arrumar, ficar bonita. Quer dizer, vou tentar, mas está cada
vez mais difícil... Três horas no barzinho, assim está bem?
-- Combinado.
Bernardo desligou o telefone e voltou à sala de jantar. Sentada ao lado
de Tânia, sua mãe estava dizendo, em voz confidencial:
-- O Bernardo me contou que você é chefe dele. Que maravilha, né? Agora
me diz uma coisa, Tânia: será que não dava pra aumentar o salário do coitado?
Ele está ganhando tão pouco!
-- Free-lancer? Mas que free-lancer é esse?
Estavam no carro, de volta do almoço. Bernardo explicou:
-- Uma foto de moda. Querem que eu vá fotografar umas manequins no Ibirapuera.
-- Mas justo hoje, no seu dia de folga?
-- Taninha, vê se entende. Não é nem pelo dinheiro. Mas é que eu tenho
que botar um pé nesse negócio de moda, publicidade, etc. Ganha muito mais
grana. Não posso ficar o resto da vida dependendo de salário de jornal...
- e, nos próximos minutos, Bernardo falou incansavelmente, inventando
detalhes que melhoravam a mentira. Tânia acabou concordando:
-- É, melhor você ir mesmo. Eu vou aproveitar a tarde pra dar uma descansadinha.
Depois não se esqueça de me mostrar as fotos, hein?
Mais um problema - pensou Bernardo, preocupado. Onde desencavar a tal
foto? Bom, pensaria nisso mais tarde.
Deixou a namorada em frente ao prédio, e foi para o shopping já meio nervoso,
suando frio nas mãos, o coração acelerado. Na entrada, quase esbarrou
num carro novinho.
-- Não enxerga onde está indo, seu cretino? - disse o motorista, gordo
e barrigudo. No banco de trás, uma ninhada de crianças pulava e gritava.
-- Desculpe - disse Bernardo, tentando sorrir. - Estava meio distraído.
Frustrado por não ter conseguido puxar uma briga, o gordo partiu, cantando
os pneus. Bernardo mal teve tempo de olhar a morena ao lado dele.
Nada má, a mulher do gordo.
"Eu também não estou tão mal", pensou, entrando no shopping, e olhando-se
em seus múltiplos espelhos. "Podia ser pior. Claro, não sou nenhum galã
de novela. Como poderia ser, com esse narigão -- e magro feito um cabide?
Mas há quem me ache interessante. Não posso me queixar da vida."
Subiu pela escada rolante.
"Já o marido da Renata é bonito. Até eu, que sou homem, acho ele bonito.
E, no entanto, ela prefere o magricelo aqui. Um dia, quem sabe, arranco
ela daquele apartamento de cobertura. Por que não?"
Entrou no bar para esperar. Meia hora se passou.
"Não vem mais", concluiu, sombriamente. "Safada. Me largou aqui sozinho,
nesse barzinho cheio de yuppies, que me olham como se eu fosse de Marte.
Me deu o cano, lógico. Não seria a primeira vez. Essa mulher é uma praga..."
"Eu devia era voltar pra casa. A Tânia está me esperando. Ela sim me ama..."
Pediu um uísque.
-- Só temos nacional - informou o garçom. Bernardo fez uma careta. Que
lugar escroto! Pediu uma vodca - pelo menos saía mais barato. A bem da
verdade, ele nem sequer tinha dinheiro para estar ali, sentado. Aquela
espelunca devia ser caríssima.
Num canto, um rapaz espinhudo assassinava penosamente a "Garota de Ipanema".
Foi só no meio da vodca que Bernardo notou que estava sentado de costas
para o elevador. Virou-se. Naquele exato momento, ela estava chegando.
Renata. Renata Francisca de Oliveira Abdalla Abuisson. Se o nome já era
impressionante, Renata em pessoa provocava reações aparvalhadas nos homens.
O ascensorista precipitou-se para deixá-la sair em primeiro lugar do elevador.
Um homem que estava tomando sorvete, sentado num banquinho, ficou olhando-a
fixamente, até que o sorvete caiu na lapela do seu terno e lá ficou, como
uma condecoração. Quando ela entrou no bar, o rapaz do piano perdeu vários
compassos da "Garota de Ipanema".
O garçom, que até ali fizera o possível para ignorar Bernardo, correu
em direção à sua mesa e puxou uma cadeira, todo sorridente.
-- Muito obrigada - disse ela, devolvendo o sorriso. E sentou-se, com
todo cuidado, acomodando aos poucos a barriga de sete meses.
Bernardo não estranhava a barriga. E não estranhava pelo bom motivo de
que já conhecera Renata com ela.
Estava fotografando para uma revista de moda, há três meses, quando o
produtor apareceu no estúdio. Deu uma série de instruções e palpites,
começou uma briga com uma das manequins, e finalmente puxou Bernardo para
um canto:
-- Fica frio, meu, mas é o seguinte: a Renata Abdalla quer ver as suas
fotos.
-- Renata Abdalla? - perguntou ele, franzindo a testa. -- Não é aquela
manequim?
-- Manequim e fotógrafa. Parou de posar há três anos, e foi fotografar.
Trabalhou para um monte de revistas. - Citou alguns nomes. - Ela é muito
competente.
-- Mas por que raio ela quer ver as minhas fotos? Que absurdo é esse?
-- Ela é casada com o dono da editora.
-- Ah - fez Bernardo.
Só faltava aquela, pensou. Só faltava!
-- O marido não deixa trabalhar, ela tá de saco na lua, então de vez em
quando inventa uma dessas. Mas é boa gente. Acho que ela quer mais é sair
um pouco de casa, trocar umas figurinhas com um colega, sabe?
-- Sei. Uma dondoca entediada - disse o fotógrafo, começando a arrumar
seu equipamento na bolsa.
-- Ah, não esquenta, Bernardo. Você vai gostar dela. E além do mais, a
mulher é um avião. Você não se lembra dela, quando era manequim? Vivia
em capa de revista...
-- Não, não lembro - disse ele, mal-humorado.
-- Ela é linda. Você vai babar.
Ela não telefonou antes, não se anunciou, nem mesmo bateu à porta. No
dia em que veio ampliar o negativo, Bernardo estava fechado no quarto
escuro, pendurando as fotos, quando sentiu alguém ao seu lado.
-- Por que você não usou uma grande angular? - disse a mulher, apontando
uma das fotos. Devia ser a dondoca arrependida, a tal de Renata.
No escuro, Bernardo não via bem seu rosto; mas a voz, desde o primeiro
momento, lhe deu arrepios. Tentou tomar pé da situação.
-- Eu fiz uma versão em grande angular - conseguiu dizer, depois de alguns
segundos. - Não ficou boa.
-- Posso ver? - perguntou a voz.
Em silêncio, Bernardo passou-lhe uma das fotos já secas, do outro lado
da pia. Era ridículo; constrangedor. Uma das maiores editoras do país,
e a mulher do dono vinha xeretar o seu trabalho. Nem que fosse a padaria
da esquina.
-- Você tem razão - disse Renata, devolvendo-lhe a foto rejeitada. - Não
daria certo mesmo. -- Com um movimento, ela jogou os cabelos para trás.
À luz vermelha do cômodo, Bernardo viu pela primeira vez o seu rosto,
de uma gloriosa beleza árabe. As sobrancelhas espessas emolduravam olhos
enormes, intensos, de grandes cílios negros; o nariz, maior do que o exigido
pelos padrões ocidentais de beleza, combinava à perfeição com o resto
do rosto; a boca era larga, carnuda e sensual.
O choque daquela beleza cortou-lhe a respiração. Estavam muito próximos
um do outro. Na penumbra, ela ficou olhando-o nos olhos, como uma serpente
hipnotizando o passarinho. Só alguns segundos, e Bernardo estava rendido.
-- Quer me mostrar as outras fotos? -- sugeriu ela.
Meio tonto, ele alinhou à sua frente as outras ampliações. Ela olhou uma
por uma, fez algumas sugestões delicadas. Por fim, afastou as fotos e
disse:
-- Estou precisando de um cigarro.
-- Eu tenho um aqui - disse Bernardo, apressando-se em pescar o maço dentro
da jaqueta.
-- Não, não posso fumar - ela disse - Só quero ir lá fora para ver se
tomo um café. Café faz a vontade passar. Não é esquisito?
E deixou a sala. Bernardo apressou-se em terminar as ampliações, com medo
de que ela fosse embora. Quando saiu, entretanto, a moça estava ainda
no laboratório, sentada em um banco alto, com um copo de café nas mãos.
Bernardo respirou fundo. Tentou sorrir. Gaguejou. Não conseguia desviar
os olhos dela - ou melhor, de uma determinada parte do seu corpo.
-- Estou de quatro meses. Já está aparecendo, né? - comentou Renata, passando
a mão pela barriga. - E o pior é que eu quero sorvete o dia todo.
-- Você tem namorada? - perguntou ela, uma hora depois, na sorveteria.
-- Tenho - respondeu Bernardo, avermelhando.
-- Que pena - disse ela, enfiando a colher no sorvete. - Uma pena mesmo.
Bernardo conseguiu coragem para replicar:
-- Mas você, em compensação, é casada.
-- É verdade - disse Renata, suspirando. - O mundo não é justo.
Nas semanas seguintes, a relação dos dois não avançou muito. Os encontros
eram quase diários -- mas só para conversar.
Para ver Renata, Bernardo se torcia em dois, três, quatro. Esgotava a
imaginação inventando desculpas, cada vez menos convincentes, para a chefia
e a namorada (que, àquela altura, ainda não eram a mesma pessoa).
Renata dera o primeiro passo; mas, dos dois, ele era o mais afoito. Queria
que ela fosse morar com ele. Que largasse o marido. Que o seguisse até
o fim do mundo. A moça ria:
-- Você é maluco mesmo...
A ousadia de Renata era só verbal. Dizia coisas deliciosas, olhando nos
seus olhos. Provocações baratas. Ligava a qualquer hora do dia e da noite,
propondo escapadas imaginárias. Mas estabeleceu um limite, logo nos primeiros
dias:
-- Vai ser platônico, entende? Platônico. Mesmo porque - e apontou a barriga
- nem dá pra ser diferente...
A gravidez era o muro atrás do qual se escondia. Também tinha pavor de
ser reconhecida - e com alguma razão, porque era figurinha fácil nas colunas
sociais. Aparecia em festas, coquetéis, estréias. Sempre ao lado do marido.
Sem conhecer o homem, Bernardo começou a odiá-lo. Não era páreo para ele.
O desgraçado era muito mais bonito. Culto. Viajado. E rico, além de tudo
- podre de rico. A editora era só uma de suas empresas. Vinha de uma família
tradicional.
-- Se você visse a minha sogra! - dizia Renata, revirando os olhos. -
Morre de medo que eu volte a trabalhar. Vem em casa e fica fazendo uns
discursos horrorosos: que o lugar da mulher é ao lado do marido, que os
filhos, que o lar, e não sei mais o quê. Me dá vontade de fugir com o
circo.
O casamento fora um erro.
-- Ele é um hipócrita, Bernardo. Um mentiroso. Quando a gente namorava,
achava lindo eu trabalhar. Dizia até que gostava de mulheres independentes,
sabe? Deu em cima até eu ceder. Hoje eu sei que o Diogo nunca gostou de
mim. Eu alisava a vaidade dele, é isso. Ele me usou para aparecer.
Um ano depois do casamento, já a proibira de trabalhar.
-- Veio com umas conversinhas: que sentia minha falta, que eu precisava
ficar mais em casa, para vigiar os empregados... Comecei a ir para o estúdio
só de tarde, perdi um monte de clientes. Depois tive dificuldade pra engravidar,
mas o médico dizia que estava tudo normal com a gente. Ele então botou
a culpa no meu trabalho. Queria que eu largasse tudo.
-- Mas por que você não reagiu?
-- Ah, sei lá, Bernardo. Você não sabe o que é uma pessoa buzinando no
seu ouvido, o dia inteiro... Acabei cedendo pelo cansaço, sabe?
Bernardo não era ingênuo. Bernardo não queria acreditar. Percebia que
Renata estava mentindo; ou, no mínimo, dramatizando a realidade. Ela não
se encaixava no papel de vítima.
Dois anos mais velha que Bernardo, Renata era filha de um comerciante
falido da 25 de Março. Cavou a duras penas o caminho para as passarelas.
Achavam-na "exótica" demais para desfilar. Ela provou o contrário. Fez
sucesso como manequim. Ganhou muito dinheiro sem mãe, empresário ou namorado
a tiracolo. Caiu em todas as armadilhas da profissão, e levantou-se sozinha.
Passou um período de namoro com as drogas; depois, aprendeu a usá-las
conforme lhe convinha. Desviava qualquer cantada indesejável, com mais
ou menos diplomacia, conforme o caso. No auge do sucesso, entediada com
a profissão, construiu uma segunda carreira para si.
E era aquela mulher que vinha bancar a esposinha desamparada para Bernardo?
Não colava. A história toda era muito suspeita. E quanto àquela conversa
de "platônico"...
-- Vamos pegar um cinema? - propôs ele, de repente, no meio de uma tarde
calorenta.
Eram três da tarde, e, àquela hora, ele devia estar fotografando uma greve.
No cinema, em meio aos beijos, as suas mãos viajaram por todas as direções
no corpo de Renata, sem que ela conseguisse, ou sequer tentasse, resistir.
Platônico? Pois sim. Num toque final de perversidade, acariciou-lhe demoradamente
a barriga -- que ficava cada vez maior.
Nenhum dos dois, ao sair da sessão, tinha a mais remota idéia do que acontecera
na tela.
Os amigos de Bernardo achavam que ele havia enlouquecido.
-- Uma mulher grávida? Porra, mas o que é que você tem na cabeça? Não,
não responde, bicho. Não responde.
-- Ele é louco.
-- Pervertido.
-- Tarado.
Uma amiga indignada deu a sentença definitiva:
-- É medo do compromisso com a Tânia, Bernardo. Por isso você arranjou
essa mulher. Casada, grávida... Não vai dar em nada. Enquanto isso você
enrola a Taninha. Tremenda sacanagem. Depois de dois anos de namoro!
-- Não, calma, Célia, não é bem assim...
-- Puxa, cara, você pirou. Essa mulher está grávida de outro homem! É
tão difícil assim entrar na sua cabeça?
-- Tá bom, mas eu gosto dela.
-- Escuta, Bernardo: como é a tua relação com a tua mãe?
A roda em torno da mesa gargalhava. Bernardo confuso, tentava se explicar.
Alguém pedia outra cerveja.
Talvez fosse mesmo tara, complexo de Édipo mal-resolvido. Mas o fato é
que Bernardo não pensava em outra coisa. Desejava aquela mulher, desejava
fisicamente, estava maluco por ela.
Chegou a ler textos de psicologia sobre o assunto. O homem - diziam os
textos - sente dificuldade em relacionar-se sexualmente com mulheres grávidas.
Pode ser um tabu intransponível. A imagem da mulher, prestes a ser mãe,
se torna sagrada. Intocável. Alguns casais têm problemas sérios por causa
disso.
Bernardo lia, e se perguntava o que havia errado com ele. Nunca sentira
nada de particular em relação a mulheres grávidas: eram apenas mulheres
grávidas, pronto. Um fenômeno biológico. Ficavam grávidas, esperavam nove
meses e punham um filho no mundo. Nada havia de anormal, sagrado ou intocável
naquilo. Quanto a ele, Bernardo, desejava Renata, com barriga ou sem barriga.
Não pensava em outra coisa. Naquele andar, ela ia deixá-lo louco.
Conseguiu arrastá-la para o cinema mais algumas vezes. Ela ia, relutante,
mas tentando cooperar com a ficção que ele armava:
-- É, ouvi dizer que esse diretor é ótimo...
Saíam do cinema ofegantes, suados, quase ressentidos um com o outro. O
contrato "platônico" parecia cada vez mais absurdo. Um dia, foram surpreendidos
por um lanterninha que os botou pra fora, quase tolerante:
-- Aqui não é lugar pra essas coisas, pessoal.
Na saída - Renata envergonhadíssima, quase em lágrimas - Bernardo perdeu
a paciência:
-- Renata, pelo amor de Deus, isso é um absurdo. Vamos resolver essa situação.
-- Resolver como?
-- Como é que você acha que a gente resolve?
Começaram uma longa briga. Ela argumentava que não podia nem pensar na
idéia, que morreria de culpa. Como ele podia sequer considerar a hipótese?
com ela naquele estado...
Bernardo perdeu a paciência, e disse que "aquele estado" não a impedira
de seduzi-lo. Que estava farto de ser manipulado. Que a barriga de seis
meses não a tornava menos egoísta.
Ela então pegou um táxi e foi embora, soluçando.
Três dias depois, ligou para dizer que seu marido tinha descoberto tudo.
Tudo o quê? perguntou Bernardo, desesperado (já se arrependera da briga).
Tudo. Tinha ouvido um telefonema. Estava furioso. Bernardo não devia mais
procurá-la.
-- Renata, meu amor, escuta... - Mas ela já tinha desligado o telefone.
Nas próximas vezes em que ligou, foi atendido por uma mulher de voz gélida,
que informava que Dona Renata fora passear. Dona Renata fora ao restaurante.
Dona Renata fora ao estúdio (estúdio? mas não tinha parado de trabalhar?)
Dona Renata, definitivamente, não estava para ele. Bernardo passou quinze
dias desesperado.
Depois, de repente, sentiu-se melhor. Resolveu ir morar com Tânia.
O pai de Tânia era jornalista, e ela praticamente crescera dentro de uma
redação. Trabalhava desde os dezessete anos, em período integral. Os dois
fizeram a mudança dela para o apartamento de Bernardo num escasso dia
de folga; no dia seguinte, já estavam trabalhando de novo. Passada a "fase
Renata", Bernardo voltara a se comportar como um bom funcionário. Era
uma estrela em ascenção dentro do jornal. Tânia estava orgulhosa dele:
-- Acho que vão acabar te dando uma chefia.
-- Deus me livre!
Não gostava do jornal, onde tinha hora para entrar, e nunca para sair.
Fazia bem o seu trabalho, mas o jornalismo não lhe estimulava a imaginação.
Seus frilas de moda e publicidade estavam aumentando. Se tudo desse certo,
logo poderia sair do emprego, e trabalhar por conta própria.
Os melhores momentos de Bernardo eram na rua, batendo papo com os repórteres,
tomando uma cervejinha nos ocasionais intervalos. Num dia cinzento de
agosto, quando estava indo para a coletiva de um dos candidatos, levou
um susto. O repórter que estava com ele cutucou-o, de repente:
-- Pô, Bernardo, olha só que mulherão!
Ele olhou na direção indicada. Lá em cima, num outdoor imenso, Renata
sorria, radiante. Era uma propaganda de fraldas descartáveis.
Bernardo passou o resto do dia muito infeliz.
Até que um dia, dois meses depois da briga, o telefone tocou. Era Renata.
Estava com saudades - disse, carinhosa. Por acaso, dera uma olhada na
página de Política do jornal e vira o nome de Bernardo no crédito de uma
foto... "É assim mesmo que se escreve seu sobrenome? Com agá? Eu conheci
um Levinsohn, mas sem agá. Riquíssimo. Vivia querendo que eu fosse passear
no iate dele. A sua família também é rica?"
-- Não. - disse Bernardo. Sentiu que a voz saía desafinada.
-- Estou com tantas saudades. Por que você sumiu?
Que cínica! pensou ele, tentando se indignar. Que cara-de-pau! Como ela
podia!
-- Quem é, amor? - perguntou Tânia, de dentro do quarto.
-- É minha irmã - respondeu ele, dizendo a primeira coisa que lhe veio
à cabeça.
-- De Londres?
-- É.
-- Ah, que bom - e ela continuou assistindo televisão.
-- Você está com alguém aí no apartamento? - perguntou Renata.
-- Estou - respondeu ele, vingativamente. - Com a minha namorada. Ela
agora está morando aqui. - ("Morando aqui..." Não, não era isso que deveria
ter dito. O certo seria "morando comigo".)
A outra estava em silêncio.
-- Renata?
-- E eu que pensei que você gostasse de mim - disse ela, com voz langorosa.
-- Mas como é cínica! Foi você que sumiu. Me tratou como se eu fosse a
peste bubônica. Inventou uma história pra não falar mais comigo. Botou
aquela empregadinha sua para atender o telefone...
-- Ah, então foi isso! Eu sempre desconfiei que essa governanta estava
combinada com o meu marido.
Bernardo ficou mudo, pasmo com tamanha cara-de-pau. Renata continuou:
-- Eu preciso falar com você, Bernardo. Preciso de um amigo. Você não
sabe o que eu estou passando. O Diogo tornou minha vida insuportável.
Depois que ouviu aquele telefonema, não me deixa botar o pé fora de casa...
-- Ah, é? E aquele outdoor de fralda que você fez?
Ela não se perturbou:
-- A agência é de um amigo dele.
-- Renata, chega. Eu não acredito em você.
-- Bernardo, eu quase morri de saudades. Queria tanto te ver...
Pensou em dizer um monte de coisas. Que não acreditava em nenhuma das
suas histórias. Que não era trouxa. Que estava cansado de bancar o sagui
de estimação. Em vez disso, embarcou numa conversa íntima, dúbia, em voz
muito baixa. Em alguns minutos, estava implorando pelo tal encontro.
Foi a vez dela bancar a difícil:
-- Não liga para a minha casa, que eu desconfio que o telefone está grampeado.
Eu ligo pro teu apartamento.
Agora, quase uma semana depois, a ansiosa expectativa de Bernardo terminara.
Estava, outra vez, com a mais bela criatura do mundo.
E também mais barriguda.
-- Eu sei que pareço uma baleia - disse ela, resignadamente, cruzando
as mãos sob o ventre. - Mas que se pode fazer?
-- Você está linda - disse ele, extasiado - Queria tirar um monte de fotos
tuas.
-- Imagine - protestou ela - a essa altura estou tão inchada, que nem
pra propaganda de fralda sirvo mais. Foto minha? Só passando pelo meu
cadáver...
Ele a interrompeu com um beijo. Ficou beijando-a durante vários minutos,
sob o olhar escandalizado dos yuppies.
-- Ai, Bernardo... - suspirou ela, quando ele finalmente a largou.
-- Renata, tem um cinema aqui.
-- O quê?
-- Eu disse: tem um cinema nesse shopping.
Bem que ela tentou resistir. Minutos depois, entretanto, estavam em frente
aos cinemas. Ela sugeriu "Caçadores da Arca Perdida".
-- Nem pensar - disse ele, firme. - Deve estar lotado. - Sentia crescer
dentro de si um ímpeto, uma decisão. Dessa vez, Renata não ia fazê-lo
de bobo. Quem era o homem ali, afinal? Não sossegou até achar um autêntico
fracasso de bilheteria; então, empurrou-a para dentro da sala.
Quinze minutos no escuro, e a situação já tinha ficado séria.
-- Não, Bernardo. Não aqui. Não. - Ela suspirava, gemia.
-- Quietinha - sussurrou ele em seu ouvido.
-- Vão pegar a gente de novo.
-- Pode ser. É por isso que a gente vai para um motel.
-- Bernardo!
-- Renata - disse ele, afastando-se - se você não for para um motel comigo,
nunca mais vai me ver. Chega. Cansei. Nenhum de nós dois é adolescente,
pra ficar duas vezes por semana se esfregando no escuro. Quer que eu seja
mais claro? Pois bem: se você não der pra mim hoje, eu sumo da sua vida.
Nunca mais te procuro. Se me telefonar, eu bato o telefone na tua cara.
Se for me procurar, bato a porta. Entendeu?
-- Bernardo, eu até entendo a tua situação, mas não é assim. Isso tem
que ser pensado. Não é a hora, não é o momento...
-- Eu disse: hoje. Hoje, sábado, 27 de agosto de 1982. Estou sendo claro?
-- Mas no meu estado...
-- O médico te proibiu de trepar?
-- Bernardo!
-- Não mente, Renata. Pára de bancar a ovelhinha desamparada. Proibiu
ou não proibiu?
-- Não.
-- Então, vamos.
-- Mas isso é um absurdo!
-- Absurdo ou não, é assim que vai ser.
Houve um longo silêncio. Na tela, dois atores dialogavam em sueco - um
diálogo com longas pausas. Bernardo ficou esperando a reação dela, com
as mãos úmidas de um jogador de pôquer que fez o blefe da sua vida. Finalmente,
Renata sussurrou:
-- Você quer mesmo fazer amor comigo? De verdade?
-- Quero.
-- Meu marido não quer faz seis meses.
-- Ótimo. Perfeito. - disse Bernardo. Levantou-se da cadeira e começou
a rebocá-la em direção à entrada.
O atendente do motel arregalou uns olhos enormes, mas nenhum dos dois
se importou. No quarto, ela pediu que Bernardo apagasse as luzes. Ele
recusou-se:
-- De jeito nenhum.
Já nu, esperou, sentado na cama, que ela se despisse para ele. Estava
excitado, mas tranquilo e vitorioso. Acariciou, mais uma vez, a sua barriga.
-- Bernardo... - disse ela, de olhos fechados, tentando protestar. Mas
a voz tremia de desejo.
-- É tão bonito - disse ele, enlevado. Deitou-se ao seu lado e ficou olhando,
durante vários minutos, a barriga distendida, branca e redonda como uma
montanha. A mais linda montanha que já vira. Escalou-a com uma das mãos,
acariciou seu cume. Depois, fez o dedo indicador descer lentamente aquele
relevo, seguindo o caminho da linha escura, que saía do umbigo e terminava
lá embaixo, no sopé.
Uma hora depois, eles estavam no escuro, quietos e tranquilos. Foi Renata
que, finalmente, quebrou o silêncio:
-- Parece até que a gente goza mais forte - disse, de repente.
-- Mesmo? Foi isso que você sentiu?
-- Foi.
-- Viu o que você estava perdendo, sua burrinha?
-- É mesmo - disse ela, preguiçosamente. - Bernardo, foi tão bom, tão
bom... Faz séculos que aquele animal do meu marido não encosta um dedo
em mim, sabia?
-- Que horror. Que asno.
-- Eu bem queria ir pra cama com você, mas sabe de uma coisa? Ficava morrendo
de vergonha.
-- Renata...
-- Hum.
-- Você acha que... bom, depois que o bebê nascer, é claro...
-- Sei.
-- Você acha que dá pra se separar do seu marido?
Houve um silêncio.
-- Acha?
-- Não sei - disse ela, embaraçada. - Calma, Bernardo. Deixa eu me acostumar
com a situação.
-- Tá bom - concordou ele -- Voltava a ser o Bernardo de antes, cordato
e bonzinho.
-- Você também não tem muita moral pra falar. Não está morando com a tal
de Tânia?
-- É. Estou.
Na despedida, foi ela quem se pendurou no seu pescoço, e perguntou quando
o veria de novo. Bernardo refletiu:
-- Quarta. Na quarta-feira eu tenho uma folga.
-- Então na quarta, à tarde - disse ela. E, sem piscar: -- Pra facilitar
as coisas, a gente já se encontra no motel. Pode ser esse aqui mesmo.
-- Não, eu nunca concordei com o voto nulo. Falando francamente: mesmo
na ditadura, a gente deve votar. Eu votava no candidato da oposição.
-- Pois eu não votava em candidato nenhum - atalhou o taxista que levava
Helinho e Bernardo, naquela segunda-feira. - Pegava a cédula e escrevia
qualquer besteira. Em 78 escrevi "Amor de Mãe". Me lembro até hoje.
-- Mas por quê? - perguntou Helinho.
-- Ah, só de sacanagem. Esses políticos são tudo escroto. Agora dizem
que não é pra votar no Maluf, que o Maluf é ladrão. Mas ladrão é tudo
eles, doutor. Todo mundo rouba. O senhor quer que eu seja franco? Até
eu, se estivesse lá em cima, também roubava.
-- E você, Bernardo? - perguntou Helinho - Vai votar no PT, que nem a
Tânia?
-- Ahn? - perguntou o fotógrafo. Olhou para o outro, sem entender do que
estava falando. Havia sido, obviamente, arrancado de profundos devaneios.
Helinho sorriu:
-- Que política que nada! O senhor está vendo só? A gente aqui discutindo
eleição, e esse cara só pensa em mulher.
-- Faz muito bem - aprovou o motorista, mastigando um palito.
-- Acorda pra vida, Bernardo. Fala com a gente. E aí? Como vai o conflito
árabe-israelense?
-- Eu venci, cara. Venci completamente. Tomei posse das colinas do Golan,
sacou?
-- Já saquei. Desde ontem que você não fala em outra coisa.
-- Eu estou apaixonado, seu cretino.
-- Sei. Muito legal. Muito bacana. Agora, me diz uma coisa: e a Taninha,
nessa história toda? Olha, eu não quero bancar o moralista, não gosto
de me meter na vida dos outros, mas a Tânia também é minha amiga. Você
não acha melhor contar pra ela? Ela vai sofrer, mas é melhor assim. Imagina
se essa história se espalha, e alguém vai buzinar pra coitada... Quanto
mais depressa você contar, menos ela sofre.
-- Eu sei - disse Bernardo com um ar decidido, endireitando-se no assento.
- Já pensei nisso. Vou contar tudo.
-- Quando?
-- Esse que é o problema - disse o fotógrafo. - Do jeito que as coisas
estão, a gente nunca se vê. Ontem fiquei ampliando uns contatos até meia-noite,
e quando voltei, a Tânia já estava dormindo. Hoje de manhã ela até disse
que precisava conversar comigo, mas também não vai dar. Vou ficar até
terça-feira trabalhando de noite, cobrindo esses malditos debates da TV.
Bom, quem sabe na quarta. Quarta eu tenho folga.
Na quarta-feira à tarde, o atendente do motel viu um táxi parar na porta,
e de lá descer uma mulher que ele já conhecia. Estava sozinha, acompanhada
apenas da sua imensa barriga. Mais uma vez, o atendente arregalou os olhos.
-- O senhor quer me fazer um favor? - disse a mulher, depois de alugar
o quarto. - Estou esperando um rapaz que vem num Gol azul. Em uma hora
ele deve estar aqui. Quando ele chegar, o senhor avisa que eu estou na
suíte.
-- Claro - balbuciou o rapaz. Tinha sido treinado para ficar impassível
em qualquer situação, mas estava difícil. A mulher começou a andar em
direção à suíte. De repente, voltou-se.
-- Ah, mais uma coisa.
-- Pois não?
-- O senhor manda servir um martíni pra mim?
No seu apartamento, Bernardo já estava pronto para sair. Acordara tarde
e tomara um demorado café da manhã. Depois, lera todo o jornal, até os
anúncios classificados, tentando iludir a sua impaciência. Não conseguira
nem almoçar.
Estava pegando as chaves do carro, quando ouviu a porta bater.
-- Tânia? - perguntou. A voz dela veio do hall:
-- Sou eu, amor.
Entrou na sala e deixou-se cair numa das cadeiras. Parecia um pouco pálida.
-- Ué, saiu mais cedo do jornal? - perguntou ele, surpreendido. Começou
imediatamente a arquitetar uma história que lhe permitisse sair correndo.
-- Saí - disse Tânia - Eu não estava passando bem.
-- O que é que você tem? - perguntou ele, franzindo a testa. Começava
a ficar preocupado.
Em vez de responder, ela o olhou firme:
-- Senta um pouco aí, Bernardo. A gente precisa conversar.
-- Amor, não sei se é uma boa hora...
-- Bernardo, semana passada, teve um dia que eu saí mais cedo do jornal...
Lembra? Pois é. Nesse dia, eu fui ao médico.
-- Pra quê?
-- É isso que eu quero te contar.
-- Então conta - disse ele.
-- Bernardo, não foi de propósito. Foi um acidente. Mas eu já tomei minha
decisão.
Uma luz começou a clarear, vagarosamente, a cabeça do fotógrafo. Ele deixou
cair as chaves no chão.
-- Eu estou com trinta anos, amor. Não quero ficar esperando o resto da
vida. Você faz o que quiser, mas eu vou assumir esse filho.
No motel, a hóspede da suíte olhou mais uma vez para o relógio. Uma hora
de atraso, não era possível! O que teria acontecido com Bernardo? Acidente?
Doença? Uma convocação de emergência no jornal?
Seja como fosse - pensou ela, confiante, bebericando o terceiro martíni
- ele ia aparecer. Mais cedo ou mais tarde. Não lhe daria o cano, com
certeza! Ajeitando a barriga, Renata recostou-se nos travesseiros, e continuou
a esperar.
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