- O meu problema - disse ela, com ar ressentido - é
a bunda.
- A bunda, Maria Letícia?
- A bunda. Essa bunda enorme, horrorosa!
Estávamos a sós, depois do almoço - meu marido levara
as crianças para tomar sorvete. Maria Letícia tinha recusado
a sobremesa e eu estava me levantando da mesa para fazer café.
Voltei a sentar, confusa:
- Mas você não tem a bunda tão grande.
- Agora - disse ela, suspirando - Depois de anos de regime. E ginástica
também - localizada. Você não calcula o que já
me matei pra acabar com essa... essa... padaria!
Padaria. Para a maior parte das pessoas, este é só um estabelecimento
comercial onde se compra pão e ocasionalmente se toma cafezinho.
Mas quando uma mulher diz "padaria" nesse tom de ódio,
é porque está preparando uma diatribe contra certa parte
da anatomia humana. A raiva pode ser direcionada à retaguarda de
uma inimiga. Mas normalmente atinge a própria... padaria.
- Mas Maria Letícia...
- Você viu que recusei o bife à parmegiana?
- Pensei que você não gostasse...
- Adoro filé à parmegiana - explodiu ela - Adoro! Mas se
comer tudo que tenho vontade, fico parecendo uma elefanta bunduda! - e
escondeu o rosto nas mãos, angustiada.
Pra falar a verdade, nunca fiz parte do fã-clube da Maria Letícia
- ex-colega de faculdade do meu marido. Ela é seca demais. Impositiva,
quase autoritária. Mas naquele momento fiquei com pena.
- Ora, que é isso, menina...
- Bastou engordar um pouco, um pouquinho que seja, e vai tudo pra bunda!
Tudo!
Francamente não sabia o que dizer. Fiquei brincando com o garfo.
- Preferia ser como você, que só engorda na barriga.
Eu estava com tanta pena que ignorei o insulto.
- Olha, meu bem. Isso tudo é bobagem. Essa neurose de regime, de
magreza... Não é legal.
- Você não entende.
- Inclusive, não sei se você já percebeu. Homem brasileiro
adora bunda grande. Eles não gostam dessas modelos magricelas,
viu? Conheço um monte de homens interessantes que preferem mulheres
mais cheinhas. Sabe o que eles dizem? "Quem gosta de osso é
cachorro".
- Você não entende - gemeu ela.
- Posso até te apresentar...
- Não é por causa dos homens. Eles que se lixem! A gente
não pode viver em função dos homens.
- De fato, mas...
- É por minha causa! - exclamou ela, no auge da angústia,
torcendo as mãos - Sou eu quem não suporta aquele bundão!
É horrível!
- Que exagero, Maria Letícia!
- Você não tem bunda, não sabe o que é isso.
Outro insulto. Dessa vez fiquei mordida. Para disfarçar, levantei
da mesa e fui esquentar a água para o café. Mas ela continuou,
ignorando minha retirada:
- Me viro de costas e olho atrás, no espelho... e aí vejo
aquela coisa enorme, espremida na calça jeans... Pareço
uma coitada, uma desleixada, uma infeliz que não sabe nem controlar
a própria bunda! Você sabe que dou aula na faculdade. Sou
muito rígida, não dou folga pros alunos, porque essa molecada
de hoje é fogo. Agora imagine só: com todo esse esforço,
na hora em que viro de costas para escrever na lousa, eles perdem o respeito.
É inevitável. Como vão respeitar uma professora de
bunda grande?
- Você podia usar saia - arrisquei, colocando o coador na cafeteira.
- De saia é pior. Você sai com um homem, com a saia realçando
aquela... coisa enorme... e sabe o que ele pensa? Vou te dizer o que ele
pensa. Que você é uma mulher fácil, que aceita qualquer
cantada barata, que só pensa em sexo. Por que com uma bunda dessas,
qualquer mulher parece piranha!
Houve um longo silêncio. Acabei de fazer o café. Maria Letícia
se recompunha. Quando voltei para a mesa com as xícaras ela disse,
muito determinada:
- É por isso que eu faço regime! Vou fazer a vida toda!
Passo fome, passo vontade, mas não fico com o quadril grande. E
funciona, viu? Pena que as minhas pernas sejam finas demais; quando emagreço,
parecem palitos. O peito, então, desaparece.... Mas paciência.
O importante é que a bunda também vai embora. Hoje em dia,
mal se nota. Não é verdade?
- É mesmo - concordei.
- Com uma calça de cintura baixa então, ela praticamente
desaparece. É uma beleza, adoro essas calças. Meu guarda-roupa
está cheio delas. Olha só essa que estou usando - levantou,
deu uma voltinha - Aparece muito o quadril?
- Que nada - disse eu, bebericando o café.
- Também já fiz duas lipoaspirações. Funciona,
mas menos do que eu esperava...
Nesse momento meu marido voltou da rua, com a caçula chorando porque
não encontraram sorvete de morango.
À noite fomos ao cinema com meu irmão
e minha cunhada. Fabrício perguntou porque não tínhamos
ido ao almoço na casa da mamãe.
- Não deu - expliquei. - A Maria Letícia apareceu e tivemos
que almoçar com ela.
- Maria Letícia? - perguntou meu irmão, com um sorriso safado
- Aquela que tem um bundão?
A mulher lhe deu uma cotovelada.
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