Muito mais do que um problema social...
AQUELES GURIS

Primeiro eles apareceram no Mercado. Roubavam uma coisa aqui, outra ali, batiam carteira, levavam a bolsa das mulheres.
Segurança? Claro que tinha segurança na porta. Mas esses guris, quando você via já estavam lá dentro. Ninguém entendia como entravam. Aí os donos das barracas me procuraram e pediram: dá um susto, pra eles sumirem daqui.
Pensei que fosse moleza, grana fácil, mas que nada.
Da primeira vez fui só eu e o Marcão, um chegado meu lá da Brigada. Não demos conta do recado. Os moleques pareciam feitos de sabonete, escapavam da gente. Tu pegavas um deles pela camiseta e ele escorregava. Eu e o Marcão ficamos correndo feito otários no meio das barracas e não conseguimos agarrar nenhum.
Da segunda vez não facilitei, voltei com mais dois caras. O Valdenor - um grandão meio desengonçado de Passo Fundo - e outro que depois sumiu. Mecha branca no cabelo, cara brava... Isso, o senhor lembra dele? O Lulu. Não sei o nome, mas o apelido era Lulu… Um que era casado com uma dona gostosa pra cacete. Depois a dona sumiu. Passou uns tempos, sumiu também o Lulu.
Nesse dia a gente cercou os guris e demos uma surra de criar bicho. Depois juntamos todos - eram cinco - e avisamos: não apareçam mais aqui, senão vão acordar com a boca cheia de formiga.
Eles não diziam nada. Moleques esquisitos: sararás de canela fina, com olhos verde-amarelados  de gato, pele lisa  e igual... Eram muito parecidos. Você via um, via todos. Vai ver eram irmãos, ou primos.
Um deles eu até diferencei, porque o filho-da-puta me deu um pontapé na canela. E se tem coisa que me põe fora de mim é chute na canela. No futebol até perdôo porrada no saco. Na canela, nunca. O guri me acertou, virei bicho: quebrei os dentes dele. A gente tem que se dar ao respeito.
Na próxima vez que cruzei com eles, tinham dentes perfeitos.

Quando me contaram a história, já sabia que eram eles. Estavam atacando num bairro de periferia. Faziam pequenos assaltos, ameaçavam o pessoal com estilete. 'Tava todo mundo puto.  Os donos das lojas sebentas, dos açougues duvidosos, dos armazéns vagabundos do pedaço. Pediram pra eu dar um fim nos moleques.
Fui falar com o traficante do pedaço, um tal de Valdir, e ele autorizou: é melhor mesmo, compadre (chamava todo mundo de compadre), esses guris ainda vão chamar polícia na minha área. Vai com fé e faz logo o serviço completo.
Cercamos os moleques um a um, na rua principal do bairro. Enfiamos os cinco no camburão e fomos embora com o pneu cantando e sirena aberta, que era pra ninguém se meter a engraçadinho. Nem mesmo, se fosse o caso, os parentes dos meninos.
Não apareceu parente nenhum, fizemos o serviço na maior tranqüilidade. Um ou dois tiros na cabeça, enquanto olhavam pra gente com aqueles olhos de gato vagabundo. Atiro sempre na cabeça, pra não ter surpresa e também pro cristão não sofrer, porque não gosto de judiar de ninguém.
É, não gosto. Tem cara que é doente, adora essas coisas. Eu não. Pra mim é um serviço como outro qualquer. Alguém tem de fazer, né? porque essa gentinha é que nem mato, não dá em nada que preste. Se tu tens um jardim e começa a nascer mato, o negócio é arrancar logo, antes que prejudique a roseira, as folhagens... Tens que arrancar enquanto é brotinho.
Deixamos os corpos num terreno baldio. Tudo nos conformes. Ninguém conhecia os moleques, nem saiu no jornal, e a gente limpou a área. Ganhei uma boa grana com esse serviço, inclusive dei a entrada na casa onde moro.
Passou um tempo, os moleques apareceram num shopping.

Tu vais dizer que é mentira, história da carochinha. Claro que não vieram me dizer: olha, Sinvaldo, vai lá no shopping porque aqueles guris que tu mataste estão enchendo o saco de novo. Só disseram que tinha um grupinho infernizando a vida dos comerciantes. A mesma história do Mercado: ninguém entendia como  apareciam. Quando você via, já estavam dentro. E pegava mal, a freguesia era fina. Já imaginou aquelas senhoras entrando no shopping sossegadas, e vem um moleque arrancar a bolsa delas?
Quando me contaram essa história, senti um frio na espinha: ai ai ai... Na hora soube que eram aqueles moleques de novo. Os mesmos que a gente tinha apagado na Restinga.
Comentei com o Marcão e ele deu risada: agora acreditas em alma do outro mundo? Mas percebi que estava nervoso. Suava e mexia sem parar no 45, até que perdi a paciência e dei um berro:  se continuas a mexer nessa porcaria, vais acabar disparando!
Fomos ao shopping num dia de semana e ficamos circulando. Logo  vi um deles com o nariz sujo colado na vitrine, olhando os tênis; não sei o que esses guris têm com tênis. Fui me aproximando devagarzinho e de repente ele se virou: os mesmos olhos gateados, o cabelo sarará, a pele escorregadia...
Já enfrentei bandido perigoso, gente de dedo mole no gatilho. Mas nunca senti tanto medo como daquele guri miúdo, desarmado, que me olhava com os olhos esverdeados e cara de gozação. Não tenho vergonha de contar: minhas pernas ficaram moles, meu coração disparou. Eu tinha arrebentado a cabeça dele com dois tiros. Como é que o filho-da-puta voltara?
Não fraquejei. Peguei ele pelo braço e fui andando sem chamar a atenção, com a mão no ombro do guri, como se fosse um tio dele. Seguiu sem resistir até a saída e o camburão.
Eu viera prevenido - cinco caras, além do Marcão, todos bem armados, prontos pra qualquer parada. Quando viram o tamanho do guri, riram de mim. Eu mandei fechar a matraca e avisei que tinha de ficar muito bem guardado, com alguém de olho nele o tempo todo.

Fomos catando os guris, um por um. O Marcão estava esquisito, com uma espécie de tique, fechando e abrindo a boca sem parar. Uma hora em que paramos prum lanche eu disse, sem muita convicção:
- Pivete é tudo igual, já reparou? Um igualzinho o outro...
Ele não respondeu; abriu e fechou a boca. Eu sabia que o Marcão não era covarde, longe disso. Mas uma situação dessas bota qualquer um nervoso.
Finalmente acabamos de pegar eles. Os moleques não diziam nada, nem pareciam com medo.  Um deles até cantava baixinho um pagode.
- Dessa vez vou fazer o serviço completo - avisei, em voz bem alta, para ninguém em particular.
Fomos para um descampado lá pros lados de Gravataí. Trancamos o camburão por dentro. Abri o tanque de gasolina, joguei um fósforo lá dentro e saímos correndo antes da explosão. Entramos no meu carro e afundei o pé no acelerador.
Estava todo mundo nervoso. Por isso, imagino, só demos por falta do Marcão quando estávamos chegando à cidade. Tínhamos esquecido o Marcão no descampado!
Voltei à toda, com um pressentimento ruim. E não deu outra: quando viramos uma curva, avistamos, de um lado, o camburão parecendo um esqueleto de aço retorcido. Do outro lado, o Marcão deitado de costas, com dois tiros na cabeça. Os olhos bem abertos, olhando o vazio. A mão segurando o 45, que tinha todas as balas no tambor.

Nunca mais vi os caras daquela noite. Um deles, o Ângelo, me telefonou uma vez, dizendo que tinha pesadelos todas as noites. Que via os guris e o Marcão morto com os olhos abertos.
Chamei ele de cagão e bati o telefone na cara.
Não gosto dessas histórias. As coisas são o que são. Bandido é bandido, pivete é pivete. A morte é a morte: um tiro seco e bem dado, uma luz se apagando nos olhos do vivente.
Só a morte resolve tudo.
Se você começa a imaginar coisas - a fazer perguntas na frente de um camburão queimado e de um brigadiano morto - só Deus sabe onde vai parar. Os vagabundos estão aí, aumentando. Cada dia tem mais. Dão a impressão de brotar da terra, por mais que a gente arranque. 
O único remédio, eu acho, é continuar arrancando.
Por isso não me abalei quando, tempos depois, vieram me contar de uma gangue de guris que roubava os barcos atracados no Guaíba. Me disseram que eram cinco: morenos, olhos gateados, muito parecidos...
Eles tinham voltado.
O pessoal dos barcos só queria que eu desse um susto. Mas decidi matar os guris de novo, só pra ver quanto tempo me deixavam em paz.
Subi num mirante da curva do rio, com um rifle de mira telescópica. Com ele, podia mirar e acertar os moleques um por um. Bem de longe, sem ver os olhos deles, sem tocar sua pele viscosa.
Logo apareceu o primeiro. Descalço, maltrapilho, mirradinho, se escondendo feito rato, pronto pra pular dentro do navio.
Olhei o guri pela mira. E foi então que me dei conta de uma coisa: eu estava atrás deles há dez anos.
Dez anos. Minha mulher fugira com outro, meu pai tinha morrido, eu dera baixa na polícia, criara barriga, tinha um monte de cabelo branco. E aqueles moleques continuavam moleques.
Baixei a arma e desisti de vez. Não faço mais esse tipo de serviço. Pra apagar bandido criado, desafeto adulto, estamos aí. Moleque, guri, criança, nunca mais. Juro pela alma da minha mãe. Nunca mais.

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