Dezenove
anos. Vi a notícia ontem no jornal. Assalto, segundo a polícia.
Encontraram a menina baleada dentro do carro. O ladrão - diz a matéria
- fugiu com a bolsa, mas não teve tempo de levar o Vectra.
A violência nessa cidade está cada vez pior.
De volta ao trabalho. É meio-dia e estou na
porta do Colégio Bandeirantes, esperando outra Andréia.
Como sempre, comendo cachorro quente. Almoço? Esquece.
Andréia Pareto. Loira quase natural. Grife da cabeça aos
pés. Salto agulha, jeans apertado - esse tipo de menina não
adere aos jeans largadões -, blusa curta mostrando o umbiguinho
e o piercing de estimação. Dá pra ver que está
com pressa.
Antes de seguir essa Andréia, levantei sua ficha completa. O nome
é sempre a primeira coisa que me chama a atenção.
Depois vem a conta bancária - papai rico ou no mínimo bem
de vida é indispensável. E tem que ser loura. Se for morena
está fora de risco.
Deve também adorar shoppings, academias e barzinhos de Moema. Senão,
nem vale a pena se preocupar.
O último dado que me chamou a atenção foi a idade.
Todas elas têm dezenove anos.
Falando assim, parece que meu campo de investigação é
restrito. Que nada. No ano em que elas nasceram - 85 - a epidemia de Andréias
ainda estava no auge. Tem Andréia a dar com um pau. Não
faço outra coisa na vida senão seguir patricinha - ou andreinha
- por essa cidade. Mas o que fazer? Ninguém disse que salvar o
mundo era uma tarefa fácil...
Chequei essa Andréia aí. É burrinha. Repetiu o terceiro
colegial. Não faz PN na escola. Anda com seu Celta de cima pra
baixo a tarde inteira. Volta às quatro da matina pra casa. Se bobear,
repete de novo o mesmo ano.
Agora está olhando de um lado pro outro, procurando alguma coisa.
Leva as mãos cuidadosamente manicuradas ao cabelo. Sacode a cabeça.
Tira da bolsa o celular que está tocando. Cor-de-rosa com visor
azul...
- Mãe?
De onde estou, ouço direitinho a conversa. Também, ela fala
tão alto.
- Não. Ainda não saí daqui. (...) Não, não
vou pra casa agora. (...) Pra academia, mãe. (...) Ela ligou? Achou
o endereço da loja? (...) Ai, que pena. Mas você pode me
comprar um em Miami, não é? (...) Tá. Tá.
Não, eu almoço na academia mesmo. E dou uma passada no shopping,
porque estou completamente sem roupa. Depois
vou pro cabeleireiro. (...) À noite? No cursinho, ué! Pode
ser que volte mais tarde, tem aula extra... (...) Não. De verdade.
Vou mesmo. (...) Claro que dessa vez vou passar, mãe. Não
vou repetir! Já falei milhares de vezes. (...) Tá. Tchau.
Beijinho.
Recolhe a antena, bota o celular na bolsa, faz biquinho e se assopra com
ar de saco cheio.
Vai repetir o ano de novo. Isso é, se conseguir chegar até
o fim do ano....
Nem toda Andréia, é bom notar, é
burra. Nã-nã-ni-nã-não. Uma delas até
percebeu que eu a estava seguindo e veio me interrogar. Fingi que estava
a fim da garota. Não colou. Ela me ameaçou com a polícia.
Foi então que comecei a usar os disfarces, que se revelaram uma
ótima idéia. Hoje, por exemplo, botei uma peruca loira -
a menos ridícula que achei na loja. E estou vestido no estilo grunge:
camisa xadrez, jeans bem largo... Se bobear, passo por um colega da Andréia.
Ninguém vai prestar atenção em mim.
Sigo ela há quinze dias. Até agora, nada aconteceu. Mas
com certeza vai acontecer. Ela tem todo o perfil...
Passo por ela muito apressado e acabo esbarrando na menina.
- Ai! Não vê por onde anda?
- Desculpa, moça...
- Olha o que você fez na minha calça!
O jeans de griffe agora tem uma mancha de catchup, proveniente do meu
sanduíche. Gaguejo:
- Puxa, d-desculpa, não vi!
- Cretino! - diz ela, furiosa. Dou o fora o mais rápido possível
e volto para meu carro, de onde continuo a vigiá-la. Ela comenta
com a amiga ao lado:
- Pode uma coisa dessas?
Continua parada na porta do colégio... Ué, que aconteceu
com o Celta? Oficina?
Andréia está a pé.
Levantou um dedinho e parou um táxi. Entrou. Vou segui-la, lógico.
Hum... Táxi esquisito, esse. Há anos não via um carro
dessa cor. E depois... espera aí! Esse modelo saiu de linha há
mais de uma década! Como pode estar tão novinho e reluzente?
Aqui tem algo muito estranho...
Pronto. Lá se foi mais uma Andréia. Quer ver?
O táxi pára em frente à academia. Andréia
sai sacudindo as longas madeixas loiras. Bate com força a porta
do carro. Entra na academia.
Até agora, tudo normal. Mas continuo na porta, esperando.
Cinco minutos depois, outra Andréia sai do táxi.
Em meia hora aqui na porta, contei oito Andréias
saindo do táxi. Todas iguaizinhas ao original: roupa de griffe,
loiras oxigenadas, piercing no umbigo. Depois da oitava Andréia,
o táxi vai embora. Suponho que vá entregar mais uma batelada
em outra parte da cidade.
Claro que eu poderia segui-lo, mas o que adianta? O problema não
são os clones, é o original. E o original está lá
dentro.
Evidentemente já estou matriculado nessa academia, como aliás
em várias outras do mesmo tipo, espalhadas pela cidade. Lugares
grandes e bonitos, com vestiários em mármore, professores
sarados, aparelhos de última geração etc.
Entro e faço um balanço da situação.
Tem uma Andréia na esteira. Outra no aparelho para as coxas. Outra
fazendo abdominal. Outra batendo papo na lanchonete. Uma quinta na aula
de step, mais uma sexta no mountain bike...
As restantes devem estar no vestiário.
Claro que as pessoas estranham um pouco, olham duas vezes, mas... acabam
se acostumando. O que não falta no pedaço são garotas
loiras e malhadas, iguaizinhas umas às outras. Não chamam
a atenção. E é assim que as Andréias vão
dominar o mundo. Isso, é claro, se eu permitir...
Vou ao banheiro com minha malinha de disfarces. Quando saio de lá,
sou uma mulher de meia-idade, precisando urgente malhar pra perder uns
quilinhos. Mas antes preciso passar pelo vestiário.
Lotado! Hora de almoço é um dos momentos em que a academia
fica mais cheia. Perfeito! Me escondo na única cabine vazia, tomando
cuidado para que meus pés não apareçam...
Uma a uma, as Andréias vão entrando. Uma a uma, eu as elimino
com minha pistola com silenciador. Não tenho problema com os cadáveres:
todas eles desaparecem imediatamente. Só espero que ninguém
veja a fumacinha verde do lado de fora...
Assassino exatamente oito clones de Andréias. Mas o original não
aparece. Esse é o problema: depois que sofrem a transformação,
parece que elas ficam mais espertas...
Ainda consigo pegar a Andréia original, lá fora acenando
para um táxi.
Dessa vez é um carro comum, não uma nave
vinda de outra dimensão disfarçada de Opala. Andréia
vai ao shopping. Fico seguindo-a de loja em loja, ainda disfarçado
de dona-de-casa.
Que trabalhão! Consigo pegar três Andréias no provador.
Uma no banheiro. Mais outra numa cabine de fotos automáticas. E
a última eu acerto no escuro do cinema.
Mas todas elas viram fumacinha verde. Preciso continuar atrás da
"matriz" das Andréias. Que a essa hora, como já
sei bem, foi totalmente esvaziada do pouco cérebro que possuía.
Trata-se de um autômato, um ser sem vontade nem poder de decisão,
guiado por uma força extraterrena e alguns reflexos automáticos
que sobraram do seu antigo "eu".
Por exemplo: ir ao cabeleireiro.
Não é que os cabeleireiros não estranhem ver quatro
meninas exatamente iguais: uma secando o cabelo, outra tingindo, outra
se depilando, mais uma quarta fazendo as unhas. Eles acham esquisito,
sim. Mas não têm tempo de pensar no assunto. Hoje é
sexta-feira e o salão, apesar de caro, é muito concorrido.
Aqui não posso fazer nada. Não dá pra executar quatro
clientes na frente de todo mundo.
Ainda na caracterização da gorducha, fico sentada em frente
ao espelho, fingindo que escolho uma cor de tintura enquanto vigio as
Andréias.
As garotas estão terminando seu embelezamento. Murmuro uma desculpa
qualquer para a perplexa funcionária e saio correndo. Volto ao
meu carro.
Elas saem exatamente ao mesmo tempo, juntas. Uma pequena tropa de Andréias.
Vestidas com sua blusinha curta, seu piercing no umbigo, sua calça
de griffe e seu olhar vazio de robô. Mas
só uma delas tem uma mancha de catchup na calça.
A mira telescópica resolve o resto. Junto com o silenciador, é
claro.
Missão cumprida. As três outras Andréias
se dissolvem em fumaça verde: desaparecem assim que o original
morre, antes mesmo que comece a juntar gente em volta do cadáver
estendido na calçada. É uma pena, tão moça...
Mas o que posso fazer? É isso ou elas vão se apossar do
planeta.
Até agora tive muita sorte. A história do catchup, por exemplo.
O primeiro esbarrão numa Andréia foi inteiramente acidental.
Só depois descobri que "eles" não conseguem duplicar
a mancha na roupa. Não sei porque. Deve ser um bug no sistema...
"Eles" são espertos, essa é a verdade. Ninguém
hoje presta atenção à semelhança entre duas,
três ou mil mocinhas loiras de piercing no umbigo e roupinha de
griffe. Essa é a peça-chave da sua estratégia. Podem
fabricar um exército dessas garotas.
O nome Andréia funciona, imagino, como um marcador.
Claro que a nossa sorte não vai durar para sempre. Um dia a polícia
vai notar a misteriosa coincidência do nome, idade e classe social
das vítimas. Mesmo assim os assassinatos - ou eliminações,
como prefiro chamá-los - vão continuar. Somos um pequeno
grupo de gente treinada e motivada. Usamos bons disfarces. E as execuções
que levamos a cabo tem a aparência mais aleatória possível.
Por isso, vamos continuar. É preciso continuar. Ou então....
Alguém aí quer viver num mundo dominado pelas Andréias?
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