A invasão da Terra já começou
PROCURANDO AS ANDRÉIAS
ANDRÉIA NASCIMENTO
(1985-2004)

A família agradece as manifestações de solidariedade por ocasião do trágico falecimento
da sua filha, irmã, neta e sobrinha. E convida a todos para a missa de sétimo dia,
que será celebrada na Igreja do Calvário, hoje às 19h.

Dezenove anos. Vi a notícia ontem no jornal. Assalto, segundo a polícia. Encontraram a menina baleada dentro do carro. O ladrão - diz a matéria - fugiu com a bolsa, mas não teve tempo de levar o Vectra.
A violência nessa cidade está cada vez pior.

De volta ao trabalho. É meio-dia e estou na porta do Colégio Bandeirantes, esperando outra Andréia. Como sempre, comendo cachorro quente. Almoço? Esquece.
Andréia Pareto. Loira quase natural. Grife da cabeça aos pés. Salto agulha, jeans apertado - esse tipo de menina não adere aos jeans largadões -, blusa curta mostrando o umbiguinho e o piercing de estimação. Dá pra ver que está com pressa.
Antes de seguir essa Andréia, levantei sua ficha completa. O nome é sempre a primeira coisa que me chama a atenção. Depois vem a conta bancária - papai rico ou no mínimo bem de vida é indispensável. E tem que ser loura. Se for morena está fora de risco.
Deve também adorar shoppings, academias e barzinhos de Moema. Senão, nem vale a pena se preocupar.
O último dado que me chamou a atenção foi a idade. Todas elas têm dezenove anos.
Falando assim, parece que meu campo de investigação é restrito. Que nada. No ano em que elas nasceram - 85 - a epidemia de Andréias ainda estava no auge. Tem Andréia a dar com um pau. Não faço outra coisa na vida senão seguir patricinha - ou andreinha - por essa cidade. Mas o que fazer? Ninguém disse que salvar o mundo era uma tarefa fácil...
Chequei essa Andréia aí. É burrinha. Repetiu o terceiro colegial. Não faz PN na escola. Anda com seu Celta de cima pra baixo a tarde inteira. Volta às quatro da matina pra casa. Se bobear, repete de novo o mesmo ano.
Agora está olhando de um lado pro outro, procurando alguma coisa. Leva as mãos cuidadosamente manicuradas ao cabelo. Sacode a cabeça. Tira da bolsa o celular que está tocando. Cor-de-rosa com visor azul...
- Mãe?
De onde estou, ouço direitinho a conversa. Também, ela fala tão alto.
- Não. Ainda não saí daqui. (...) Não, não vou pra casa agora. (...) Pra academia, mãe. (...) Ela ligou? Achou o endereço da loja? (...) Ai, que pena. Mas você pode me comprar um em Miami, não é? (...) Tá. Tá. Não, eu almoço na academia mesmo. E dou uma passada no shopping, porque estou completamente sem roupa. Depois vou pro cabeleireiro. (...) À noite? No cursinho, ué! Pode ser que volte mais tarde, tem aula extra... (...) Não. De verdade. Vou mesmo. (...) Claro que dessa vez vou passar, mãe. Não vou repetir! Já falei milhares de vezes. (...) Tá. Tchau. Beijinho.
Recolhe a antena, bota o celular na bolsa, faz biquinho e se assopra com ar de saco cheio.
Vai repetir o ano de novo. Isso é, se conseguir chegar até o fim do ano....

Nem toda Andréia, é bom notar, é burra. Nã-nã-ni-nã-não. Uma delas até percebeu que eu a estava seguindo e veio me interrogar. Fingi que estava a fim da garota. Não colou. Ela me ameaçou com a polícia.
Foi então que comecei a usar os disfarces, que se revelaram uma ótima idéia. Hoje, por exemplo, botei uma peruca loira - a menos ridícula que achei na loja. E estou vestido no estilo grunge: camisa xadrez, jeans bem largo... Se bobear, passo por um colega da Andréia. Ninguém vai prestar atenção em mim.
Sigo ela há quinze dias. Até agora, nada aconteceu. Mas com certeza vai acontecer. Ela tem todo o perfil...
Passo por ela muito apressado e acabo esbarrando na menina.
- Ai! Não vê por onde anda?
- Desculpa, moça...
- Olha o que você fez na minha calça!
O jeans de griffe agora tem uma mancha de catchup, proveniente do meu sanduíche. Gaguejo:
- Puxa, d-desculpa, não vi!
- Cretino! - diz ela, furiosa. Dou o fora o mais rápido possível e volto para meu carro, de onde continuo a vigiá-la. Ela comenta com a amiga ao lado:
- Pode uma coisa dessas?
Continua parada na porta do colégio... Ué, que aconteceu com o Celta? Oficina?
Andréia está a pé.
Levantou um dedinho e parou um táxi. Entrou. Vou segui-la, lógico.
Hum... Táxi esquisito, esse. Há anos não via um carro dessa cor. E depois... espera aí! Esse modelo saiu de linha há mais de uma década! Como pode estar tão novinho e reluzente? Aqui tem algo muito estranho...
Pronto. Lá se foi mais uma Andréia. Quer ver?
O táxi pára em frente à academia. Andréia sai sacudindo as longas madeixas loiras. Bate com força a porta do carro. Entra na academia.
Até agora, tudo normal. Mas continuo na porta, esperando.
Cinco minutos depois, outra Andréia sai do táxi.

Em meia hora aqui na porta, contei oito Andréias saindo do táxi. Todas iguaizinhas ao original: roupa de griffe, loiras oxigenadas, piercing no umbigo. Depois da oitava Andréia, o táxi vai embora. Suponho que vá entregar mais uma batelada em outra parte da cidade.
Claro que eu poderia segui-lo, mas o que adianta? O problema não são os clones, é o original. E o original está lá dentro.
Evidentemente já estou matriculado nessa academia, como aliás em várias outras do mesmo tipo, espalhadas pela cidade. Lugares grandes e bonitos, com vestiários em mármore, professores sarados, aparelhos de última geração etc.
Entro e faço um balanço da situação.
Tem uma Andréia na esteira. Outra no aparelho para as coxas. Outra fazendo abdominal. Outra batendo papo na lanchonete. Uma quinta na aula de step, mais uma sexta no mountain bike... As restantes devem estar no vestiário.
Claro que as pessoas estranham um pouco, olham duas vezes, mas... acabam se acostumando. O que não falta no pedaço são garotas loiras e malhadas, iguaizinhas umas às outras. Não chamam a atenção. E é assim que as Andréias vão dominar o mundo. Isso, é claro, se eu permitir...
Vou ao banheiro com minha malinha de disfarces. Quando saio de lá, sou uma mulher de meia-idade, precisando urgente malhar pra perder uns quilinhos. Mas antes preciso passar pelo vestiário.
Lotado! Hora de almoço é um dos momentos em que a academia fica mais cheia. Perfeito! Me escondo na única cabine vazia, tomando cuidado para que meus pés não apareçam...
Uma a uma, as Andréias vão entrando. Uma a uma, eu as elimino com minha pistola com silenciador. Não tenho problema com os cadáveres: todas eles desaparecem imediatamente. Só espero que ninguém veja a fumacinha verde do lado de fora...
Assassino exatamente oito clones de Andréias. Mas o original não aparece. Esse é o problema: depois que sofrem a transformação, parece que elas ficam mais espertas...
Ainda consigo pegar a Andréia original, lá fora acenando para um táxi.

Dessa vez é um carro comum, não uma nave vinda de outra dimensão disfarçada de Opala. Andréia vai ao shopping. Fico seguindo-a de loja em loja, ainda disfarçado de dona-de-casa.
Que trabalhão! Consigo pegar três Andréias no provador. Uma no banheiro. Mais outra numa cabine de fotos automáticas. E a última eu acerto no escuro do cinema.
Mas todas elas viram fumacinha verde. Preciso continuar atrás da "matriz" das Andréias. Que a essa hora, como já sei bem, foi totalmente esvaziada do pouco cérebro que possuía. Trata-se de um autômato, um ser sem vontade nem poder de decisão, guiado por uma força extraterrena e alguns reflexos automáticos que sobraram do seu antigo "eu".
Por exemplo: ir ao cabeleireiro.

Não é que os cabeleireiros não estranhem ver quatro meninas exatamente iguais: uma secando o cabelo, outra tingindo, outra se depilando, mais uma quarta fazendo as unhas. Eles acham esquisito, sim. Mas não têm tempo de pensar no assunto. Hoje é sexta-feira e o salão, apesar de caro, é muito concorrido.
Aqui não posso fazer nada. Não dá pra executar quatro clientes na frente de todo mundo.
Ainda na caracterização da gorducha, fico sentada em frente ao espelho, fingindo que escolho uma cor de tintura enquanto vigio as Andréias.
As garotas estão terminando seu embelezamento. Murmuro uma desculpa qualquer para a perplexa funcionária e saio correndo. Volto ao meu carro.
Elas saem exatamente ao mesmo tempo, juntas. Uma pequena tropa de Andréias. Vestidas com sua blusinha curta, seu piercing no umbigo, sua calça de griffe e seu olhar vazio de robô. Mas só uma delas tem uma mancha de catchup na calça.
A mira telescópica resolve o resto. Junto com o silenciador, é claro.

Missão cumprida. As três outras Andréias se dissolvem em fumaça verde: desaparecem assim que o original morre, antes mesmo que comece a juntar gente em volta do cadáver estendido na calçada. É uma pena, tão moça... Mas o que posso fazer? É isso ou elas vão se apossar do planeta.
Até agora tive muita sorte. A história do catchup, por exemplo. O primeiro esbarrão numa Andréia foi inteiramente acidental. Só depois descobri que "eles" não conseguem duplicar a mancha na roupa. Não sei porque. Deve ser um bug no sistema...
"Eles" são espertos, essa é a verdade. Ninguém hoje presta atenção à semelhança entre duas, três ou mil mocinhas loiras de piercing no umbigo e roupinha de griffe. Essa é a peça-chave da sua estratégia. Podem fabricar um exército dessas garotas.
O nome Andréia funciona, imagino, como um marcador.
Claro que a nossa sorte não vai durar para sempre. Um dia a polícia vai notar a misteriosa coincidência do nome, idade e classe social das vítimas. Mesmo assim os assassinatos - ou eliminações, como prefiro chamá-los - vão continuar. Somos um pequeno grupo de gente treinada e motivada. Usamos bons disfarces. E as execuções que levamos a cabo tem a aparência mais aleatória possível. Por isso, vamos continuar. É preciso continuar. Ou então....
Alguém aí quer viver num mundo dominado pelas Andréias?

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