Sexo, calças de couro, e uma participação especial do Padre Marcelo...
ANA JÚLIA ON THE ROAD

Parte 1: A vida não é um comercial de margarina

Segunda-feira: Dia de faxina. A faxineira não vem. Ana Júlia  passa o dia varrendo, esfregando, lavando. Faz também  o jantar, antes que o marido e os filhos cheguem da rua. E depois alimenta os cachorros.
Comentário do marido, ao chegar: "Picadinho de novo?"

Terça-feira: Ana Júlia, que é estatística e trabalha em casa, tem um serviço a entregar. A cada meia hora é interrompida pela mãe que telefona para se queixar da saúde; pelo cliente que a aborrece com detalhes sem importância; e pela operadora de telemarketing que com voz chorosa pede dinheiro para os ceguinhos.
Ocupada o dia todo, gasta um dinheirão encomendando comida, para que à noite a família não reclame.

Quarta-feira: O marido a acorda às duas da madrugada. Quer sexo. Enquanto ele se satisfaz, Ana pensa no cardápio do jantar que vai oferecer ao chefe do marido, semana que vem. Tenta também calcular as despesas do mês (o cartão de crédito vence amanhã).

Quinta-feira: A filha adolescente saiu com o namorado, não voltou na hora marcada e nem telefonou. Esperando sozinha enquanto o marido ronca (melhor não acordá-lo, ele fica nervoso e não ajuda em nada), Ana liga várias vezes para o celular da filha. Não adianta, cai sempre na caixa-postal.
O que terá acontecido, meu Deus? Ana Júlia lembra das histórias que lê no jornal:  assalto, seqüestro, estupro, assassinato...
Às cinco da manhã a filha chega fedendo bebida. Ana tenta falar com ela. A garota se tranca no quarto, gritando que está cheia de ser controlada pela família.

Sexta-feira: Assim que Ana se deita, exausta, para descansar do trabalho que finalmente conseguiu entregar, o filho chega para o ensaio semanal  da sua banda de heavy metal. Ana sabe que não adianta reclamar. Coloca um roupão e vai assistir TV.
Não há comida na geladeira. O marido telefonou dizendo que vai sair com os amigos. Os cachorros, entediados, vêm fazer companhia à dona.
Às duas da manhã, quando finalmente o ensaio acaba, o filho encontra a mãe e os cachorros adormecidos no sofá, com a TV ligada. A mãe tem um picles de pepino intacto na mão.

Sábado: Dia de visitar a sogra (assim, pelo menos, sai um pouco de casa). Ela gasta horas tentando pentar o cabelo intratável.
- Porra, Ana, acabou de novo a cerveja! - grita o marido, lá de baixo.

Domigo: Almoço em família, seguido da inevitável briga familiar.

Parte 2: HD de Harley Davidson

- Não dá mais pra gente vir nesse lugar - resmunga o marido, mastigando uma batatinha.
Ana está distraída, pensando na sua última consulta médica (o médico lhe deu um remédio contra a angústia). Olha para onde o marido aponta.
Elas são mais de dez e menos que vinte. Algumas usam roupas de couro. Muitas tingem os cabelos de cores exóticas. Outras raspam a cabeça. Ou usam piercings das mais variadas formas em  diversos lugares do corpo.
Ana Júlia - que faz tanto esforço para não exagerar no doce e não ganhar peso - olha perplexa para as garotas mais gorduchas, muito à vontade em suas banhas.
- Não sei de onde saíram essas coisas...- resmunga o marido.-  E as motos? Olha só aquela ruiva!
- O que tem ela?
- Uma Harley-Davidson - diz o marido, com mal-disfarçado suspiro de inveja.
- O que é uma Harley-Davidson?
O olhar da ruiva bate direto no de Ana Júlia. A ruiva sorri, amistosa. O marido se enfurece.
- Garçom, a conta!
Sai pisando duro, olhando acintosamente as garotas.  A mais gorda, que parece ser a líder do grupo, agarra a cintura de uma das motoqueiras e beija-a na boca sem tirar o olhar do marido de Ana, que avermelha e sai pisando duro.
- Não sei como essa gente consegue...
Esperando o valete buscar o carro, bufa:
- Nada contra. Eu não tenho preconceito. Mas tudo tem sua hora e lugar. Tem criança passando por aqui!
- É.
- Você não acha, Ana?
Ana Júlia na verdade não acha coisa nenhuma. Quando chega em casa, vai à Internet saber o que é uma Harley-Davidson.

Parte 3: Lost Boys

Na semana seguinte Ana inventa uma aula de webdesign na tarde de sábado.
- Mas você não vai passar a tarde na casa da minha mãe?  - reclama o marido.
- Não dá. Saio logo depois do almoço.
O marido lhe lança um olhar de desconfiança. Resmunga mais um pouco, depois esquece o assunto.

Insuflado pelo exemplo da mãe, o caçula decide que não quer mais ir à casa da avó.

Ana passa a tarde de sábado na lanchonete das motoqueiras.
Elas entram, pedem cerveja. Preguiçosas feito gatos, andam pelo bar, riem, enroscam-se nas companheiras. Algumas abrem as pernas ao sentar, despreocupadas com a elegância  e os bons modos. Ana percebe que elas não raspam as axilas. Ana olha fascinada para essas moças.
Ao chegarem em casa, elas não  vão providenciar o almoço de domingo, nem separar brigas dos filhos, nem levar os cachorros pra passear.
A ruiva está atrás do balcão. Usa calças de couro e um colete sem mangas, também de couro. 
- Vai tomar alguma coisa? - pergunta, amistosa.- Um vinho branco seco, quem sabe?
- Não gosto de bebida seca. Preferia... um coquetel.
- Posso fazer um pra você?
- Por favor.
A ruiva coloca líquidos e gelo numa coqueteleira, que depois balança com gestos firmes.
- Fui eu que inventei. Batizei de Lost Boys.
- Lost Boys?
- Duas fatias de grapefruit perdidas no copo.
Depois que a bebida está pronta, ficam batendo papo. Ana Júlia descobre que a gangue de motoqueiras se reúne ali uma vez por semana, ao voltar de longos passeios pelos arredores da cidade. No dia-a-dia as moças trabalham em empresas, bancos, universidades.
- E você, o que faz, Fernanda? - a ruiva se chama Fernanda.
A moça sorri:
- Perdi o emprego e resolvi pegar esse bico.
- Ah... mas você acha outro emprego, vai ver!
- Não, não vou - diz a ruiva. - Nunca mais na minha vida vou entrar num escritório.
É então que Ana sente o primeiro arrepio.

No meio da semana, vai ao cabeleireiro e pede que lhe corte o cabelo bem curto. O homem fica surpreso - há anos ela cultiva a cabeleira - mas obedece sem discutir. Só protesta quando ela diz que não vai tingir.
Os brancos vão aparecer, ele diz.
Não tem importância, responde Ana.
A família estranha, mas Ana está contente. Agora não precisa mais gastar horas penteando o cabelo. Se olha no espelho e dá um sorriso satisfeito. Passa a mão no crânio devagar. Imagina que está acariciando a cabeça de um animal jovem e livre.

Parte 4: A mulher que abandonou o Padre Marcelo

A semana acaba, e a família continua na sua rotina.
Antes do almoço dos sábados, a sogra de Ana exige que todos assistam com ela a missa do Padre Marcelo. Os netos protestam, mas não têm outro remédio. O pai acha que o padre até diz coisas válidas. E Ana Júlia?
Naquele sábado, Ana Júlia ainda não chegou.
- Ela disse que ia passar na casa da irmã - explica o marido de Ana.  Olhou o relógio, inquieto: - Mas está atrasada...
- O Padre Marcelo já está quase terminando a missa.
- Não sei onde anda...
- Puxa vida, meu filho, mas agora ela não vem nem pro almoço?
A missa termina e Ana não aparece. A sogra decide que comerão mesmo sem a presença da nora. O marido liga várias vezes para o celular de Ana. Cai sempre na caixa postal.
A alguns quilômetros dali, Ana está na porta da lanchonete, vestida com uma roupa de motoqueira que acaba de comprar. Está feliz e cheia de expectativas - apesar da calça de couro apertar um pouco no quadril.
Hoje, Ana Júlia vai dar sua primeira volta de Harley-Davidson.

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