"Uma noite alucinante com os vampiros da ZL"

ALGUÉM VAI NOTAR QUE EU SOU ESPECIAL

Eu não sei porque vim a essa festa. Ou melhor, sei. Vim porque estava sozinha e entediada em casa. Porque o telefone não tocava. Porque não tinha outro programa. Porque ando muito sozinha. Porque olhando no espelho me achei bonita e pensei, quem sabe. A esperança é a última que morre. E a bebida é de graça.
E aí, deu tudo errado.
Se em casa eu estava entediada, aqui estou pra me suicidar de tédio. Mas eu devia ter desconfiado. Vi o folhetinho na estação do Metrô: Festa Vampírica da Zona Leste. Por aí já dava pra suspeitar do ridículo, mas... vim. Saí de casa, gastei cinco reais de entrada (pelo mico que estou pagando, é muito), e agora estou no meio de um monte de Dráculas da Quarta Parada, rapazes espinhudos de caninos falsos, vamps de maquiagem carregada e sorrisos fatais... E a breguice da festa então? a maquiagem sinistra, as luzes negras, o som de Evanescence, o drinque com groselha imitando... sangue, suponho. E como saí de casa tarde, a essa hora o metrô já acabou. Será possível que tenha de ficar nesse lugar até as cinco da manhã? Ninguém merece.
- Esqueceu a fantasia?
Ele deve ter um metro e oitenta. Moreno. Caninos salientes. Capa preta. Maquiagem branca. Não está me paquerando. Pelo contrário. Tem um ar severo, contrariado.
- Bom... eu pus um batom mais escuro, sabe...
- Escuta, minha filha. Sou da organização. Só batonzinho da Revlon não chega. Não vira. O convite foi claro: traje a caráter, não viu?
- T-tá bom, eu vou embora - gaguejo, intimidada.
Ele se desconcerta
  - Também não é pra tanto. – acaba dizendo. - Pode até ficar. Mas da próxima vez, já viu, não esqueça da fantasia.
Até parece que eu vou voltar.... 
- Tá bom.
- Meu nome é Fábio, e o seu?
- Aline.
- Prazer, Aline. Sabe, minha querida, queremos implantar esse tipo de evento aqui na ZL, porque já tem em outros bairros da cidade. Hoje em dia, não sei se você sabe, mas até nos Estados Unidos as pessoas conhecem a cena vampírica paulistana.
- Não sabia.
- Você também freqüenta o meio, assim?
- Não... quer dizer, é a primeira vez.
- Garanto que vai adorar - ele se curva sobre mim, confidencial. - Eu levo isso muito a sério, é minha vida.
- Ah.... que bom.
- Temos um grupo aqui... Talvez você queira participar. - Seus olhos brilham - Alguns de nós... somos iniciados, sabe?
- Iniciados?
- Já bebemos sangue - sussurra ele, encostando seu rosto perto do meu. Pelo hálito, deve ter sido o sangue de algum animal extremamente fedorento...
- É mesmo? - digo, colocando uma distância de dois passos entre nós dois. Ele se recompõe:
- Não fique assustada - diz. - Não é o que você está pensando. Somos contra a violência. É tudo... consensual, entende?
- Claro.
Minha expressão deve tê-lo convencido a mudar de assunto:
- Não sei se você sabe: hoje temos uma convidada VIP.
- Ah, sim? - digo eu, com a atenção flutuando. Num dos cantos da sala, um casal se enrosca em suas respectivas capas, cheios de desejo. Ai que  inveja.... Ando tão sozinha, ultimamente...
- Uma escritora famosa. Já escreveu alguns contos de vampiro.
- Hum, sei - No outro canto da sala, um adolescente magrinho tira um par de caninos de plástico do bolso e os aplica na boca, com toda a seriedade.
- Talvez você já tenha ouvido falar dela. Consuelo Martins.
Agora ele conseguiu me interessar.
- Consuelo Martins? Aquela que ganhou um prêmio outro dia? Apareceu na televisão?
- Essa mesma - ele, confirma, orgulhoso. - Acabei de receber uma ligação dela no meu celular. Está vindo pra cá.

Inacreditável! O bando de nerds conseguiu atrair pra esse fim de mundo uma das minhas escritoras favoritas. Curto tudo o que ela fez, tudo. A peça de teatro. Aquele romance histórico que se passa em Ouro Preto. Os contos de terror, arrepiantes. Alguns são... eróticos. E de ótimo gosto, aliás.
Ouvi uns boatos sobre ela, mas não sei se são verdade. Só olhando, é difícil dizer. É mais bonita que nas fotografias. Morena. Olhos profundos. Elegante, com um certo ar misterioso.... E claro que não veio fantasiada de vampiro de subúrbio. Está linda, com um vestido preto decotado de muito bom-gosto.
Como eu gostaria de falar com essa mulher. Mas... ela deve estar de saco cheio dos fãs assediando. O tal do Fábio já pendurou nela, feito papagaio de pirata, e fica cochichando no seu ouvido, fingindo intimidade. Nossa, esse cara não se manca.
Está entediada, também. Dá pra ver pela cara. Seus olhos passeiam pela sala, aborrecidos... Vai dar um tempinho e se mandar, provavelmente.
- Posso te trazer um drinque? - pronto, outro chato já se encostou em mim.
- Não, obrigada, não estou com sede.
- Você já bebeu hoje?
- Bom, eu...
- Já sugou o sangue de alguém?
- (...)!!!
- Rá, rá. Brincadeirinha.  Muito prazer, meu nome é Luís. Você vem sempre aqui?
Ô meu Deus. Não acredito que esse sujeito está dando em cima de mim. Ele é horroroso!
- Bom, eu...
Nesse momento o tal do Fábio atravessa a sala, com a escritora pelo braço. Estão vindo na minha direção.
- Aline? É Aline, não é? Contei pra Consuelo que você é fã dela!
A escritora me encara com seus olhos magnéticos. Mesmo no escuro, posso ver que são de um castanho-escuro estranho, com tons esverdeados metálicos.
- Muito prazer, Aline - ela estende a mão, de longas unhas pintadas de vermelho. A voz também é especial: grave, um pouco rouca. Que idade terá? A pele ainda é firme e elástica, o corpo enxuto, pernas longas... Nossa, como eu queria ser bonita assim.
- Pedi pra ser apresentada - me explica ela, quando os dois pentelhos se afastam de nós. - Você me pareceu uma pessoa interessante, e não tem muitas por aqui....
- Obrigada - respondo, meio sem-graça. Ela me olha por alguns segundos, e depois desabafa:
- Isso aqui está um horror, não acha?
- Medonho! - concordo.
- Brega, horrível, com esse som alto...
- Está uó.
- E umas pessoas... francamente...
Mal acredito em meus ouvidos. Não só fui apresentada à minha escritora favorita, como ela compartilha das minhas opiniões. Ganho coragem e começo também:
- E depois, essa coisa de tribo... esse vampirismo de mentirinha... É ridículo!
- Completamente bobo. Imagine, o tal do Fábio veio me oferecer aquela beberagem horrível de groselha, cheio de cerimônias, como se tivesse assaltado um banco de sangue!
- Será que ele não se enxerga?
Ficamos mais alguns minutos detonando a festa. Até que ela se inclina sobre mim. Seu tom de voz fica mais grave, quase sensual:
- O Fábio diz que você gosta dos meus livros.
- Acho maravilhosos! Principalmente os contos de vampiros. Pra falar a verdade, não sou fanática por esse gênero... mas os seus são exceção. Têm clima.
- É mesmo? - ela tenta disfarçar, mas obviamente gostou do elogio. - Bom... eu tento evitar os lugares-comuns desse tipo de ficção.
- Lugares-comuns?
- Sabe por que você não gosta de histórias de vampiro? Porque estão cheias de estereótipos! Nelas, o vampiro é sempre poderoso, superior aos humanos, forte, invencível etc. Mas, e se o vampiro fosse uma pessoa como outra qualquer? Como eu e você, por exemplo?
- É uma idéia interessante.
- Talvez ele também sinta dúvidas, medo, solidão... Já imaginou como a vida de um vampiro deve ser solitária?
- Posso imaginar...
- Eu vejo o vampiro como um ser complexo. Você, por exemplo... deve ter uns vinte anos, não é? - Antes que eu responda, emenda: - Imagine a vida de alguém que está condenado a viver para sempre... Condenado a se alimentar de seres humanos, mesmo que se sinta culpado... O que você imaginaria sobre alguém assim?
Sorrio, mas antes que responda, ela se inclina para mim. Sussurra:
- Alguém condenado a sugar o sangue das pessoas que ama... Como seria a vida dessa pessoa?
Tento responder, mas não consigo. Estou hipnotizada pelos seus olhos, sua voz, seu perfume. Mas o momento passa. Ela se endireita, toma um gole da beberagem vermelho-sangue, e conclui:
- Você nem faz idéia do que é a vida dele. Jamais conseguiria imaginar.
- Bom, de uma coisa eu tenho certeza - consigo finalmente dizer: - Qualquer vampiro acharia essa festa ridícula!
Ela dá uma gargalhada. Mas aí o Fábio reaparece, efusivo:
- Meninas, vamos tirar umas fotos com os fãs da Consuelo!
Saio de mansinho: detesto fotos, flashs etc. E, principalmente, detesto a luta para aparecer ao lado de celebridades.
Quando as fotos finalmente acabam, já estou do outro lado do salão, tentando ver quem sai da festa. Com sorte, talvez arrume uma carona de volta para casa...
É nesse momento que uma mão fria toca a minha:
- Aline?
Me viro, sobressaltada: a escritora me sorri, do alto do seu metro e oitenta. Na luz negra ambiente, seus dentes brilham.
- Escuta, você não gostaria de sair dessa festa comigo? À francesa, sem ninguém notar.
Surpresa, gaguejo:
- Mas... pra onde a gente vai?
- Dar uma volta. Estou de carro. Podemos passar no meu apartamento, não fica longe daqui.
Hesito, intimidada. Ela me segura pela cintura e sorri. Existe algo de moleque no seu sorriso, e ao mesmo tempo, de muito perigoso....
- Vai ser divertido... Podemos acabar aquele papo sobre os vampiros. Não quer?
- Não, é só que...
- Está com medo de mim, Aline?
- Não, absolutamente. - Detesto que me chamem de covarde - Vamos lá, então!
Consuelo nem se dá ao trabalho de se despedir dos organizadores. Noto os olhares invejosos me acompanhando, enquanto vou embora com a estrela da festa. Sei que a situação é estranha, mas não quero pensar muito. Seja o que Deus quiser.
Ela abre a porta para mim e eu entro. Dentro do carro, murmura:
- O que você acha de dar uma passadinha no meu apartamento, antes de ir pra sua casa? Não fica longe, sabe.

Já estamos dentro do elevador quando Consuelo se curva sobre mim e me dá um beijo devastador na boca. Nunca fui beijada assim, por homem nenhum. Meu corpo todo estremece, uma corrente elétrica corre pelos meus sentidos. A mão dela, firme enquanto me beija, aperta o botão de emergência, e pára o elevador com um tranco.
Continuamos nos beijando e ela se esfrega sobre mim. Levanta minha saia, e sinto o tecido sedoso do seu vestido roçar por minha perna. Com um movimento firme, puxa para baixo minha calcinha, e seu dedo hábil, seguro, começa a me esfregar. Com minhas defesas destruídas, gemo e resfolego sem disfarces.
- Fala a verdade - diz Consuelo em meu ouvido - Você já fez isso antes?
Olho para ela, surpresa:
- Isso  o quê?
- Com mulher, sabe.
- Ah, isso. Não - suspiro - Nunca.
Ela sorri e murmura:
- Nunca é tarde pra começar...

Já são quase cinco horas quando finalmente saio do apartamento de Consuelo. Depois que fizemos amor, ela queria que eu ficasse; mas fui firme, e insisti em voltar para casa. Ela então rolou para o lado e disse, ainda sorrindo:
- Bom, encoste a porta quando sair... Não quer mesmo que eu te leve pra casa?
- Não, a essa hora o metrô já abriu.
- Me liga depois, tá? Não esquece.... Eu agora vou dormir um pouco... acho que vou dormir o dia inteiro.... sou uma pessoa noturna.
E, sem mais palavras, fechou os olhos e dormiu. Vim o caminho todo no metrô sorrindo sozinha, feito boba, feliz, etérea.
Não, isso nunca me aconteceu antes. Mas por que não agora? Estou sempre aberta a novas experiências. Podemos até - não custa sonhar! - ficar juntas.
Juntas para sempre.

Certeza, não há. Não sou vidente, nem telepata. Não tenho o poder de adivinhar as reações de Consuelo. Só posso ficar aqui em casa, fechada, sonhando com ela; e imaginando o que vai pensar, quando notar em seu pescoço aqueles dois delicados furinhos que não cicatrizam.
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