Pela família, vale qualquer sacrifício

OS SAPATOS QUE VOVÓ PEDIU

Tá bom, vou ser franca: fui eu. Eu matei o seu Rogério França, da Calçados Finos França, aquela loja no lado esquerdo da Duque de Caxias. Bati na cabeça dele com um peso de papel que tinha uma aranha dentro.  E como assisto os seriados de legista que passam na TV, me lembrei de trazer de casa uma luva, para pegar no tal peso. Por causa das digitais.
E outra: Seu Rogério estava sozinho, era hora do almoço e ninguém me viu entrar. Então, acho que nunca ninguém vai me descobrir.
Fico chateada de ter feito isso. Mas não tive outro remédio. Ele não entendia meu problema. Faltavam só dez dias pro casamento da minha prima Andréia e ele não me arranjava o sapato que eu queria. A paciência da pessoa acaba. A gente se estressa.
(Inclusive o nervoso foi tanto que minha menstruação veio antes da hora. Mas é melhor ter vindo agora, né? porque senão tinha de usar absorvente no dia do casamento. E aí já viu. A gente fica o tempo todo encanada: que tá aparecendo, que tá vazando. Não adianta outra pessoa falar que não. Fica aquele pensamento na cabeça, é horrível. )
Seu Rogério era muito amigo da vovó. Ela também está chateada, e quer que eu a acompanhe no velório. Porque sou sua neta favorita. Mas não gosto de ver defunto em caixão. Será que vão botar aquele algodãozinho nas narinas dele? credo, que coisa feia. Espero que quando eu morrer não botem algodãozinho no meu nariz.
(Ah! Lembrei. Uma vendedora da Calçados Finos me contou que o caixão vai ser fechado, porque o Seu Rogério ficou desfigurado. Coitado dele. Não era má pessoa. Mas também, quem manda ser teimoso.)
A polícia acha que foi coisa desses maloqueiros que andam aí pela cidade. Vovó diz que antigamente não era assim, a cidade era limpinha e você não via um mendigo. Com certeza logo vão prender um deles e fica tudo em paz.
A família do Seu Rogério deve estar aborrecida, né? Que coisa triste. Eu conheço as duas filhas dele. A Sabrina, a mais nova, estudou no mesmo ano do colégio comigo, só que em outra classe; era boazinha mas vesga, não sei por quê: será que a família não tinha dinheiro pra pagar uma operação pra ela? Depois tem a Adriana que é mais velha que eu, estuda na faculdade das freiras e é a maior vadia. Pelo menos é o que dizem.
Mas mesmo sendo galinha ela deve sentir a morte do pai, né? Eu, pelo menos, acho que deve.
A família do seu Rogério é tradicional, vovó me explicou: os França antes tinham terras, depois venderam, porque lavoura só dá dor de cabeça. Ou pelo menos é o que vovó diz. Foi por isso que, depois que vovô morreu, ela mesma vendeu suas terras e abriu um frigorífico, que se chama: Frigorífico Bertoldo. Bertoldo era nosso avô italiano, e minha avó sempre manda  rezar uma missa no aniversário da morte dele, que é 7 de dezembro. Além disso pediu prum vereador muito atencioso lá na Câmara colocar o nome do vovô numa rua da entrada da cidade. E ele não só colocou, como até mandou fazer um busto de mármore, e inaugurou com festa e tudo.
Mas apesar de todas essas homenagens minha avó me disse que o Vô Bertoldo não prestava.
- Por que não, vovó?
- Olha, o Bertoldo era um homem bom... trabalhava muito, ganhava muito dinheiro, cuidava dos filhos, me dava jóias, sabe? mas tinha um defeito horroroso, vivia atrás das mulheres da zona.
- Que horror!
- É. Eu reclamava, mas ele abria os braços e dizia assim: "Cosa fare? Me piace le putane!"
Eu sou a neta favorita de vovó, não sei se já disse aqui. Por isso ela me conta essas histórias. O frigorífico hoje é uma empresa grande, tem clientes importantes e por isso nossa família é tão importante aqui da cidade. Por causa de famílias como a nossa, ou a do Doutor Monteiro da Agrosoja, que está  milionário e foi morar em Miami, a cidade está ficando cada vez mais rica. Logo vão abrir um shopping aqui. Aliás eu tenho certeza de que se já tivesse um shopping nada disso teria acontecido; eu conseguia meu sapato na hora e não precisava matar ninguém.
Tudo começou com a Andréia, que tinha de casar em maio. Todo mundo sabe que maio é uma época péssima, tudo lotado, um horror. Mas ela fincou pé na data. Eu sempre achei a Andréia muito mimada, inclusive comentei já várias vezes com mamãe; e ela dá um suspiro e diz, fazer o quê? minha irmã se separou, ficou com complexo de culpa e estragou essa menina. O ex-pai da Andréia casou com a cunhada do dono das Lojas Noroeste, uma nariguda que fez plástica e ficou com um nariz mais horrível ainda. Ela chamou várias parentes horrorosas dela para serem damas de honra, olha o desplante, nem mãe do noivo a perua é. Aí, vovó chamou todas nós, as primas que vão ser damas de honra, e disse que não podíamos fazer feio.
Todas as damas vão de verde-garrafa, uma coisa linda; pode variar o modelo mas o vestido e o sapato, vovó explicou, têm que ser no mesmo tom de verde. Ela deu amostras de fazenda pra todas as damas, e as mais espertas correram pra São Paulo encomendar num sapateiro super-exclusivo que elas conhecem. Só a burra aqui não pôde ir - não porque eu não tenha dinheiro pra isso, se eu quisesse ia no tal sapateiro e comprava o estoque todo. Mas fui no seu França mesmo, porque estava em época de prova. Vovó sabe que minhas primas não têm nada na cabeça. Mas eu estou estudando, puxa, levo meu curso de Administração a sério. Além disso faço estágio na Imobiliária Santa Inês que é a maior da região e o dono é primo da vovó.
Mas voltando ao assunto, como eu não podia viajar pra São Paulo fui na melhor loja aqui da cidade, a Calçados Finos França. Fui confiante porque imaginei que o seu Rogério tinha competência pra isso, tanto como qualquer um de São Paulo. Ele é, digo, era, ótimo; trabalhava sob encomenda, e não fazia sapato pra qualquer mané. Nem passou pela minha cabeça que ele fosse aprontar comigo, porque a coisa que o seu Rogério mas quer nesse mundo - ou queria - era agradar  vovó.
Mas o problema é que outra neta da vovó já tinha encomendado o sapato pra ele. A Márcia. Chegou antes de mim, porque não faz nada na vida, passa o dia na piscina do clube tomando Coca-Cola e batatinha e esperando aquele noivo enjoado dela aparecer pra também não fazer nada. Pra piorar mais ainda as coisas ela tinha viajado, estava na fazenda da mãe em Jaú. Se estivesse aqui eu poderia fazer  pressão pra ela me dar o sapato. A Márcia morre de medo de mim desde pequena, quando eu arrancava os olhos das bonecas dela.
Mas o fato é que a criatura não estava aqui, a porcaria do telefone da fazenda só quem atende é uma empregada burra que nunca sabe onde ela está, e o celular nem sei porque usa; nunca atende. Logo o sapato dela chegou, lindo, forrado no tonzinho que a vovó tinha pedido e ficou lá na vitrine, aguardando que a Sua Excelência aparecesse pra pegar.
Já o meu sapato, o sujeito não estava com a mínima pressa de terminar. Fez corpo mole, ficou   me enrolando.
Toda tarde depois do trabalho eu passava na Calçados França e perguntava pro seu Rogério se o meu sapato já estava pronto. Perguntava com educação porque, graças a Deus, não sou dessas meninas grossas que tratam mal os subalternos; pergunta pra mamãe. E o seu Rogério, justiça seja feita, sempre me dava um sorriso amável; mas também, sempre respondia que o sapato não estava pronto.
Num certo ponto pode-se dizer que a culpa da morte do seu Rogério foi da paspalha da Andréia, que marcou bem pro pior mês do ano o casamento dela com o tal veadinho.
Ops, desculpe, escapou. Não devia dizer isso, mas é o que todo mundo comenta. Que ele tem um jeito esquisito, faz até mecha no cabelo. Que morou um tempão com um rapaz, quando fez faculdade em Botucatu. Só os dois. E que todo mundo dizia que eram,  "namorados", entende? como se fossem homem e mulher.
Mas aí depois ele fez especialização nos Estados Unidos, voltou e abriu uma clínica linda no meu bairro mesmo, precisa ver, é só mármore e aquele outro piso que a mamãe colocou na suíte dela, e tem uns aparelhos pra fazer diagnóstico no coração, ou no estômago,  não sei qual dos dois, mas diz que custaram caríssimo e são supermodernos e ele vai ficar muito rico. Quer dizer, mais rico ainda, né, porque o pai dele tem uma loja enorme de autopeças. Mas que ele é esquisitinho isso é; só a Andréia não percebe.
Voltando ao assunto. O sapato não chegava, não chegava, e eu comecei a ficar tão nervosa que nem conseguia me concentrar no estudo. Perdi a data de entrega de um trabalho importante, e era tão fácil, já tinham me ensinado onde achava na Internet. Precisei ficar atrás do professor, e ele foi muito antipático, não queria aceitar o trabalho. Chegou uma hora que tive que falar grosso: professor Fulano, o senhor por acaso sabe que o meu tio é da diretoria da Faculdade? Ele ficou todo vermelho, saiu da sala, não disse nada. Mais tarde me mandou um e-mail avisando que ia aceitar o trabalho, mesmo atrasado.
Me lembro bem dessa tarde. Assim que li o e-mail, peguei o carro e fui pra casa da Sara, que faz meus vestidos desde o baile de debutante. Ela é linda, a Sara, adoro ela, uma pessoa tão bacana, tão iluminada! Gosta de mim porque diz que eu sou humilde, não tenho o nariz empinado como o resto da freguesia. (Às vezes fico pensando: se eu não fosse uma pessoa tão simples, quem sabe o seu Rogério não tinha me aprontado essa falseta). A Sara é espírita. Sempre me diz que sou médium e devia desenvolver. Não sei,  talvez no futuro. Eu tenho um lado espiritual muito forte. Mas vovó tem preconceito com essas coisas de espiritismo e é capaz de não gostar.
O vestido estava prontinho, ficou lindo. Um decotão. Só não exagerei mais pra não humilhar a noiva; coitada da Andréia, é uma tábua. Voltei pra casa, e assim que entrei, o telefone tocou. Era vovó avisando do ensaio do casamento.
- Sábado às sete e meia. Não vá faltar, hein? Todas têm que estar presentes.
- Todas? Até a Márcia? Ela nem está na cidade...
- Acabei de falar com ela no telefone. Está voltando de Jaú.
- Mas...
- Traje completo, viu? Como se fosse no dia, mesmo.
Esfriei:
- Completo, vovó? Até os sapatos?
- Claro que sim! Vai me dizer que você ainda não aprontou tudo?
- Magina, vovó! - Minha voz saiu esganiçada - Tá prontíssimo!
Desliguei e minha cabeça começou a dar voltas. E agora? como eu ia fazer? Era quinta-feira à tarde. Liguei para a Calçados França, desesperada:
- Eu queria falar com o seu Rogério.
- Ele está ocupado, bem.
(Que ódio me deu aquele "bem". Como se eu fosse uma qualquer.)
- Fala que é urgente!
Estava preparada pra outra briga, que nem a que tive com o professor. Mas não precisou. A criatura resmungou qualquer coisa e dois minutos depois seu Rogério estava no telefone. Expliquei a situação:
- Seu Rogério, minha avó vai me matar.
- Ah, Lili, sinto muito. Mas não posso fazer nada. Eu te disse, essa época é difícil... Mas fique sossegada que pro casamento estará pronto...
...e continuou falando, mas eu nem prestei mais atenção. Fiquei só ouvindo aquela voz pachorrenta no telefone e imaginando ele, com aquele cabelo branco saindo das orelhas, aqueles óculos grossos, aquele nariz enorme cheio de cravos... Nunca fiquei com tanto ódio de um homem em toda minha vida.
- Seu Rogério, o senhor não entende? É questão de vida ou morte. Eu pago o dobro pelo sapato. O triplo. Mas preciso dele no sábado.
- Impossível, Lili. Não dá pra fazer milagre. 
Foi então que tive uma idéia:
- Seu Rogério. A gente podia fazer o seguinte. Me empresta o sapato da Márcia.
- Que sapato?
- O que o senhor já fez pra ela, lembra? (meu Deus, como gente velha é devagar.) O número dela é 36, eu sou 37; aperta um pouquinho mas tudo bem.
- Mas Lili, o que vou dizer quando ela perguntar do sapato?
- Sei lá. Diz que perdeu. Que foi fazer uns retoques. Qualquer coisa! Ela não vai ligar.
- Claro que vai. E outra. Não se faz isso com um cliente. Fica mal para mim, veja se entende.  Vocês jovens são muito impacientes...
Eu já estava vendo tudo vermelho. Vovó nunca ia me perdoar, se eu aparecesse sem o sapato no ensaio! Mesmo assim tentei entrar num acordo. Bem que eu tentei:
- Eu pago o senhor, juro por Deus. Só pelo empréstimo. Depois a gente devolve. Eu digo pra Márcia que peguei escondido!
- Nem pensar, não posso fazer isso. Sinto muito.
- Seu Rogério, ela nem vai ligar.
- Ah, garanto que vai.
Que asno; pensando bem, mereceu! Olha o jeito que me tratou! Até que a Márcia era alguma coisa tão importante! É uma inútil na vida, nunca vai ser nada mesmo, e do jeito que está engordando, daqui a pouco nem o noivo pasmado quer saber mais dela.  A vovó já me disse que não vê futuro pra ela.
Mas pra mim, a vovó vê.

São seis e meia da tarde de sábado. Estou acabando de me vestir para o ensaio. Mamãe diz que estou linda, pena o sapato estar apertado:
- Não dá pra trocar?
- Como, mãe? Agora que aconteceu essa coisa horrível com o Seu Rogério?
- Ai, é mesmo, tinha me esquecido. Menina, sabe que eu sonhei com ele na noite de sábado pra domingo? Que horror! É como eu digo: acabou o sossego nessa cidade. Se o Rogério tivesse sistema de segurança que nem o do Frigorífico, nada disso tinha acontecido. Coitado dele.
- É, coitado.
Sei lá o que a Márcia vai calçar hoje. Do jeito que é desligada, capaz de nem lembrar da encomenda. Minha mãe boceja e desliga a televisão:
- Ai, que canseira. Mas se a gente se atrasar pra esse ensaio, mamãe me mata. Sabia que o Rogério foi meu par num concurso de dança? Na época da Jovem Guarda. Ele foi de Roberto Carlos e eu de Vanderléia.
Sei que eu devia ter pensado mais no seu Rogério, coitado. Mas, pra falar a verdade, depois dessa, fui o caminho todo pro ensaio rindo, imaginando mamãe de minissaia e botinha.
Devia ficar bem engraçada.

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