Ele foi a pique num mar de celulose

O HOMEM DE PAPEL

Papel! Papel! Papel! Toneladas, bordoadas de papel desabavam todo dia sobre Rogério, em quantidades tão avassaladoras que ele mal conseguia respirar.  Rogério estava se asfixiando no papel.
Ele, que tanto amava a polpa de celulose, estava sendo arruinado por ela. Ele, que passava horas em livrarias, gastando fortunas em livros, agora seria afogado e arruinado pelos livros! Era irônico.
Um fato era indiscutível. Ou Rogério acabava com o papel, ou o papel acabava com ele.
Pilhas e pilhas se acumulavam na escrivaninha do jornalista. Releases de assessorias de imprensa; teses de mestrandos e doutorandos em busca dos holofotes da mídia; prints de matéria; jornais velhos; convites para lançamentos e palestras de meses  atrás; e livros, livros, um mar de livros.  Alguns chegavam estalando de novos das editoras; outros em provas, zelosamente acondicionados em envelopes pelos departamentos de divulgação.
Todas as semanas recebia dezenas de livros. Não entendia porque os escritores se queixavam da crise editorial. A indústria livreira devia estar no auge da prosperidade. Só assim para explicar aquele bombardeio.
Os livros novos ficavam largados em cima da mesa, até se misturarem a outros mais velhos. De vez em quando, Rogério pescava do meio da barafunda algum volume que lhe parecia recente, e que estivesse fácil de alcançar.
Escrevia uma resenha. Fechava sua coluna.
À noite, depois do fechamento, a faxineira passava pela escrivaninha e arrumava as coisas de Rogério. Ele  tinha esperanças de que Dona Clarice um dia colocasse no lixo aquela papelada. Mas ela era bem treinada na etiqueta do jornal: não jogava fora nada, nunca. Nem ticket de açougue, nem folheto de oficina mecânica, nem convite para baile de carnaval do ano retrasado. Dona Clarice arranjava a montanha de papéis de Rogério com rigor e propósito. Depois, espanava a escrivaninha e ia-se embora.
Ele tentou se livrar da montanha. Várias vezes, inclusive, chegou mais cedo ao jornal para arrumá-la. Mas no caminho entre a porta e a sua mesa, algo sempre acontecia. Era o colega que o arrastava para um café, ou o chefe que o chamava a seu escritório. Rogério sempre comparecia a esses encontros muito nervoso, com a boca seca e o coração disparado. Vivia atormentado pelo medo de perder algum lançamento importante, extraviado em algum ponto da pilha de papel. Duas ou três vezes isso já tinha acontecido. Rogério fora repreendido e tivera que passar horas fuçando a montanha literária.
Remexer naquele monturo era uma provação. A pilha de livros, com seus títulos esquecidos, era uma prova da sua incompetência, da sua nulidade, do seu fracasso como ser humano.
Houve até um dia em que de fato conseguiu fato sentar à mesa e iniciar a arrumação. Mas a Grande Limpeza nunca se completou. No meio do trabalho, ele achou uma biografia interessante. Quando deu por si, o horário do fechamento se aproximava.
Rogério tinha muitos amigos - acadêmicos, escritores, cineastas e jornalistas mesmo, é claro. Todos eles, ao visitarem Rogério na redação, ficavam chocados com a montanha de livros. Humilhado, ele dava duas explicações para o fenômeno: primeiro, o excesso de trabalho. Segundo, a preocupação em não cometer injustiças. Em algum ponto daquela montanha talvez estivesse um novo Machado de Assis, um Guimarães Rosa do novo século, uma Clarice Lispector em botão. Teria o direito de condenar aquelas esperanças da literatura brasileira  à obscuridade e ao esquecimento, simplesmente porque precisava de espaço em sua mesa?
- Mas se você não arrumar a mesa, como vai escrever sobre esses caras? - indagavam os amigos, perplexos.
Ele resmungava alguma desculpa, mudava de assunto rápido. Havia, é verdade, um terceiro motivo que o impedia de fazer a arrumação, mas tinha vergonha de mencioná-lo. Rogério era asmático. Mexer naquela papelada levantaria nuvens de poeira. Era garantia de crise.
Sofrera com a asma a vida inteira. Sua dedicada mãe (Rogério era filho único) passara a vida inteira atrás dele com uma bombinha. Dizia  até que, por causa da doença, o filho nunca ultrapassara o metro e sessenta e cinco de altura. E pensar que todos os seus parentes, tanto do lado paterno como do alto materno, eram altos!
“Não sei porque ela te desmoraliza desse jeito”, dizia Iasmine, irritada, sempre que voltavam de uma reunião familiar. Nessas ocasiões, os assuntos preferidos da mãe de Rogério eram a doença do filho e sua baixa estatura. Sem falar na péssima escolha profissional. Jornalista... Todo mundo sabe que redações de jornal são ninhos de ácaros. Os microcomputadores, que prometiam eliminar o papel, acabaram por ajudar na sua proliferação. Nunca foi tão fácil inundar um redator de press-releases. Não era de admirar que Rogério tivesse tantas crises. Não era, Iasmine?
Iasmine estava casada com o crítico há dez anos e não gostava da sogra. Sorria amarelo. Mas reconhecia que a bruxa tinha certa razão. Se ela visse a pilha que se acumulava na mesa de trabalho de Rogério... E os livros que transbordavam das estantes, em casa?

Enquanto as duas mulheres debatiam sua vida, Rogério fingia não prestar atenção. Tirava os óculos e os limpava. Sorria para os primos. Comia um brigadeiro sem apetite.
O seu problema é que era um fraco. Um pusilâmine (smpre amara as proparoxítonas). O caso da montanha de papel era uma conseqüência disso. Engajara-se numa batalha superior às suas forças e perdera miseravelmente.
Iasmine também se preocupava com a montanha. Todos os dias o marido  chegava arrasado do trabalho: “Está cada vez pior, não me acho naquela papelada...” Não era uma montanha criativa: era a montanha do desespero, da paralisia, da impotência. Acabaria levando Rogério à doença, talvez até à morte precoce (ele tinha trinta e seis anos). Tem-se visto casos...
Ela sugeriu um plano de ação. Rogério levaria  os livros para casa, aos poucos. Lá, cuidaria de separá-los, jogando fora as publicações sem valor, resenhando o que ainda fosse possível.
- Mas eu já tenho trabalho em casa... - argumentou Rogério, e Iasmine ficou sem resposta.
Rogério estava fazendo mestrado. De manhã antes de ir para o jornal e nos fins de semana ele pesquisava e escrevia sua dissertação sobre o horizonte metalingüístico de Guimarães Rosa.
E se fosse só escrever! Mas Rogério também fazia resenhas para uma revista especializada em produção acadêmica. Fazia questão de escrever para esse veículo, não apenas pelo prestígio, mas também porque alguns dos resenhados comporiam, num futuro próximo, a sua banca examinadora.  (Essas pessoas, por sua vez, também faziam parte do comitê editorial da revista.)
E tudo isso - o trabalho no jornal, o mestrado, as resenhas para a revista - um dia desembocaria no grande romance que ele, Rogério, pretendia escrever. Isto é,  assim que tivesse um tempinho.
Assim que demolisse a montanha de papel.

A catástrofe chegou numa quinta-feira de maio - um dia de luz oblíqua e amarelada. Rogério estava redigindo uma entrevista com  um poeta amigo seu quando um homem alto, magro e careca surgiu à sua frente. Levantando os olhos, Rogério avistou a temida figura de Rubens Cardoso, um estudioso de literatura cuja erudição só não era maior que seu mau-humor. Cardoso era venerado na academia e constantemente incensado na imprensa (o que não aplacava a sua irascibilidade). Lia Kierkegaard no original e produzira dois romances tão ininteligíveis que muita gente jurava terem sido escritos em dinamarquês.
Rogério levantou-se de um salto e indagou obsequiosamente o motivo da visita. Sem responder suas perguntas, Cardoso o encarou com ar feroz. Rogério teve um mau pressentimento.
- Acabo de fazer uma visita ao seu chefe - anunciou o literato. - Vou processar o jornal.
E jogou, espetacularmente, a edição do dia em cima da mesa de Rogério. O jornal estava aberto na sua coluna literária.
No dia anterior, ele tinha escrito um artigo enorme sobre o último livro do professor. Preocupado em não deixar passar o lançamento - Cardoso também fazia parte da sua banca examinadora - Rogério tomara cuidado para manter o livro longe da pilha infernal. Dedicara toda a coluna à obra do acadêmico, afirmando inclusive que ela “descortinava novos horizontes metalingüísticos na obra de escritores brasileiros essenciais - como, por exemplo, Guimarães Rosa”.
Mas por que o professor estava tão bravo? Foi então que seus olhos caíram no título da página. “Rubens Figueira, um monstro sagrado da crítica”, rezava a manchete.
Rubens Figueira, outro estudioso de literatura, era o arqui-inimigo de Cardoso. Infortunadamente, os dois sábios - que já tinham chegado às vias de fato numa discussão sobre concretismo,  anos atrás, num botequim carioca - compartilhavam o mesmo prenome! E pronto: abrira-se o caminho para um erro monstruoso, cometido por um jornalista em estado de completa exaustão física e mental.
Para não dizer moral.
Sem dizer mais uma palavra, o sábio amassou o jornal, fez dele uma bolota e jogou-o na lata de lixo, demonstrando exímia pontaria. E foi embora.
Rogério ficou no meio da redação, arrasado, sentindo-se alvo de sorrisos irônicos e olhares compadecidos. Quase podia ouvir as risadinhas dos seus colegas - aqueles calhordas, que não tinham tido a decência de avisá-lo do erro,  quando chegara à redação! Decidiu que não ficaria ali, esperando ser chamado à sala envidraçada do editor, para a humilhação de uma demissão pública. Pegou sua pasta (cheia de papel) e retirou-se.
No metrô, a caminho de casa, imaginou as conseqüências do cataclisma. Ao saber que perdera o prestigioso emprego, seu orientador com certeza se desinteressaria dele. O mestrado iria por água abaixo. Seu romance - se algum dia chegasse a ser escrito e publicado - seria solenemente ignorado pelos colegas da imprensa. E a carreira jornalística, evidentemente, estava encerrada. Nunca mais conseguiria um emprego.
Sorte que Iasmine ganhava bem, em seu consultório de ortodontia. Mas a viagem à Itália, programada para o fim do ano, jamais aconteceria.
Por alguns segundos, fechou os olhos e teve um rápido pesadelo. A pilha de papéis, em cima da escrivaninha, crescia monstruosamente e caía em cima dele, com o peso de um cadáver de mastodonte....
Quando chegou em casa, a mulher assistia televisão. Percebeu imediatamente que algo acontecia. Interrogou-o. Rogério tentou se explicar; gaguejou duas ou três palavras, e de repente caiu desmaiado no chão.

O diagnóstico veio rápido: Rogério havia sofrido um acidente vascular cerebral. Ficou uma semana em coma. Os médicos estavam pessimistas. Explicaram a Iasmine que o marido podia ficar tetraplégico, paraplégico, afásico, desmemoriado ou impotente. Mas não devia desesperar. Milagres acontecem. Esperasse ele acordar.
E Iasmine esperou.
Quando Rogério abriu os olhos, imediatamente reconheceu a esposa e disse seu nome. Iasmine chorou de alegria. A sogra, que estava do outro lado, também chorou, porque a segunda palavra que Rogério disse foi “mamãe”.
Cinco minutos mais tarde estava conversando normalmente com as duas. Não se lembrava muito bem do dia do derrame, mas de resto parecia ótimo. No dia seguinte, os médicos submeteram Rogério a uma bateria de testes, chegando à conclusão de que nenhuma parte do seu corpo estava paralisada, e nenhuma função cerebral prejudicada em função do derrame.
- É como eu disse à senhora: milagres acontecem - pontificou o neurologista-chefe.
Rogério recebeu alta, com a recomendação de descansar bastante, fazer exercícios e manter uma dieta saudável. Sobretudo, nada de estresse!
Iasmine, ciumentamente, manteve o marido longe dos livros - aqueles objetos malditos que lhe davam asma e derrames. Jornais então, nem pensar. Não contou nem mesmo que o chefe do marido ligara há alguns dias, dizendo que Rogério estava completamente perdoado; que acidentes acontecem; e que Rubens Cardoso, aquele chato, já esquecera do processo. Estavam esperando Rogério no  jornal, assim que ele se recuperasse.
Mas Rogério não parecia interessado em voltar ao trabalho.
Alguns dias depois, Iasmine achou que já estava na hora de seu marido adquirir algum interesse na vida, além de andar no parque de agasalho e ver novelas na TV. Liberou novamente os jornais em casa. Mas ao chegar em casa à noite, encontrava-os intocados. Intrigada, acabou perguntando:
- Rogério, meu bem, você não está lendo o jornal?
O marido, distraído com os imigrantes italianos da novela, não ouviu. Iasmine repetiu a pergunta. Rogério respondeu, com um ar ligeiramente culpado.
- Ah, han, amor, não sei o que está acontecendo. Não consigo ler esse jornal.
- Quer que eu te compre outro?
- Não é isso. É que.... pra falar a verdade, desde o AVC eu não consigo ler nada.
- Como assim?
- Não consigo ler. Não junto as letras. Nem livro, nem jornal, nem revista... Não entendo nem os letreiros na rua. Acho que... - e Rogério sorriu timidamente, quase se desculpando - bom, acho que fiquei analfabeto.

Médicos foram chamados, novos exames foram feitos. Tomografias incontáveis não decifraram o mistério do analfabetismo de Rogério.  O caso foi inclusive objeto de artigos em revistas científicas - que Rogério não leu.
Enquanto isso, uma professora particular, especializada em educação de adultos, batalhava incansavelmente para devolver Rogério ao mundo das letras, ao universo do papel. Ele era um aluno atencioso e dedicado; mas ao cabo de alguns meses, a professora desistiu da tarefa. O ex-jornalista parecia incapaz de juntar uma letra à outra, e delas deduzir um som - que dirá uma palavra!
Quanto ao resto, Rogério parecia bem. Saúde excelente e pressão arterial revertida aos níveis de garoto, graças aos exercícios no parque. Os ataques de asma sumiram. Ele vivia de bom humor. Matriculou-se numa academia e fez amigos lá - gente comum, sem  veleidades literárias.  Perdera aquele seu ar de cão batido. Iasmine, encantada, notou uma sensível melhora no apetite e desempenho sexuais.
Depois do primeiro choque, ela já estava se acostumando à nova situação. Começava a imaginar alternativas para o futuro do marido, quando este um dia veio lhe comunicar que arranjara um emprego.
- Emprego? Onde?
- Na Universidade.
Oficialmente, Rogério foi contratado como pesquisador, ganhando um salário razoável. Na prática, passou a trabalhar como porteiro da Faculdade de Letras. Também atende telefones quando a recepcionista sai. Distingue os números no teclado; só não pode anotar mensagens. O emprego é cortesia do seu ex-orientador.
No trabalho, Rogério é considerado excelente papo, inclusive pelos professores. Continua sendo um homem culto e atualizado.  Vai sempre ao cinema e não perde um documentário da BBC.
Apesar de não ser concursado, Rogério hoje tem direito a alguns benefícios concedidos aos funcionários, como a creche da Universidade. Ele e Iasmine estão pensando em ter  um filho. Inclusive, para liberar espaço em casa, recentemente venderam a um sebo toda a biblioteca de Rogério. Ficaram na casa apenas os livros de Iasmine - romancesde mistério e terror. Ela gosta de lê-los domingo à noite, escarrapachada no sofá, comendo chocolates.

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