As detetives GLS Anatólia e Papoula estão de volta para resolver um misterioso assassinato

ACONTECEU NAQUELE BAR :: Jean Canesqui e Dóris Fleury

- Ui, que calor! - gemeu, desesperada, Papoula - Anatólia, vou morrer antes de chegar nessa droga de cidade!
A detetive transexual Papoula Jolie - um metro e noventa, pernas bem-torneadas na minissaia fúcsia e uma enorme cabeleira ruiva - estava sentada no banco de passageiros da majestosa Mercedes do casal, com o ar condicionado à toda, bebendo Malzibier gelada de canudinho (como muitas mulheres, ela a preferia cerveja preta). Não era caso de reclamar, como observou sua esposa, a legista e dominatrix Anatólia Pampulha.
- Vê se não estressa, tá, Paps? Temos que resolver esse caso rápido, pra fazer média com teu amigo...
- Amigo uma vírgula! - xingou Papoula - Quando fui expulso da polícia, aquele enrustido não levantou um dedo pra me defender!
- Ai, minha santa periquita do bigode loiro! Quando é que você vai esquecer essa história, hein? É uma obsessão! Acabou, Papoula! Passou! E o Reynaldo não estava em posição de te defender...
- Eu sei bem a posição que ele estava...
- Um dia você me conta essa fofoca... mas não agora, senão desconcentra. Temos que resolver o caso até sábado. Domingo três escravos vão lá em casa, e aí já viu: rola chicote até altas horas. Preciso estar descansada...
- Você não me falou nada sobre esses escravos... - resmungou o travesti, examinando as longas unhas cor-de-maravilha.
- Relaxa, meu amor, que também sobra pra ti. E reconheça que o Reynaldo sempre ajuda em nossas investigações. Uma mão lava a outra. A delegada da cidade é amiga dele. E esse caso tem que ser  resolvido rápido, na maior discrição.
- Por quê?
- Não percebeu ainda, criatura? Foi no "Late Night", o primeiro bar GLS da cidade! As pessoas vão lá escondidas, entram pela entrada dos fundos...
- Entrada dos fundos? Que maravilha! Justamente minha especialidade...
- Ô Papoula, não é um bar de garotos; é de garotas!
- Sapatas?
- Sapatas, sapatinhas, sandalinhas, coturnos... têm pra todos os gostos. Se as investigações demoram, tiram todas as lésbicas da cidade do armário. Vai ser um escândalo, tem até mulher casada que freqüenta...
- Mas como se chama o raio dessa cidade?
- Ararinhas.
- Conta logo, vai. Como foi a fita?
- Coisinha básica - explicou Anatólia, mudando de marcha e pisando fundo no acelerador. - A morta era professora, tinha chegado há pouco na cidade. Dizem que era bonita. Começou a freqüentar o bar, dormiu com uma, dormiu com outra, e pumba! um dia apareceu morta atrás do balcão. A dona do bar encontrou o cadáver no fim da noite. Estrangulada.
- Tinha namorada?
- Parece que não... Tem umas fitas brabas rolando, Paps! Rola uma campanha contra o bar, querem que feche, acham um escândalo. A delegada também implica com elas. Outro dia teve uma briguinha à-toa lá, e a criatura fechou o lugar por vinte e quatro horas. Agora, com esse assassinato, finalmente achou um pretexto pra acabar com o "Late Night"!
- Que mona invocada, ressentida...
- É, mas ela vai ajudar a gente, Paps!
- Tomara, porque temos de resolver logo esse caso! Deve ser um tédio a tal de Ararinhas.

Papoula nunca se sentira tão humilhada frente a uma mulher.
A Delegada Susana dava banho de peruagem em qualquer uma. Até mesmo num travesti de minissaia fúcsia! Era loira oxigenada. Usava o cabelo num corte Chanel, endireitado à custa de muita chapinha. Salto agulha, sombra azul e bijuterias faiscantes completavam a indumentária. Numa tentativa de se adaptar à seriedade do cargo, a policial usava também um tubinho preto.
- Vocês são as detetives que vieram da capital? - perguntou. - O Dr. Reynaldo avisou que chegariam hoje...
- Nós mesmas - disse Anatólia - Eu sou Anatólia e essa é minha companheira, Papoula.
Papoula estendeu o braço musculoso e ofereceu a mão à delegada. Esta a olhou com desconfiança, e limitou-se a fazer um aceno com a cabeça, deixando a mão do travesti estendida no ar.
- Credo! - disse Papoula, baixando a mão e lançando um olhar ofendido à policial.
- Desculpe fazer uma pergunta direta - disse a delegada, dirigindo-se exclusivamente a Anatólia - Mas é preciso que as coisas fiquem claras. Vocês são... um casal gay?
Anatólia e Papoula ficaram alguns minutos em silêncio perplexo. Finalmente, Anatólia blefou:
- Sim, claro, delegada! Somos um casal gay.
Com uma careta de nojo, a delegada prosseguiu:
- Bom... suponho que o Dr. Reynaldo achou melhor mandar vocês duas. Afinal, vocês podem fazer investigações com mais facilidade entre essas... pessoas. Quer dizer, lésbicas como vocês.
Anatólia e Papoula estavam mudas de surpresa.
- Não tenho nada contra homossexuais... desde que sejam discretas! Mas esse bar criou uma situação intolerável. Fazem barulho à noite, já houve brigas ali. Sem contar o escândalo! Passam crianças naquela rua, vêem mulheres aos beijos e abraços, quando não é coisa pior. E depois, é claro, vão perguntar aos pais o que significa aquilo. Até meu filho me perguntou, e eu não sabia o que responder!
- Hum - grunhiu Anatólia, desferindo mentalmente um ippon na preconceituosa. Gostaria tanto de lhe mostrar que era faixa-preta em quatro artes marciais...
- Esse crime era inevitável - concluiu a delegada. - Mais cedo ou mais tarde  aconteceria. Todo mundo sabe que lésbicas são violentas. - Parou, olhou para as duas detetives, e em seguida concedeu: - Bem, naturalmente há exceções...
- Sem dúvida - disse Anatólia. - Nós somos a regra.
- O quê? - fez a Dra. Susana.
- Nada, nada. Vamos aos fatos - disse Anatólia, secamente. - Como foi este assassinato?
- Aconteceu há duas noites. Segundo o legista, a vítima, Carolina Santos, conhecida como Carol, foi morta às sete da noite. O que nos cria um problema...
- Por quê?
- Bem, se ela foi morta às sete - e o bar tinha acabado de abrir, nesse horário - o que fizeram com o cadáver? Só foi descoberta no dia seguinte, às quatro da manhã, quando estavam fechando o lugar. Atrás do balcão. E olhem só o detalhe: ninguém tinha visto ela entrar no bar, nessa noite.
- Estranho... - grunhiu Papoula.
- A vítima tinha namorada firme? - perguntou Anatólia.
- Fui obrigada a pesquisar esses... detalhes. Carolina não tinha nenhum relacionamento sério. Ia para a cama com uma ou com outra.
- Inconstante...
- Promíscua, isso sim... - disse a delegada, apertando os lábios cheios de batom. Papoula observou-a e pensou: de onde viria a grana para aquelas roupas de griffe - sem falar do perfume francês, que devia chegar até a carceragem? Hum... Ela também já fora delegado de polícia, na época em que usava o nome no seu RG: Paulo Henrique Rodrigues. E sabia que não era um emprego bem remunerado...
- Alguma dessas mulheres chegou a ameaçar a Carol? - perguntou Anatólia.
- Ao que parece, não.
- E fora da cena GLS? Ela tinha inimigos na cidade?
Dessa vez a delegada se encrespou:
- Minha senhora, Ararinhas não tem uma "cena GLS". Esta é uma cidade de respeito. Nesse bar, se reúne uma pequena minoria...
- Ela tinha inimigos ou não?
- A moça estava na cidade há poucos meses. Parece que se dava bem com os colegas do colégio... Para falar a verdade, não tenho muita esperança de solucionar esse caso - confessou a delegada. - O melhor é fechar logo o bar e encerrar o assunto.
Indignada, Papoula abriu a boca. Anatólia lhe fez sinal de "psiu". Depois, disse à delegada:
- Não vamos nos precipitar, Dra. Susana. Primeiro faremos as investigações, para ver se descobrimos alguma coisa. Enquanto isso, é melhor manter o bar funcionando. Só assim poderemos entrevistar as freqüentadoras, que podem ter visto alguma coisa. Não acha?
A delegada estava visivelmente contrariada. Não conseguia achar nenhum argumento contra Anatólia. Acabou dando de ombros e dizendo:
- Faça como quiser. A senhora tem quarenta e oito horas para completar esta investigação.
- Só quarenta e oito? - protestaram as duas.
- É o tempo que consigo segurar o povo de Ararinhas... Todo mundo quer fechar o bar!

- Fechar o bar? Mas se fecharem, onde a gente vai à noite???!!!
Eram só oito horas, mas muitas freqüentadoras do "Late Night" já estavam reunidas em volta do balcão. Ninguém se conformava com a notícia:
- Essa delegada é uma vaca! - protestava uma loirinha, vestida com um top que lhe realçava os peitos generosos. Seu nome era Sabrina, e tinha entrado no bar pela entrada dos fundos, que dava num beco. O que pensariam os fregueses da sua loja de griffe, se a vissem num lugar daqueles?
- Eu acho que a gente tinha que ir tirar satisfação com ela - opinou uma moça calada e séria, que usava macacão de mecânica e entrava pela porta da frente.
- Calma, calma - disse Dona Juliana, a dona do bar. Juliana era uma sapata à antiga: vestia-se de homem, cultivava um buço preto e, embora fosse normalmente calma, podia falar grosso se necessário. - Vamos usar a cabeça, pessoal. Se acharmos logo o assassino da Carol, a delegada não vai poder fechar a gente. Vamos colaborar com esse simpático casal... - e com um gesto de mão mostrou Papoula e Anatólia às freqüentadoras. - Por favor, não escondam nada delas, sim? Muitas de vocês eram amigas da falecida...
- Qualquer detalhezinho, às vezes, ajuda a esclarecer o crime - explicou Anatólia. - Mas não queremos estragar a noite de ninguém. Vão dançar, beber, dar uns amassos, que enquanto isso a gente se divide pra fazer perguntas. 
O grupo se dispersou, e a música começou a tocar. As luzes se apagaram, o cafonoscópio de reflexos prateados acendeu-se, e a paquera começou a rolar no ambiente. Anatólia aproximou-se de Dona Juliana, que estava de serviço no balcão:
- Preciso falar com a senhora.
- Senhora, não... Você, por favor.
- Juliana, você é solteira?
A dona do bar foi pega de surpresa: estava esperando uma pergunta relacionada ao crime. Fungou, enxugou um copo e disse:
- Bom... Eu tenho uma pessoa... Moro com ela, pra falar a verdade. A Loló.
- E a Loló nunca vem aqui?
- Tá doida? Isso aqui é uma baixaria ... Não arrisco minha mulher nesse ambiente.
- E você? Participa da baixaria?
Dona Juliana baixou os olhos. Brincou com a gravata:
- Bom, de vez em quando... sabe como é... a carne é fraca...
"Galinha" diagnosticou Anatólia, com larga experiência nesses assuntos.
- E com a Carolina? Chegou a ter alguma coisa?
- Nunca - disse Dona Juliana, balançando a cabeça, pesarosa. - Olha, a Carolina não era o tipo de ficar com todo mundo não. Teve uns casinhos logo que começou a freqüentar aqui. Ultimamente andava quieta...
- Mas a delegada disse que ela era promíscua...
Uma expressão de raiva cruzou o rosto de Juliana:
- E o quê aquela bruxa entende de nós? Esteve ontem aqui, tratando todo mundo feito lixo, ameaçando, fazendo interrogatório na maior brutalidade... Revirou  a boate inteira, hoje passei o dia consertando os estragos. Inclusive uns vasinhos de plantas que eu tinha lá na saída dos fundos, ela detonou.
"Eu atendo gente fina aqui, sabia? que lá fora não pode soltar a franga, tem que fingir que é 'normal'... Tá vendo aquela morena ali? É casada com o promotor, já tem até netos... E a baixinha de trança, então? Tem um bufê infantil chiquérrimo, é amiga de toda a sociedade de Ararinhas. Se os clientes do bufê souberem que é gay vai ser um escândalo...
- Mas ninguém sabe que elas freqüentam o "Late Night"?
- Olha só... Rola uma conspiração de silêncio, entendeu? Todo mundo finge que não viu nada. Vê aquelas duas atracadas ali no canto? Uma é psicóloga, a outra é chefe de repartição - casada, aliás. Se se encontrarem na rua amanhã, fingem que nem se conhecem. - Suspirou - Estava tudo  indo tão bem, até esse crime...
- Mas tem muito preconceito na cidade, imagino.
- Nem queira saber. Muita gente quer fechar esse bar.
- A Carol era professora, certo? Posição delicada. Ela entrava aqui pela porta da frente, ou pela de trás?
- Pela porta da frente. Era assumidíssima.
- E os pais dos alunos, não reclamavam?
- Olha... alguns chegaram até a reclamar, mas não deu em nada.
- Por que?
- Tá vendo aquela mulata peituda, ali no canto, paquerando a ruiva?
- Sim.
- É a diretora da Delegacia de Ensino. Limpava a barra da Carol. Sabe, não é porque ela está morta, mas todo mundo gostava da moça.

Enquanto isso, numa mesa de canto, Papoula conversava com Sabrina:
- Me disseram que você era a melhor amiga da Carol.
- Éramos íntimas - suspirou a loirinha peituda, com um suspiro.
- Chegaram a ir pra cama?
- Chegamos, mas não ficamos muito tempo juntas. A Carol queria um namoro mais sério, um relacionamento, entende? Eu sou mais a fim de aproveitar a vida. Ficamos só amigas.
- E ela conseguiu? O tal do relacionamento sério?
- Acho que sim...
- Acha? Por quê?
- Ela me contou. Disse que tinha encontrado o amor da vida dela. Faz uns três meses que andava com essa conversa... Inclusive vinha aqui, tomava uns drinques, dançava, mas não ficava com ninguém.
- Mas quem era essa pessoa?
- Aí é que está! Era um mistério, ela não queria dizer. Ninguém aqui no bar sabe, pode perguntar. Nem eu, que era a melhor amiga dela.
- Estranho...
- A Carol estava apaixonada. Inclusive começou a investir na aparência, coisa impressionante. Cada vez que eu a encontrava, ela estava com roupas diferentes, penteado novo...
- Você tem fotos dela, meu bem?
- Olha só... Na noite anterior à morte dela, tirei umas fotos ótimas. Mas estão lá em casa, na minha máquina digital. Depois pego pra te mostrar.
Anatólia e Papoula andaram mais um pouco pelo bar, interrogaram as freqüentadoras, mas não conseguiram descobrir o nome da misteriosa namorada de Carol. Às duas da manhã, Sabrina puxou Anatólia à parte e perguntou:
- Querida... não se ofenda... mas posso te fazer uma pergunta? É meio pessoal...
- Fique à vontade, gracinha.
- Você e a sua amiga... Papoula, né? tem, digamos, um relacionamento aberto?
- Hã?
- Porque, desculpa a franqueza, acho sua namorada um tesão, e se você não se ofendesse...
Normalmente, em momentos como aquele, Anatólia responderia: "Vai fundo!" Mas essa era uma situação especial. Fechou a cara e respondeu:
- Sinto muito, Sabrina, mas nosso relacionamento é exclusivo. A Papoula é minha e ninguém tasca, ouviu?
A loirinha corou, atrapalhada:
- Ixi! Foi mal, então... Por favor, não se ofenda. Perguntei justamente pra não criar problema...
- Agradecida pela gentileza. Mas não rola.
- Bom... então até logo.
- Amanhã passo na sua casa pra ver as fotos da Carol, viu?
- Claro! Espero você na hora do almoço - disse Sabrina, que foi saindo o mais rápido possível. Papoula, que tinha ótimos ouvidos, veio reclamar:
- Que história é essa, Nati? Deu pra ser ciumenta, agora?
- Paps, vê se entende. Essa moça pensa que você é mulher...
- Eu sou uma mulher!
- É, mas quero ver quando ela descobrir que você é uma mulher com pinto!
- Quem sabe curte.
- Ou quem sabe faz um escândalo lá no banheiro, que aliás está cheio de mulher se agarrando... Pega supermal, o pessoal fica desconfiado com a gente e não responde mais nada.
- Droga! - xingou Papoula, baixinho. - Justo agora que ia me dar bem...
- Fica fria, Papoula. Mais tarde, quem sabe.
Impávida, Papoula partiu rumo ao balcão, e pediu à dona, com seu melhor sorriso:
- Tem uma Malzibier, querida?
- É pra já - respondeu Juliana, sacando do balcão o pedido.
Justino, o ajudante de Juliana, aproximou-se muito aflito:
- Dona Juliana! Não me diga que aquela mona horrorosa...
- A delegada... - explicou Juliana a Papoula, com um sorriso resignado.
- ...detonou a samambaia que eu tinha dado pra senhora de aniversário!
- Não, Justino. Eu já tinha botado a samambaia no meu carro pra levar pra casa, antes mesmo de  descobrir... a falecida.
Papoula, muito fina, entornou um generoso gole direto do gargalo da cerveja, e deu um arroto.  Depois, fez uma careta:
- Nossa! A cerveja tá choca!
- Não me diga! - disse Juliana, horrorizada. Pegou a garrafa de Papoula, deu um golinho, limpou o buço e repetiu a careta da outra: - Tem razão, estragou mesmo. Já sei o que aconteceu. Ontem limpamos o refrigerador que fica lá nos fundos, e  na hora de esvaziá-lo, esquecemos de guardar essa aqui no outro "cooler".  - Abriu rapidamente outra Malzibier. - Toma, que deve estar boa.
Papoula deu um gole e aprovou a bebida.
- É por conta da casa - disse Juliana.

No fim da madrugada, o casal já estava se retirando quando Papoula disse no ouvido da esposa:
- Finge que está indo no banheiro, e me encontra lá nos fundos.
Anatólia estava acostumada a essas manobras da parceira. Fez o que ela pediu, e minutos depois as duas se encontravam na saída dos fundos da boate. As freqüentadoras já tinham ido embora. Só ficara Juliana, na frente,  arrumando o lugar junto com o empregado.
- Temos pouco tempo - sussurrou Papoula, com ar misterioso. - Nati, vê se acha por aí um refrigerador grande, desses de guardar bebida...
- Deve ser este - apontou Anatólia, mostrando um enorme "cooler" num canto.
- Ótimo. Vou abrir... Só tem umas Cocas. Vamos tirar todas daqui. Preciso verificar uma coisa.
- Mas Paps...
- Vai por mim, que sei o que estou fazendo.
Rapidamente, as duas tiraram as Cocas. No fundo do refrigerador, Papoula achou o que estava procurando:
- Veja, Anatólia! - mostrou, triunfante. Um tufo de cabelo loiro estava entre seus dedos. - Quer apostar que a morta era loira?
- Nossa! Mas o que ela estava fazendo aqui?
- Não sei, mas acho que o cadáver foi trazido dos fundos. Vamos refazer o caminho.
No caminho entre a saída e o refrigerador, Anatólia e Papoula de fato encontraram um brinco azul - um tanto vistoso demais, aliás.
- Veja bem, Paps, isso não quer dizer nada. Esse lugar está cheio de mulheres, o brinco pode ser de qualquer uma!
- Porra nenhuma! Desde que entrei aqui, fiquei me perguntando onde o cadáver podia ter ficado, entre as sete da noite e as quatro da manhã. Quando a Juliana falou do refrigerador, acendeu uma luz no meu cérebro! Chama ela aqui, já! - instruiu Papoula, imperativa.
Um minuto depois, Juliana, ainda esbaforida de arrastar mesas e cadeiras, estava na frente do travesti.
- Juliana, você reconhece esse brinco? - disse Papoula, praticamente enfiando o objeto debaixo do nariz da dona do bar.
- Bom... acho que era da Carol - admitiu, nervosa, a dona do bar.
- Juliana. Vamos falar sério. Essa história de encontrar a Carol atrás do balcão foi mentira sua, não?
O silêncio era tão grande, que deu para ouvir o respingar de uma torneira.
- Foi ou não foi? - insistiu Papoula, implacável.
            - Está bem! - confessou Juliana. - Eu achei o cadáver, ali perto da saída. Não sabia onde botar, estava desesperada, e aí me lembrei do refrigerador que já estava descongelado. Coloquei a Carol lá dentro, e quando as pessoas saíram levamos ela pra trás do balcão. Foi isso.
As duas detetives olharam, incrédulas, a dona do bar.
- Juro por Deus! - afirmou ela - O Faustino pode confirmar...
- Ele encontrou o cadáver junto com você?
- Não, mas me ajudou a botar no refrigerador...
- Então, sinto muito, Juliana, mas você é a suspeita número um do assassinato!
- Não fui eu! Juro que não! Ela era minha amiga, gostava da menina...
- Mas por quê sumiu com o corpo, então?
Juliana, aflita, torcia as mãos:
- Gente, vocês não estão entendendo. Eu descobri o corpo às sete da noite. Se fosse chamar a polícia, o bar não funcionava aquela noite. Tinha um conjunto de Taubaté que veio tocar, estava com tudo pronto! Imagine o meu prejuízo! A menina já estava morta mesmo, eu fui enfermeira, vi na hora...
- Está difícil engolir essa história. Nati, liga pra delegacia!

No dia seguinte, as duas detetives só saíram da cama ao meio-dia. Estavam se vestindo, carrancudas, quando o celular de Papoula tocou.
- Alô! - disse ela, pegando o aparelho - Ela mesma.... como assim, delegada? Soltou? Não acredito!
Desligou logo depois e atirou o telefone, furiosa, pra cima da cama:
- Imagine, Anatólia: aquela incompetente soltou a Juliana! Disse que o caso é só circunstancial, e  a única acusação que dá pra fazer é de ocultação de cadáver! Porra, mas que estranho...
Nessa altura, Anatólia, que visivelmente estava com alguma coisa entalada na garganta, explodiu:
- Estranha é a broxada que você deu agora!
- Acontece.  - disse Papoula, imperturbável. -  Não sou máquina de trepar, minha filha. E agora vamos botar a cabeça pra pensar.
- Melhor, já que outras coisas não funcionam!
- Alguma coisa está esquisita nesse caso. A delegada estava doida pra prender alguém naquele bar. A gente entrega a proprietária de bandeja, e ela solta?
Anatólia, seminua, sentou na beira da cama e começou a pensar. Enquanto isso, Papoula se enfiava em suas calcinhas, não se esquecendo de colocar o principal para trás.
- Mas, Papoula - argumentou Anatólia, depois de alguns minutos - a Dra. Susana tem razão. Não encontramos nenhuma prova de que a Juliana tenha assassinado a Carol.
- Se não assassinou, por que teria escondido o cadáver? O motivo que ela deu é muito fraco...
- Sei não... ontem à noite dei uma espiadinha no carro dela, no estacionamento. É um Paglio preto bem ordinário, de uns cinco anos atrás! Conversei também com o braço direito dela, o Faustino. Ele me disse que a boate mal consegue fechar as contas todo mês.
- Mas ali tem gente pelo ladrão!
- De fato, o lugar é movimentadíssimo. O Faustino também não entende onde vai parar toda essa grana. Mas sabe o que ele me disse, logo antes de você me chamar?
- Não.
- Que uma noite de prejuízo acaba com o bar. Uma noite que ela não possa abrir as portas,  e está ferrada.
- Bem como ela contou pra gente...
- Fora que... sei lá, Paps, a Juliana não tem cara de assassina!
- Nem sempre assassinos têm cara do que são...
- E que motivo ela teria para matar a Carol?
- O clássico: tentou comer, e ela não quis.
- Não me convence, francamente. Vamos continuar nossas investigações. Falar com a tal amiga da morta, a Sabrina... Depois a gente vê o que faz.
- Não se esqueça que só temos um dia e meio.
- Não esqueço, mas... Paps, me conta uma coisa. Sinceridade. Quem você está querendo comer, ali no "Late Night"?
Papoula avermelhou:
- Não é da sua conta!
- Mais cedo ou mais tarde vou ficar sabendo... Por isso você broxou, não é? Ficou pensando nela...
A travesti, indignada, terminou de calçar o salto agulha e saiu pisando duro:
- E daí, se fiquei pensando? Todo mundo tem  suas fantasias, ouviu?
- Ora, Paps...
- Sou uma lésbica como outra qualquer, e tenho direito à minha vida sexual!

Quando as duas detetives tocaram a campainha da casa de Sabrina, foram recebidas com um silêncio pouco promissor.
- Será que ela esqueceu do nosso encontro e saiu? - gemeu Anatólia.
- Acho que não! - exclamou Papoula - A porta está aberta!
Um gato siamês apareceu, olhou as duas investigadoras e miou aflito.
- Duvido que a Sabrina deixe esse gato na rua - disse Papoula, pulando agilmente o portãozinho e agarrando o bichano. - Alguma coisa está errada aqui. Vem, Nati!
Na sala de estar, o caos era total. Todas as gavetas tinham sido abertas, armários estavam escancarados, roupas e papéis jogados no chão. Alarmadas, Papoula e Anatólia passaram para a cozinha, onde encontraram a loirinha estendida no chão, inerte.
- Ela tá morta? - disse Papoula, assustada.
Nati aproximou-se, tomou o pulso de Sabrina, farejou-a.
- Só desmaiada. Usaram clorofórmio... Sabrina! Acorda!
A loira sacudiu a cabeça, olhou para as duas investigadoras como quem não reconhece e só depois de alguns segundos disse:
- Que aconteceu?
- E nós é que sabemos? Você foi atacada, né?
Sabrina franziu a testa, passou alguns minutos tentando se concentrar e finalmente disse com voz pastosa:
- Não vi quem era... Acho que ela me agarrou por trás...
- E enfiou um lenço com clorofórmio na sua cara, já sabemos. Tem certeza que era ela?
- Absoluta! Usava perfume de mulher, senti os peitos... Inclusive...
- Os peitos dela tinham alguma coisa diferente?
- Não, o perfume... Vocês vão achar esquisito, mas...
- Mas o quê?
- Era o mesmo perfume que a Sabrina usava... Paris.
As duas detetives refletiram um pouco. Finalmente, Papoula disse:
- Muita gente usa esse perfume... Se bem que é caro pra xuxu.
- De qualquer forma, meu bem - disse Anatólia - temos más notícias pra você. Sua casa foi inteirinha revirada.
- Que merda! - gritou Sabrina, colocando-se subitamente de pé.
Percorreu cada cômodo, checando os estragos, e terminou em prantos:
- A desgraçada zoou com a minha casa inteira!
- Levou alguma coisa de valor?
- Bom... só a máquina digital. Eu ia mostrar pra vocês as fotos da Carol, quando chegassem...
- Você tem alguma cópia dessas fotos?
- Não...
Papólia e Anatoula entreolharam-se. A legista disse para Sabrina:
- Bom, minha querida. O negócio agora é fazer um BO na delegacia com a Dra. Susana.
- Mas será que não é perigoso eu vir pra casa depois? E se essa mulher resolver... voltar ao lugar do crime?
Papoula sorriu e explicou pra loira, no seu melhor barítono reconfortante:
- Se estiver com medo, vá dormir na casa de uma amiga. Mas não se preocupe, ela não vai voltar. Já pegou o que queria.
A loira derreteu-se:
- Ai, Dona Papoula, que voz sexy a senhora tem!

Quando estavam saindo, Anatólia perguntou:
- Sabrina, quem mais poderia ter fotos da Carol, aqui na cidade?
- Ninguém! Ela não tinha parentes, e as maiores amigas dela eram lá do bar. Lá a gente não  fica tirando fotos! imagine a bandeira... - Pensou um pouco - Quem sabe no colégio... Não, melhor ainda! A Carol tinha um hobby. Participava de uma confraria de enólogos, sabe?
- O quê??!! - fez Papoula, que vinha da Zona Norte do Rio, se formara na Estácio de Sá e só entendia de Malzibier.
- Enólogos, bobinha - explicou Anatólia, que estudara no Santo Inácio, tinha apê em São Conrado e (sendo muito religiosa), outra residência no bairro parisiense de Saint-Germain de Près. - Pessoas que se reúnem para provar vinhos, entende? - e explicou a idéia à sua companheira.
- Quanta viadagem - disse esta, no fim da explicação.
- Pois é - prosseguiu Sabrina - também acho, mas a Carol adorava a confraria, e não perdia um encontro. Quem sabe eles não têm fotos dela? Se reuniam todo mês. Eu conheço a Dona Vera, a presidente. Ela mora ali na pracinha da Matriz
- E essa namorada misteriosa dela... Você não tem mesmo idéia de quem poderia ser?
- Juro por Deus que não imagino. Mas ela tinha grana, viu? A Carol ultimamente andava usando umas roupas caras... Engraçado, quando ela chegou aqui era uma moça discreta, se vestia com bom gosto. Ultimamente deu pra usar umas coisas mais vistosas, ficou mais...
Deu uma olhada nervosa para Papoula.
- Pode falar, minha filha - encorajou esta.
- Perua. - disse Sabrina. - Mas, não tenho a menor idéia de quem fosse a tal namorada.
- Não seria a Juliana?
Sabrina deu uma risada:
- De jeito nenhum, a Carol achava a Juliana horrorosa.
- Mas ela queria comer a Carol...
- Meu bem, a Juliana quer comer todas nós... Mas fora isso não é má pessoa. Tchauzinho!
E foi andando em direção à delegacia.
- É dessa aí que você está a fim? - perguntou Anatólia à Papoula.
- Não enche, Paps... - disse a travesti, absorta. - Vamos visitar a Dona Vera, ver se ela tem algumas fotos.

- Estamos muito tristes com essa história da Carol. - afirmou Dona Vera. - Era uma boa moça, não merecia o que aconteceu. Esteve aqui na noite em que morreu, sabiam? antes de ir pro bar.
- Na noite em que morreu? Não sabia disso! Estava diferente? Mais nervosa? Triste?
- Não. Parecia completamente normal, alegre... Tiramos fotos nessa noite, sabe. Eu mostro pra vocês.
Arranjou o banquinho para alcançar a última prateleira da estante, e ofegou:
- O único problema com nossas reuniões é que é, com tanta comida e bebida, a gente fica  fora de forma... Estou dez quilos acima do peso! Mas é o único programa civilizado nessa cidade.
- O pessoal da confraria não tinha preconceito contra a Carol?
- Meu bem, somos pessoas evoluídas... que por um azar vieram parar nesse horror. Ararinhas já tem até shopping center, mas cultura nenhuma. A cabecinha das pessoas não muda, continua pequena. Modernidade pra eles é consumo, não civilização... Por isso fazem essa campanha contra o bar. Andei até conversando com o meu marido sobre a possibilidade de fundar um movimento de simpatizantes, pra defender o "Late Night". Mas se descobrirem que a Carol foi assassinada ali... bom, fica difícil. Achei o nosso álbum!
Ofegando, a presidente da Confraria dos Enólogos desceu do banquinho.
- Tiramos fotografias sempre - informou. - E temos a Carol em todos os meses! - Sentou-se à mesa, ladeada pelas detetives - Vejam, essa foi a reunião de março... abril... maio... junho...
À medida em que as fotos iam sendo exibidas, a boca de Anatólia foi se abrindo de surpresa:
- Ela era bonita, não? - comentou Dona Vera.
- Sim, mas... desculpe, posso mexer nas fotos?
- Pode sim, depois eu coloco no lugar.
Anatólia alinhou as fotos cronologicamente, da primeira até a última, e mostrou-as à Papoula:
- Você está vendo o mesmo que eu, Paps?
- Estou! Ela mudou muito mesmo. Aos poucos.... Cortou o cabelo... Começou a usar umas roupas mais chamativas... Aqui nessa foto está com um monte de bijuterias... e aqui nessa última...
- Foi tirada na noite anterior à morte dela - informou a presidente.
- Liga correndo pra Sabrina - instruiu Anatólia.
- Pra quê?
- Pergunta se ela já tinha visto a Carol loira.
- Olha, eu acho que não. Ela sempre foi morena. Tinha acabado de tingir, naquele dia mesmo. Até comentou comigo. - adiantou Dona Vera. - Acho que só nós vimos a Carol loira.
- É isso! - disse Anatólia, dando um tapa na mesa. - Isso explica tudo!
- Explica o quê, criatura? - perguntou Papoula, sem entender nada.

- Delegada, a senhora está presa - informou sumariamente a mesma Papoula, meia hora depois, à Dra. Susana.
A policial, que estava ocupada fazendo as unhas, olhou incrédula por cima do ombro da manicure.
- Como? Que brincadeira é essa?
- Como a senhora não deve ignorar, qualquer cidadã comum, como eu, pode dar voz de prisão, em algumas situações... Estou prendendo a senhora pelo assassinato de Carolina Santos.
- Ficou louca? - esbravejou a Dra. Susana, dando tamanho tapa na mesa, que todos os apetrechos da manicure voaram pelos ares.
- Não tente negar. Vocês eram amantes há seis meses!
- Não me diga! - disse a manicure, abrindo olhos do tamanho de pires.
- O QUÊ??!! - urrou a delegada.
- Não berre tanto, meu bem, que vai assustar os presos - avisou Anatólia, entrando na delegacia naquele exato momento. - Achamos a arma do crime, dentro de um vaso de samambaias que estava nos fundos do "Late Night"... Bem que a senhora procurou ele, não é? mas, pro seu azar, a Juliana já tinha levado pra casa...
- Assim que descobri quem matou a Carol, me lembrei dessa história da samambaia - disse Anatólia. - Fomos à casa da Juliana e olhamos dentro do vaso... E o tiro foi à queima-roupa, não foi, delegada? na maior frieza. Aposto que suas digitais estão nesse revólver.
Susana, branca feito uma folha de papel, deixou-se cair na cadeira. Ocultou o rosto com as mãos.
- Para uma policial, a senhora até que fez um serviço bem porco... - observou Papoula. - Mas, é claro, né: teve que fugir às pressas. Quase que a Juliana pega a senhora em flagrante. Anatólia, meu bem, cadê aquelas suas algemas? Não as de pelúcia, as outras... Beleza! Pronto! Vamos ver se essas pulseirinhas combinam com suas bijuterias. O seu sucessor já está a caminho, para levá-la à prisão especial à qual a senhora, infelizmente, tem direito...
- Mas por mim você apodrecia aí na carceragem mesmo, com os presos comuns... Sujeitinha escrota! - disse Anatólia, perdendo a classe habitual. - Que vontade de te dar umas chicotadas...
- Calma, Nati, controle-se. Ela não merece seu chicote... A senhora tinha que matar a Carol, não é? Ela ameaçou revelar toda a história de vocês.
- Fez pior que isso - disse Susana, transtornada. - Aquela mulher era um pesadelo... Completamente louca... Fui ficando assustada! Tá bom que era uma ótima trepada, mas trepada nenhuma vale aquilo!
- Fato público e notório: as loucas são as melhores trepadas - reconheceu Papoula. - Mas isso não era motivo pra matar a coitada.
- Porque não foi você que ela perseguiu! - protestou Susana - Disse que ia contar pra todo mundo do nosso caso. Mas pior ainda foram aquelas transformações que ela fez.
- Num dia as roupas, no outro as bijuterias, depois o corte de cabelo... - lembrou Anatólia - Ela teve um caso muito doido de identificação, Susana. Nós vimos pela foto. Foi ficando cada vez mais parecida com você.
- As pessoas já estavam comentando... Minha mãe viu ela no colégio, quando fui buscar meu filho, e disse que parecíamos irmãs! "A única diferença é o cabelo", comentou. Mas aí...
- Aí ela tingiu também o cabelo... não é? - disse Anatólia, colocando a foto da vítima em frente à delegada.
A semelhança era impressionante. Susana continuou contando:
- Marcou um encontro comigo... na saída da "Late Night", imagina!  Mas tive que ir de qualquer jeito, ela me ameaçou. Quando cheguei lá e vi ela... loira... perdi a cabeça.
- Não é a primeira vez que uma loira faz alguém perder a cabeça - afirmou Papoula, orgulhosamente, tirando a peruca ruiva e balançando os cachos oxigenados.
- As pessoas iam ver ela daquele jeito... uma lésbica assumida... desavergonhada... e iam associar comigo! uma mãe de família, casada, uma policial!
E rompeu em prantos.
- Mas não foi só por isso que você matou ela, não é, Susana? - interrompeu Anatólia, friamente.
A policial olhou-a, desesperada:
- Como?
- Ela também ameaçou contar outros segredos seus.
- Vocês também descobriram... isso? Falaram com a Juliana?
- Falamos. E ela nos contou como você estava ganhando dinheiro à custa da homofobia dessa cidade, sua vaca!
- Calma, Anatólia! - orientou o ex-delegado e bacharel em Direito. - Ela pode nos processar por danos morais!
- Praticamente desde que o bar abriu você extorquiu a Juliana, sua... sua...
- O processo, Anatólia - disse Papoula, lhe dando um leve beliscão.
- A coitada da Juliana dava duro a noite inteira para pagar suas roupas de griffe, seus perfumes caros... E cada vez que tentava escapar, você voltava com a sua "campanha pela moral"... Por isso a Juliana  não podia se dar ao luxo de fechar o bar, nem por uma noite que fosse!
- Você também vai ser processada por corrupção - informou Papoula - Não que isso adiante alguma coisa, mas enfim... Só pelo fato de saberem que você é homossexual, seus dias na polícia estão contados. Acredite em mim. Tenho experiência.

- Bom - disse Juliana, servindo mais uma Malzibier à Papoula - parece que o povo dessa cidade vai ter que nos engolir.
- Principalmente com esse novo delegado - comentou Anatólia, sentando-se ao lado da companheira. - Já bati um papo com ele. É gay. E resolvidíssimo!
- Não acredito!
- Será que também vão expulsar ele da polícia? - comentou Papoula, entornando a sua bebida favorita.
- Desde que não ande por aí de meia arrastão... - alfinetou Anatólia.
- Meia arrastão? - repetiu Juliana, sem entender.
- É uma longa história, Juliana... olha só quem chegou! A Sabrina!
- E pela porta da frente!
- Saí do armário! - afirmou a loirinha, aproximando-se do balcão. - Minhas clientes vão ter de me aceitar. - E sorriu para Papoula.
- Parabéns! - disse esta, brindando com a garrafa de cerveja.
Anatólia - que se sentia generosa - resolveu fechar a noite com chave de ouro. Sem maiores delongas, dirigiu-se à loira:
- Sabe, Sabrina... eu e a Papoula andamos rediscutindo a relação. Chegamos à conclusão de que... bom, cabem outras pessoas nela.
Papoula nem piscou.
- Quer dizer que ela tá liberada? - disse Sabrina.
- É toda sua... se você quiser, é claro.
E, sem mais conversa, foi dançar no outro canto do salão. Juliana, impassível, continuava enxugando os copos. Sabrina aproximou-se, quase esfregando os peitos no travesti:
- E aí, querida? Vamos lá no canto dos sofás?
- Obrigada, meu bem... mas fica pra outra vez - disse Papoula, muito direta.
Sabrina lhe lançou um olhar decepcionado, suspirou, arranhou o balcão com a unha do dedinho, e disse com vozinha triste:
- Sem chance?
- É... acho que hoje não vai rolar. Quem sabe outro dia?
A loira lançou-lhe um último suspiro magoado, deu de costas e saiu rebolando. Juliana desabafou:
- Deus dá nozes a que não tem dentes! Eu bem que comia ela!
- Pois é... mas eu tenho outros interesses - disse o travesti, inclinando-se sobre o balcão e olhando  nos olhos a dona do bar. Surpresa, Juliana suspendeu a lavagem dos copos:
- Sério?
- Desde que entrei aqui, te achei um tesão - afirmou Papoula - Ontem à noite, quando estava com a Nati, eu até...
- Até o quê?
- Bom... digamos que perdi o entusiasmo, pensando em você.
Juliana deu uma risadinha. Papoula continuou:
- Você não ficou com raiva de mim quando foi presa, não é?
- Bom... lógico que fiquei chateada. Mas também, naquela situação, quem não suspeitaria de mim? E outra: agora que saiu o resultado das digitais da Susana no revólver, e o promotor vai fazer a denúncia, só tenho que agradecer, a você e à Anatólia. Era horrível ser chantageada por aquela vaca. Se eu soubesse que ela também era gay...
- Então... será que rola alguma coisa?
Juliana ajeitou o cinto das calças e encostou-se ao balcão:
- Estou sempre aberta às surpresas da vida.
- Espero que esteja, mesmo - concluiu Papoula. - Você vai ter uma de bom tamanho!
Em torno das duas, a música tocava e o cafonoscópio refletia seus reflexos nas paredes do "Late Night" - que, agora, só fechava com a última freguesa.

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