Dois momentos da loucura de uma grande cidade.

ACERTANDO AS CONTAS e FRANCISCO MORATO

ACERTANDO AS CONTAS

Dez anos na tropa comigo, entramos juntos, moleques.
No baile funk, primeira vez que beijei ele.

Padrinho do mais velho dele. Nossas mulheres ficaram amigas, também.
Ele é lindo, mas é fodão. Todo mundo tem medo dele.

Veio a ordem pra subir, nós dois fomos. De cu na mão.
E tem outras, que eu sei. Tanto medo que ele me largue.

A gente vem nessa bosta dessa favela, é pra matar ou morrer.
Umas putinhas, ficam rindo na minha cara. Dá vontade de matar.

Tive um pressentimento, parece que adivinhei.
Tava vendo a hora em que uma ia aparecer grávida.

Eu sabia que ia dar merda.
E aí eu ficava na merda.

Mas não estava preparado pro que aconteceu.
Eu me preparei, contei os dias.

Ele mirou, o desgraçado. Eu vi que ele mirou no Léo.
Tem boa pontaria, acertou logo na primeira.

Jurei pra viúva que me vingava.
Ele jurou que vai morar comigo.

Agora é a hora da forra. Vamos subir o morro de novo.
Agora, quero ver essas vadias me roubarem o Tiago.

Marquei a cara do bandido, olha ele lá.
Vai ser menino e a cara do pai.

Essa conta tá acertada – pensa João Carlos, depois que o bandido cai.
Pelas minhas contas, é pra agosto – pensa Patrícia, alisando a barriga.

 

FRANCISCO MORATO

Aquela barraca imunda ali na esquina vende o melhor salgadinho da cidade. Aquela menina que desce a avenida bateu no namorado, que pegou em flagrante com outra garota. Deixa ela, coitada. Daqui a dois dias sentirá os primeiros sintomas de uma doença neurológica que a transformará em vegetal. Aquele farol está apagado por causa de uma tempestade violenta, causada pelo aquecimento global. Aquele mendigo dormindo num banco da praça já foi professor. Aquela velhinha carregando  verduras na sacola já teve um amor proibido, mas não lembra com quem. Aquele rapaz que acabou de descer do ônibus é homossexual e tem medo de contar pra família, que já sabe de tudo e não liga. Aquele homem que dirige um carro de luxo preferia estar andando de Fusca com seu primeiro amor, trinta anos atrás. Aliás, de um total de 25.405 pessoas que circulam pela avenida nesse momento, 22.289 se recusam a viver no presente. O sol está forte, mas no fim da tarde vai chover. Eu nem dou bola se sou Onipresente e Onipotente; gosto mesmo é de ser Onisciente. O caminhão que desce na benguela, chegando de uma longa viagem pela Regis Bittencourt, pode ser uma excelente oportunidade de provar que sou imortal. Ou de virar uma panqueca de carne sangrenta achatada no asfalto. Não importa - tudo é válido, na busca por  transcendência.

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